«VELHA TENDINHA»
Também reparei, creio que toda a gente reparou. A nossa formação cívica é de tal modo incipiente, que, ridiculamente tomamos iniciativas pessoais, num caso de tal dimensão, mas com a televisão atrás, para todos ficarmos sabendo que somos bons, somos ricos, e que a nossa vontade é soberana. Temos casa, carro, comida e roupa lavada para dispensar, aí vamos nós agarrar nuns poucos e ficar na história, serviçais, generosos e colaboradores, sem que ninguém nos tivesse pedido, mas avisando à socapa os media, do nosso gesto altruístico.
Do gesto exibicionista fica uma sensação de vergonha, o que é comum nos exibicionismos. Não, não se trata de um Aristides de Sousa Mendes, que tinha um cargo de poder, para ajudar, mas que até acabou injustamente castigado. Também não se trata do santo que dividiu a capa ao meio para abrigar o pobre. Esse foi premiado com o sol de verão em pleno Outono. Estes da caravana antecipam para si o prémio da fama. Também La Fontaine tratou do tema, em fábula bem conhecida – «O Coche e a Mosca», prova de que é antigo o vício, e universal. Ainda bem que não é exclusivo nosso.
António da Cunha Duarte Justo conta do caso português, com a necessária precisão e justeza:
CARAVANA PRIVADA EM BUSCA DE REFUGIADOS
UMA INICIATIVA À REBELDIA?
http://abemdanacao.blogs.sapo.pt/caravana-privada-em-busca-de-refugiados-1501848
A fábula de La Fontaine, como reforço moral:
O coche e a mosca
Por um caminho de íngreme subida,
Arenoso, irregular
E de todos os lados exposto ao sol,
Seis fortes cavalos puxavam um coche.
Mulheres, Frade, Velhos, tudo tinha descido.
Os cavalos suavam, bufavam, esgotados.
Vem uma Mosca e deles se aproxima.
Pretende animá-los com o seu zumbido,
Pica um pica, pica outro e pensa a todo o momento
Que é ela que põe a máquina em movimento.
Poisa no timão, no nariz do Cocheiro;
Assim que a carruagem começa a subir
E vê as gentes avançar
A si só atribui do facto a glória;
Vai, vem, faz-se apressada; parece ser
Um Oficial encarregado do plano da batalha
A todo o lado a ir,
Para as tropas fazer avançar e apressar a vitória.
A Mosca, nesta comum necessidade,
De tanta dificuldade,
Queixa-se de agir só, todo o encargo com ela;
Que ninguém ajuda os Cavalos a não ser ela.
O Monge lia o seu Breviário;
Boa maneira de passar o tempo!
Uma mulher cantava;
Era mesmo de canções que se precisava!
A Senhora Mosca vai cantar aos seus ouvidos
E faz cem tolices semelhantes.
Depois de muitos trabalhos o Coche consegue arribar.
Respiremos agora, diz a Mosca imediatamente:
Trabalhei tanto que os passageiros estão no seu destino, finalmente.
Pagai-me, Senhores Cavalos pelo meu trabalho.
Assim certas pessoas, fazendo-se muito servis,
Se introduzem nos assuntos gerais ou privados:
Em toda a parte se julgam imprescindíveis
E, sempre importunos, deveriam ser recambiados.