TRETAS #07
BES, UMA HISTÓRIA MAL CONTADA (VI)
PAPEL DE FANTASIA (4)
- Em tese, bastaria a regra da documentalidade (papéis, mas também registos de voz e de imagem susceptíveis de serem autenticados) manejada por mão experiente para ser possível reconstituir as operações (emissão, colocação e transacções supervenientes) que constituem o caso do papel comercial do GES - e, assim, deslindar, de uma vez por todas, como é que esse papel comercial foi parar às carteiras de clientes do BES.
- Quanto muito, ficaria por solucionar uma ou outra sequela de leis e regras com deficientes alicerces e que deixam algo maltratada a segurança jurídica nos mercados financeiros.
- Para começar, informação documentada sobre os emitentes (parece que foram vários; fala-se nas sociedades holding Espírito Santo International e Rio Forte, ambas com sede no estrangeiro, mas ignoro se haverá outras mais). Sabe-se, agora, que estas duas sociedades estão insolventes e que nos últimos anos teriam divulgado informação financeira deturpada ou, mesmo, viciada.
- Há que tirar a limpo quem são, em concreto, os emitentes, para depois verificar se a informação financeira sobre o emitente que acompanhou cada emissão de papel comercial padece de iguais vícios, ou de outros - ou se, pelo contrário, era fidedigna. Há que vê-la. Mas onde obtê-la? Tanto quanto pude apurar, mesmo a informação sobre aqueles dois emitentes não consta dos sites da CMVM e dos Supervisores dos seus países de origem.
- Como tal informação teria de ser auditada (foi?), estará, certamente, na posse dos Auditores. E, se for provada a viciação, estes, além de responderem criminalmente, são solidários no pagamento das indemnizações que sejam devidas aos prejudicados. Até ao momento, porém, os Auditores envolvidos têm conseguido passar despercebidos.
- Seguidamente, a informação sobre cada emissão - o que é dizer: a sua Ficha Técnica (conceito rigoroso, do qual o legislador português foge como o Diabo da Cruz) e as Condições de Colocação.
- A Ficha Técnica dará a conhecer (além do emitente, como é óbvio): (i) o valor nominal de cada instrumento de dívida (cada papel comercial) - que é o montante que o emitente se obriga a pagar na Data de Vencimento; (ii) quantos são os instrumentos de dívida emitidos; (iii) a Data de Vencimento; (iv) as garantias constituidas a favor de quem seja titular do papel comercial, na Data de Vencimento; (v) a entidade registrante da emissão; (vi) se a emissão será negociável em mercado regulamentado - ou se dispõe de Instituições Financeiras (IF) que actuem como market makers; (vii) o tipo e a periodicidade da informação financeira que o emitente se obriga a divulgar no prazo remanescente; (viii) outras quaisquer condições que contratualmente vinculem emitente e investidores.
- As Condições de Colocação revelam informações preciosas para a reconstituição das operações subsequentes: (i) a identificação da, ou das entidades colocadoras (IF, necessariamente); (ii) qual o tipo de oferta, se pública, se particular; (iii) se estão previstas IF tomadoras firmes da emissão; (iv) se a emissão terá lugar de uma só vez, ou por séries (e a emissão de papel comercial por séries tem que se lhe diga); (v) como é encontrado o preço de colocação; (vi) o que acontecerá se a emissão não for integralmente subscrita.
- Mas onde obter, para cada emissão, a Ficha Técnica, as Condições de Colocação e, não menos importante, os resultados da colocação? Uma vez mais, nada consta dos sites da CMVM - e no dos Supervisores dos países de origem daqueles dois emitentes, também não. Terão de estar na posse dos emitentes e das IF colocadoras (se as houve) - mas não dos Auditores.
- Uma coisa é certa: a informação que o site do Supervisor não divulgar, estará fora do alcance dos investidores e de quem queira comentar. Perante este cenário, um Supervisor diligente teria já: (i) procedido à recolha de toda a informação disponível sobre estas emissões de papel comercial; (ii) divulgado essa informação no seu site - assinalando eventuais falhas e insuficiências e indicando as medidas que estaria a adoptar para repará-las. A CMVM, porém, parece mais interessada em trocar arrufos epistolares com o BdP, em vez de fazer o que lhe compete.
- Agora, o BES. Para esgotar todas as possibilidades, o BES poderá ter intervindo nestas emissões nas seguintes qualidades: (a) como IF registrante; (b) como IF colocadora (única ou com o concurso de outras IF); (c) como IF tomadora firme (idem); (d) como investidor/subscritor para carteira própria, que depois terá revendido (ou distribuído); (e) como IF market maker; (f) como garante, numa qualquer modalidade; (g) como gestor fiduciário de carteiras, com poderes discricionários (isto é, com poderes para determinar a composição da carteira do seu cliente, em função da política de investimentos contratada); (h) como gestor fiduciário não discricionário (prestando o simples serviço de custódia de carteira) [Nota: De ora em diante, para aligeirar o texto, vou referir cada uma destas 8 qualidades pela respectiva letra, apenas].
- Vem a propósito uma precisão conceptual: (i) a IF colocadora (b) presta ao emitente o serviço de encontrar investidores/subscritores interessados na emissão - mas, ela própria, não tem de a subscrever; (ii) a IF distribuidora (d) subscreve a totalidade, ou parte importante, da emissão com o propósito de revender no mercado secundário o papel comercial adquirido.
- Para apurar se o BES interveio nas qualidades (a), (b) (c), (e), (f) - que poderia muito bem exercer simultaneamente - bastaria consultar a Ficha Técnica de cada emissão. E, se tiver intervindo, não poderia ignorar , seja a informação sobre o emitente, seja a informação sobre a emissão. Mas, a propósito da informação sobre o emitente, levantam-se duas questões:
- Se essa informação tinha a chancela de Auditores credenciados, estaria o BES obrigado a reexaminá-la para formular a sua própria opinião?
- Se existissem membros comuns às Direcções Superiores dos emitentes e do BES (como parece que existiam) é lícito concluir daí que o BES, no relacionamento comercial com os seus clientes, teria conhecimento dos vícios de que essa informação enfermava?
- (1ª questão) Ainda hoje, as boas práticas consideram perfeitamente aceitável que os Bancos (e as IF, em geral) se louvem nas opiniões emitidas por Auditores credenciados. Só muito recentemente é que se começou a esboçar a tese de que os Bancos (e as IF) têm especiais deveres de diligência, pelo que nunca serão dispensados de fazer os seus próprios juízos. Mas esta tese não teve ainda consagração formal no sistema financeiro internacional.
- (2ª questão) O BES, enquanto instituição dotada de personalidade jurídica própria, não se confunde com nenhum dos membros da sua Direcção Superior. Mesmo que todos esses membros saibam que determinada informação é falsa (viciada, deturpada, etc.), se tal conhecimento não passar para a instituição por uma qualquer das formas previstas na Lei (actas, etc.; uma vez mais a regra da documentalidade), só há uma conclusão a tirar: quem tenha agido com reserva mental usou o BES para prejudicar objectivamente terceiros.
- Que tal tenha sido possível pela promiscuidade que existia entre as Direcções Superiores do BES e do GES não deverá surpreender ninguém - não foi o primeiro caso, nem será certamente o último, por esse mundo fora. Mas era uma promiscuidade à luz do dia, conhecida e tolerada pelo CMVM e o BdP. Se a consentiram, quando poderiam - e deveriam - ter-lhe posto termo, são responsáveis (responsabilidade extra-contratual) pelo que está a acontecer.
- Sendo verdade que a informação sobre os emitentes estava viciada, a obrigação de ressarcir os prejudicados recai, inegavelmente, sobre quem “branqueou” os vícios (os Auditores), sobre quem consentiu a promiscuida que está na origem desses prejuízos (CMVM e BdP) e sobre quem não exerceu os seus cargos com lealdade (as pessoas que integravam simultaneamente as Direcções Superiores do BES e dos emitentes).
- E recairá também sobre o BES se se provar que ele foi negligente na forma como lidou com a informação sobre os emitentes e/ou as emissões do papel comercial que encaminhou para as carteiras dos seus clientes. É o que passo a comentar.
- As actuações (d), (g), (h) suscitam outro tipo de questões porque, como era conhecido, o BES tinha um papel decisivo no financiamente do GES. Quando vendia papel comercial do GES aos seus clientes, que interesse movia o BES: O dos seus clientes (que pretendiam investir de acordo com determinados requisitos)? O do GES (que pretendia financiar-se sem dificuldade)? Ou o interesse próprio (sob pressão para poupar capital e liquidez)?
- Não haveria como esconder o conflito de interesses neste caso - ainda que tudo tivesse corrido bem, que não correu. Por isso, é incompreensível que CMVM e BdP continuem a assistir, impávidos, a casos semelhantes que envolvem outros Bancos.
- Afastando, por momentos, a relevantíssima questão do conflito de interesses, não é indiferente o tipo de serviço de gestão de carteiras prestado pelo BES:
- Na gestão discricionária (g) - só há que ver se o papel comercial emitido pelo GES se enquadra na política de investimentos contratada - e se não enquadrar, as operações são anuláveis, respondendo o BES pelos prejuízos;
- Na gestão não discricionária (h) - só o suporte documental das operações fará prova.
- Se, em qualquer destas duas qualidades, o BES não conseguir exibir o suporte documental de uma operação, ou se a documentação exibida não permitir a sua reconstituição, ela é anulável - e o BES terá de ressarcir o cliente assim prejudicado. Caso contrário, a operação é válida - e o investidor terá de se conformar com o prejuízo.
- Seja como for, não há lugar a soluções universais, contrariamente ao que a CMVM, cedendo à demagogia, vem defendendo. Há, sim, que analisar carteira a carteira, operação a operação. Dá trabalho, mas não tem alternativa.
- Enfim, as declarações de “paga-se / não se paga” só obrigarão o BES se decorrerem de decisões perfeitas à luz da lei e dos estatutos da instituição. Se assim não for, são declarações proferidas a título meramente pessoal. Seja na acção (as tais declarações), seja na omissão (o referido silêncio sobre o facto de a informação divulgada pelos emitentes do papel comercial estar viciada), a regra terá de ser sempre a mesma. (cont.)
MAIO de 2015
PS: Os comentários sobre o caso do papel comercial terminam aqui.
A. PALHINHA MACHADO