TRETAS # 16
PARA MEMÓRIA FUTURA - II
- Respaldado em normas comunitárias transpostas com pouco critério para o Direito Português, o BdP, no caso BES (e, mais recentemente, no caso BANIF), seguiu um caminho muito diferente daquele que, entre nós, está traçado para as empresas sem tesouraria - ou, mesmo, sem capital.
- Adianto desde já que, até melhor prova, não vejo que, antes de 2014, BES ou BANIF se destacassem assim tanto, para pior, dos outros Bancos Comerciais por cá estabelecidos, quer quanto a níveis de liquidez, quer quanto a níveis de capitalização.
- Na ausência de outras causas que só a divulgação pública da correspondência trocada entre BdP e BCE poderá revelar, o problema de fundo no BES era o BESA (solucionado às três pancadas) e a miríade de outras subsidiárias (que migraram quase todas para o NB). Em suma: era o “Grupo BES (GBES)”, não o restante GES, que lhe absorvia o melhor da liquidez e dos Capitais Próprios.
- No caso do BANIF sabe-se, pela correspondência entretanto divulgada, que o facto de o Estado ser o accionista maioritário, ampliado pela extrema dificuldade em reembolsar os financiamentos públicos recebidos, não caía lá muito bem em Bruxelas.
- Ponhamos de lado, por momentos, estes casos concretos. É muito provável que andem pelo ar, sem resposta, algumas perguntas pertinentes: Que mal tem um Banco Comercial falir? Porque é que o processo de liquidação dos Bancos Comerciais tem de ser diferente do de uma outra qualquer sociedade comercial? Como devem ser eles liquidados, então? O Mecanismo Único de Resolução, adoptado pela UE, serve?
- Cada uma por sua vez.
- Não me canso de repetir que as sociedades desenvolvidas se estruturam a partir de normas, contratos e liquidez (dinheiro). E a liquidez é, em larguíssima medida (à volta de 90%), passivo à vista dos Bancos Comerciais: são os Depósitos à Ordem (o restante é passivo à vista dos Bancos Centrais). A que há que adicionar aquele outro passivo dos Bancos Comerciais que pode ser convertido imediatamente em Depósitos à Ordem por simples vontade do respectivo credor, sem perda do capital investido (os Depósitos a Prazo).
- Assim, se um Banco Comercial suspender pagamentos, os Depósitos à Ordem e os Depósitos a Prazo registados nos seus livros poderão não se esfumar de um momento para o outro, mas ficarão indisponíveis por longo tempo. Consequentemente, a liquidez que circula na economia diminuirá na exacta medida dos Depósitos Bancários que ficarem indisponíveis.
- Uma quebra súbita, mais ou menos significativa (conforme a dimensão sistémica do Banco Comercial em crise), visível, mas não antecipada, da liquidez em circulação torna mais difícil manter o ritmo de concretização de contratos monetários (aqueles em que a contraprestação consiste na entrega de uma quantia em dinheiro). Falta dinheiro - e a rigidez de preços, salários e restante dívida complica tudo.
- Ora, são precisamente os contratos monetários: (i) que animam a vida económica; (ii) que dão acesso à participação no processo produtivo; (iii) que sustentam a distribuição do rendimento; (iv) que orientam o investimento. Menos dinheiro em circulação, menos contratos monetários - logo, mais desemprego, mais insolvências e, no limite, recessão económica e crise social.
- Para que a insolvência de uma empresa tenha efeitos comparáveis aos da suspensão de pagamentos de um Banco Comercial (mesmo de pequena dimensão) ela terá de ter um peso desmedido: (i) ou no emprego de uma dada região; (ii) ou nas exportações de um dado país; (iii) ou na trama das relações inter-industriais de uma dada economia.
- E se a insolvência de uma grande empresa tende a afectar em maior ou menor medida outras empresas (e até os Bancos com os quais ela trabalhe), um Banco Comercial que suspende pagamentos vai contagiar todo sistema bancário através da densa rede de relações inter-bancárias.
- É justamente por tudo isto que, perante um Banco Comercial em crise, há que acautelar, de imediato: (i) os Depósitos (para preservar a liquidez em circulação); (ii) as posições cruzadas com os restantes Bancos (para evitar o contágio, que a crise se propague ao sistema de pagamentos).
- São estes os dois únicos pontos em que o regime aplicável à insolvência de Bancos Comerciais terá de se afastar daquele outro que estiver definido para as sociedades comerciais, em geral (a insolvência de Seguradoras e de Fundos de Pensões também exige regimes especiais, que não vêm aqui ao caso).
- Em termos práticos, isto significa: (i) proceder, sem demora e antes do mais, à compensação automática entre créditos e débitos de que o Banco Comercial insolvente seja parte nos mercados interbancários; (ii) reconhecer, logo em seguida, que os créditos correspondentes aos Depósitos gozam de privilégio absoluto sobre a totalidade do seu património, sobrepondo-se mesmo aos créditos hipotecários (ou que beneficiem de outro qualquer tipo de garantia).
- Infelizmente, aquele primeiro passo pode não ser suficiente para conter a propagação da crise a outros Bancos Comerciais (sobretudo, se o Banco Comercial insolvente estiver excessivamente endividado nos mercados interbancários). E o facto de os Depositantes serem reconhecidos como os credores mais graduados (serão pagos antes de todos os demais credores) não confere aos Depósitos a desejada disponibilidade imediata: haverá sempre que aguardar pela liquidação da massa falida.
- A dura realidade é que não há solução satisfatória para os danos “macro” causados pela insolvência de um Banco Comercial se só se actuar quando a situação não puder mais ser ignorada.
- Por isso, o endividamento líquido (e, bem assim, o desequilíbrio no perfil temporal das suas posições devedoras e credoras - o mismatch) de um Banco Comercial nos mercados interbancários tem de ser sujeito a limites prudenciais apertados e vigiado diligentemente (só recentemente os Reguladores se aperceberam de tal).
- Por isso, também, os Depósitos Bancários têm de contar com esquemas que lhes permitam continuar plenamente disponíveis, caso o Banco depositário suspenda pagamentos (é essa a finalidade do Fundo de Garantia dos Depósitos - desde que não se confunda “ininterrupta disponibilidade” com “garantia”).
- A grande questão é, pois, esta: como lidar com um Banco Comercial insolvente de forma a preservar intacta a liquidez em circulação e evitar que a crise se propague ao sistema bancário, inquinando o sistema de pagamentos?
- Quanto aos accionistas e restantes credores dos Bancos Comerciais, nada justifica que eles tenham um tratamento diferente daquele que é reservado a sócios e credores de qualquer sociedade comercial.
- Também eles têm de estar atentos à situação financeira das entidades que lhes causam risco. Afinal, não é outro o sentido da disciplina do mercado.
(cont.)
JANEIRO de 2016
A. Palhinha Machado