TRETAS #12
Necessidade-Capacidade Líquida de Financiamento da Economia Portuguesa
DEIXEMO-NOS DE TRETAS!
Muitos dos problemas com que hoje nos confrontamos, fomos nós que os criámos. Não foram a globalização, a concorrência internacional, uma localização periférica, o invejável dinamismo da vizinhança, a seca ou a chuva. Não. São obra muito nossa.
Exemplos? Leis compreensíveis, coerentes e fáceis de fazer cumprir não são connosco, mas legislamos com grande à vontade e maior minúcia sobre tudo e sobre nada, esperando passivamente que a norma ganhe voz e se imponha por ela própria – aos outros, naturalmente, pois cada um de nós se considera justo credor de um tratamento de excepção. Iluminados, cultivamos com desvelo a autorização prévia e discricionária, a licença avulsa – e, por isso, a insegurança jurídica, tal como os expedientes para a colmatar (vulgo, corrupção), são o que são. Sempre movidos pelas melhores intenções, e infalíveis, se somos chamados a dar uma justificação sensata, ou a prestar contas, sentimo-lo como uma ofensa pessoal – talvez por isso, nunca sabemos a quantas andamos. Ineptos, não conseguimos preparar minimamente os nossos filhos para um mundo cada vez mais moldado pela ciência e pelo progresso tecnológico, pelo comércio e pela competição global. Moralistas, vendo na “especulação” (que a ignorância atávica nos leva a confundir com “manipulação de preços”) a origem de todos os males, nunca cuidámos de criar um mercado eficiente para a primeira transacção dos produtos da terra e do mar – por isso, a agricultura e as pescas, obrigadas a suportar todos os riscos, estão como sempre estiveram: de rastos e à mercê de intermediários. Ávidos de dinheiro, de preferência sob a forma de subsídios em moeda forte, corremos a abater a nossa frota de pesca – para, agora, nos lamentarmos porque outros querem vir pescar nas nossas águas. Com assinalável perícia, transformámos uma oportunidade de oiro (a integração, generosamente subsidiada, numa união monetária de economias ricas) num pesadelo. No afã interesseiro de redistribuir o que não nos pertence, reduzimos a uns míseros 9% a parcela da despesa pública corrente que se deixa gerir – mas persistimos em lançar as culpas para o PEC e a mobília (e tudo o mais que vier à mão) para a fogueira do deficit orçamental. Bradando permanentemente contra a evasão fiscal, recusamos ver que o melhor aliado dos Ministros das Finanças é o sócio minoritário interessado, antes do mais, em receber lucros – e os dividendos lá continuam a ser objecto de dupla tributação, tal como as empresas continuam de um só patrão, fortemente endividadas e a jogar às escondidas com o Fisco. Aflitos com o desemprego, proclamamos que é imperioso investir, mas tratamos com desmedida suspeição o empresário mal sucedido - como se a incerteza e o risco não estivessem profundamente inscritos em todas as actividades económicas. Para afectar capitais e distribuir rendimentos confiamos, não no mercado, mas na intermediação (do OGE, da Banca) – sem nos apercebermos que isto tem custos elevados, além de concentrar perigosamente o risco. Com pouca perspicácia, damos por adquirido que do outro lado de um qualquer direito constitucional deverá estar sempre um funcionário público pronto a satisfazê-lo – mas estarrecemos ao tomarmos consciência do peso dos gastos com o pessoal na despesa pública corrente (e no PIB). E por aí adiante.
O caso do funcionalismo público é, a este respeito, exemplar. Durante muitos anos entendeu-se que as grandes funções de soberania (a defesa, a ordem pública, a justiça, a representação e a cooperação externas, a administração fiscal, alguma regulação e supervisão) deveriam ser mantidas ao abrigo de quaisquer conflitos de interesses. Daí se concluía que, para não comprometer nunca o primado absoluto do interesse público, quem as exercesse teria de ficar sujeito a um regime laboral específico (hoje, o Regime Geral da Função Pública/RGFP), onde deveres mais apertados (a exclusividade, o quadro disciplinar) eram contrabalançados por direitos mais amplos (emprego garantido, reforma garantida, horários de trabalho mais curtos). Funções do Estado e RGFP eram assim vistos como as duas faces de uma mesma moeda - e o facto de se tratar de funções cujo exercício não passava pelo mercado contribuiu para fazer desta asserção uma verdade indiscutível.
A dado momento, porém, a lista das funções estaduais foi aumentada com vários direitos (como o direito à saúde e o direito à educação) que, entretanto, haviam recebido consagração constitucional. Perante esta concepção mais alargada do que fosse a esfera pública, a resposta encontrada parecia assentar numa lógica inabalável: tratando-se de novas funções do Estado, que o funcionalismo público as assegurasse também - gratuitamente, ou quase. Afinal, à imagem do que acontecia, sem sobressalto, com as tradicionais funções de soberania. E lá vieram os profissionais de saúde/funcionários públicos, os profes-sores/funcionários públicos, e mais uns quantos funcionários públicos para executarem variadas tarefas.
Contudo, não era forçoso que assim fosse. Mesmo sem pôr em causa o princípio da gratuitidade, o Estado poderia reservar-se, apenas, o financiamento de tais direitos (colectando aqui para pagar acolá, servindo-se, para o efeito, do dispositivo fiscal) e confiar na iniciativa privada para os satisfazer. Tanto mais que os serviços que esses direitos requeriam, além de terem, havia muito, um mercado, não davam origem a conflitos de interesse substancialmente diferentes daqueles que ocorriam em qualquer empresa. Mas não. Entendeu-se, vá-se lá saber porquê, que não bastava ao Estado ser financiador – ele teria de ser, também, provedor desses direitos individuais que a Constituição reconhecia. E o número de pessoas abrangidas pelo RGFP, tal como o leque das profissões que o Estado teria de gerir, não mais parou de crescer. Dir-se-á que no plano estritamente financeiro a diferença entre Estado-financiador e Estado-financiador/provedor não é grande – sempre se poupando o lucro que a iniciativa privada, certamente, não desistiria de cobrar. Mas o argumento é, a vários títulos, falacioso: pressupõe que o custo de tais serviços é dado, independentemente de quem os prestar (o que está longe de ser verdade: a pressão da concorrência e a gestão também contam); introduz na administração pública um sem número de actividades que, por estarem dirigidas à satisfação de procuras individualizadas, pouco terão a ver com aquelas outras ligadas às tradicionais funções de soberania (com a consequente erosão da acção governativa); coloca sob o pesado acervo de direitos e deveres que compõem o RGFP profissões que vivem paredes-meias com o mercado (as discussões sem fim em torno da aplicação do princípio da exclusividade a médicos, enfermeiros ou professores são, disto, prova); conta com o dinheiro dos contribuintes para custear, sem perguntas incómodas, falhas e tempos de inactividade (o que não será propriamente um estímulo à eficiência); mais geralmente, arreda a iniciativa privada das funções que o Estado se arroga (deixando assim quem se pretendia proteger completamente exposto às vicissitudes financeiras de uma só entidade, o Estado).
Uma vez dado o passo leviano do Estado-financiador/provedor, como arrepiar caminho? “Entrar a matar” (tão ao gosto português), banindo da administração pública, de supetão, quem passe a ser considerado supérfluo, só adicionaria mais problemas (instabilidade, desmotivação, reacção, rupturas) a um problema já basto intrincado, sem melhorar, no imediato, a situação orçamental (o que se deixasse de pagar como remunerações pagar-se-ia como subsídios e prestações sociais, desconhecendo-se ainda hoje qual viria a ser o saldo de tudo isto). Esperar que o tempo remedeie seria prolongar por mais alguns anos uma situação de desequilíbrio financeiro que se agrava todos os dias (as outras rubricas da despesa pública, como as transferências para a segurança social, resistirão à espera?). E tanto num cenário, como no outro, o problema de fundo subsistiria incólume: a rigidez que o RGFP imprime às relações laborais do Estado-empregador. Enquanto se não desmontar a asserção que referi mais acima - enquanto o RGFP não ficar circunscrito, exclusivamente, às funções tradicionais de soberania, aplicando-se ao restante o regime geral dos contratos individuais de trabalho - conter a despesa de pessoal sem prejudicar o interesse público estará para lá do nosso horizonte. E, entretanto, que fazer? Perguntará o leitor. Boa pergunta!
Março de 2005