VIA CRUCIS – O CAMINHAR DA PESSOA CONSCIENTE – 1
O Homem sofre devido à sua própria imagem e às ideias que o prendem
Jesus, no seu caminhar, revela-se não só como médio (união com Deus) mas também como mensagem (caminho, verdade e vida). O segredo da via crucis está em superar a dor sem a transmitir a outros, uma vida sem a necessidade de bodes expiatórios, uma existência como processo de transcendência e inclusão. Deste modo Jesus quebrou com a prática comum da cadeia da violência. Com o exemplo do calvário inicia-se assim uma nova idade, a idade da paz. Esta perdeu-se pelo caminho encontrando-se soterrada sob a folhagem da história. As estruturas do poder realizaram porém uma regressão à maneira antiga do exercício do poder como violência e a repressão.
Nele encontra-se um modelo de vida para lá dos habituais dualismos, racionalismos ou morais; a dimensão da sua actividade não se perde nos meandros de explicações porque a dimensão da sua actividade é a fé, a relação interpessoal, a relação mística, a única que implica transformação profunda.
Jesus mostrou o absurdo da imagem de um Deus vingativo, violento e mesquinho, que a sociedade civil e religiosa usa muitas vezes para melhor legitimar o seu poder e a sua violência. Deus não precisa de vítimas nem de sacrifício. Jesus ao assumir a qualidade de vítima desmascara a violência e torna supérfluo o recurso à vítima que amarra a alma humana quando Jesus lhe deu asas para voar. Nele se revela a possibilidade de nos mudarmos. Em Jesus Cristo, Deus revela-se o misericordioso que deslegitima qualquer violência (Mt 9,13; 1Cor13,3.13); o JC, ao assumir o ser de vítima, acabou com todos os sacrifícios e questionou a realidade do dia-a-dia baseada numa mentalidade que se movimenta entre o crime e o castigo, o criminoso e a vítima. Jesus acaba com a violência como meio de resolver os problemas; revela a fragilidade e maldade de uma vida e de um poder baseados numa mentalidade dual-polar legalista (que menoriza a realidade a: de um lado o bem e do outro o mal!).
Numa visão, verdadeiramente cristã, a realidade não é bipolar; ela implica uma terceira dimensão integrante inclusiva e integrante da vida na fórmula trinitária. À dimensão polar acrescenta-se uma outra dimensão: a dimensão da liberdade, da graça e do amor: o contrário da polaridade da obediência, do espírito legalista e justiceiro.
No JC todas as contas estão saldadas e em vez da teoria ou da moral inicia-se um novo reino que é encontro, relação directa com Deus (o tal Reino de Deus). O caminho do calvário é tão largo que leva nele vencedores e vencidos, maiores ou menores pecadores, acabando com a concorrência e com o prémio e o castigo; a cruz só conhece vencedores porque a sua força impulsionadora é a misericórdia e o amor. A via-sacra (caminho da cruz) acaba com o ciclo circulatório da violência (poder) e da repressão (Rom 12,21), supera também uma visão intelectualista redutora da vida. Já Platão dizia: "Podemos facilmente perdoar uma criança que tem medo do escuro; a real tragédia da vida é quando os homens têm medo da luz."
O sofrimento assumido torna-se no método alternativo, o único capaz de fomentar saúde e salvação, o único capaz de libertar do sofrimento provindo das próprias imagens. O caminho da cruz é um outro modo de perceber as coisas, uma solidariedade sem limites nem extremos e, como tal, não responde a um mal com outro mal; de facto também o mau é vítima do mal. A via crucis é a alternativa à história humana em que a violência se alterna em nome de ideais e a pretexto da revolução. O único verdadeiro revolucionário da História é Jesus mas a sua revolução só se encontra activa em diferentes biótopos sociais que integram a doutrina com a mística (conventos, crentes e grupos que procuram concretizar na sua vida a realidade do JC).
(continua)
António da Cunha Duarte Justo
Teólogo e pedagogo