UM REI PORTUGUÊS NOS AÇORES
«Distúrbios de D. Afonso VI em Lisboa» - quadro de Alfredo Roque Gameiro
Depois de ser considerado física e mentalmente incapaz para assumir a direcção do reino, após a morte do rei D. João IV, seu pai, e de Teodósio, seu irmão e herdeiro, D. Afonso VI, El-rei de Portugal, é afastado do Paço Real, onde passou a governar seu irmão o Príncipe D. Pedro.
Para evitar tentativas de recolocá-lo no trono, foi levado com todas as mordomias reais para o Castelo e Forte de São João Batista, em Angra, Ilha da Terceira, Açores.
Corria o ano de 1669. Em 17 de Julho, em pleno verão, chega ao Porto da Cidade de Angra uma armada composta de três fragatas e uma caravela, comandada pelo Marquez das Minas, D. Francisco de Sousa. Trazia o malfadado D. Afonso VI. Incapaz de dar herdeiros ao reino, vê seu casamento anulado e a rainha casar com seu irmão D. Pedro, o príncipe regente. No dia 21 de Julho, finalmente às 4h desembarca o rei amparado no braço do Marquez após a descarga de boas vindas da artilharia. Andava com dificuldade em razão do achaque de estupor que padecia desde a infância. Já em terra, subiu à liteira com o Marquez que o levou ao Castelo de São João Batista. À entrada, nova salva de 21 tiros, com festas e repiques de sinos, pelas igrejas e mosteiros da cidade de Angra. Aposentou-se El-rei na casa e galeria do governador. Nos alojamentos inferiores ficaram os capitães da guarda e alguns criados de maior foro. Concluídas as novas funções no Castelo, o Marquez volta para Lisboa e entrega à Corte as novas participações dos oficiais. A serviço da pessoa de El-rei ficou em Angra um provedor da casa (Manoel Nunes Leitão), 5 assistentes da guarda com ocupação da porta dia e noite. Cinco guarda-roupas, cinco moços de câmara, um escrivão de cozinha e tesoureiro, um médico, um cirurgião, dois capelães, dois moços de capela, um manteiro, um comprador, um mestre de cozinha, 6 reposteiros, 4 oficiais de cozinha, 4 moços de cozinha, 2 moços da prata, um varredor.
Em Outubro chega ao Porto de Angra uma charrua, constante de um coche forrado de damasco vermelho, uma liteira do mesmo e outra de menor valor. Vieram também 6 cavalos que morreram em 3 anos e as pessoas que os deviam tratar. Todas as mesadas eram religiosamente pagas. O que sobrava era distribuído aos oficiais e pessoas que assistiam no Castelo. Abriram e aplanaram caminhos nas montanhas do Castelo de São João para dar divertimento ao rei que ali ia se entreter por várias tardes. Seja no Verão ou no Inverno, costumava levantar-se às onze horas para o meio-dia. Jantava das três às 4 horas da tarde. E todo o tempo que mediava até as 11 h procedia em travessuras de absoluta criação que tivera. E de tão inquieto, nenhum criado se considerava seguro em sua presença. Ninguém o suportava. Era incapaz de guardar menor segredo. Revelava até o nome do autor. Agastava-se com o fidalgo Luiz de Sá e Miranda só por lhe dizerem ser mais valente que ele. Por isso intentou certo dia acometê-lo sobre o Pico do Facho e o mataria às cutiladas se não fosse a humildade com que ele se portou e a presença de Manoel Nunes Leitão. Queixava-se de seus criados de tal maneira que excitava as lágrimas dos que o ouviam, chegando a dizer “... sua desgraça era tal que o príncipe, seu irmão, permitia que os criados o descompusessem, ali estava exposto a tudo! Era dotado de uma prodigiosa retentiva. Bastava que lhe dissessem o nome de qualquer sujeito uma vez para lhe ficar na lembrança para sempre. Compadecido da miserável pobreza, todos os dias a socorria de sua mesa, até com prodigalidade. A mesma roupa que usava no Verão usava no Inverno, mas sobre a camisa se ligava com toalhas, a poder de alinhavos, que por grandes movimentos que fizesse não caiam, sendo assim que dormia. Comia uma única vez, porém com tal avidez que repugnava. Duas a três vezes ficou doente com febre e uma delas, foi a pontos de dar bastante cuidado a sua vida. Ainda não passado um ano da sua chegada à Terceira, espalhou-se a notícia infundada que o príncipe D. Pedro estava mal de saúde. Coisa esclarecida com as novidades trazidas de Lisboa por uma caravela. O príncipe apenas havia caído de um cavalo e passava bem. Mesmo assim, os ciúmes e inimizades grassavam na casa de El-rei em Angra, a ponto de em 1670 vir até aquela ilha um corregedor natural de São Miguel, Manuel Bicudo Delgado de Mendonça, que ali começou a correição e mais tarde passou à corte como Desembargador. Por esse mesmo tempo os do partido do rei urdiram tramas a ponto de se supor que a Terceira havia levantado os povos pondo o rei em liberdade e restituindo-lhe a coroa. O príncipe mandou uma embarcação informar-se como estava a situação na ilha, mesmo depois das notícias sossegadoras do Provedor da Fazenda. Assim correram os anos com arrumadores de tumultos e supostas rebeliões que queriam restituir D. Afonso VI ao poder.
«D. Afonso VI preso em Sintra» - quadro de Alfredo Roque Gameiro
Em 1672, rebentaram nos Cedros, Ilha do Faial, junto ao Capelo, cinco ribeiras de lava ardente com destruição de moradas e campos. O tremor de terra foi sentido apenas levemente na Terceira. Em 1673 é eleito para Governador do Castelo São João Batista Manuel Nunes Leitão. Movimentos para restituir o poder ao rei seguiram-se sem efeito. Até que em 1674, D. Afonso é enviado de volta a Lisboa e é “aposentado” em Sintra, “guardado por soldados e pelos assistentes que o acompanhavam desde que estivera na Terceira. Morreu em 12 de Setembro de 1683 aos 40 anos, prisioneiro em Sintra.
Uberaba, 03/01/2017
Maria Eduarda Fagundes
Dados compilados dos ANAIS DA ILHA TERCEIRA (Volume II, pag.157 a 167)
Reimpressão Fac-similada da Edição de 1856
Governo Regional dos Açores (Secretaria Regional de Educação e cultura)