ARQUIMEDES E O TANGO
Das enciclopédias:
Técnico – o concreto e material em contraposição com a abstracção e a intelectualidade;
Intelectual – o abstracto e espiritual em contraposição ao concreto e à materialidade.
Duvido que se possa ser só técnico ou só intelectual porque quem for exclusivamente técnico não passará de um calhau e quem for apenas intelectual não passará de um lunático.
Como diz a sabedoria popular, no meio está a virtude. Mas é claro que uns serão mais isto e outros mais aquilo sendo impensável um poeta não conhecer o princípio de Arquimedes e um engenheiro ignorar a existência do tango. Portanto, entre Arquimedes e o tango, todos ocupamos uma posição algures entre os dois extremos.
Economista, dediquei-me à profissão muito antes da licenciatura pois eram os temas económicos que me interessavam e tudo o mais era um conjunto de fait divers, de diletantismo, ocupação de tempos livres. Poesia, música, pintura, literatura, filosofia, religião, tudo servia para o mesmo: ocupar os tempos livres. Mas como no meu caso a desobrigação era muito preenchida com a equitação, pouco ou nada sobrava para a intelectualidade. E assim me constitui um calhau cavaleiro.
Só que, como alguém disse quando viu a vida a andar para trás, «há mais vida para além do Orçamento»[1]. Também houve quem afirmasse que «nem só de pão vive o homem»[2].
Então, confirmando aos dez anos de aposentadoria que a salvação do mundo não dependia do meu pensamento económico, decidi gozar a vida com maior intensidade e profissionalizei-me em tempos livres. Para além do que, muito ou pouco, tenha que ser, só há agora o que eu quero que seja.
Vai daí, acabei com o monopólio da prosa e passei a não mais ignorar quem escreve em verso, li tranquilamente alguns diálogos platónicos, a começar por Górgias, passei a ter à mão de semear um dicionário de filósofos, estudei a história da Filosofia do Professor Fritz Heinemann, li muito pausadamente Paul Ricoeur e Emmanuel Levinas (a propósito de Emmanuel, não traguei Kant nem à lei da bala), adorei Max Weber e a sua «Ética Protestante», deliciei-me com a Teologia das diversas religiões que o Padre Joaquim Carreira das Neves me apresentou em livro, do mesmo Autor devorei o pensamento de Lutero, “und so weiter...” como diria a minha professora de alemão.
Ultimamente estou a fazer um périplo pelos nobelizados da literatura com evidente exclusão do «pensador de Lanzarote» mais conhecido como «Zé do Nobel». Como se diz lá p’às bandas d’Ázinhaga, «ná, a esse nã n’o aturo».
E vão o Steinbeck, o Thomas Mann, o Hemingway, o Samuel Becket e o mais que se há-de ir vendo...
Se agora reli Steinbeck e Hemingway, com Mann e Becket foram estreias. Conhecia Mann por interposta pessoa (Rob Riemen) e, a despropósito, tenho a dizer que gostei muito de Becket. O tipo tinha de certeza uma forte pancada e escrevia de um modo que eu não imaginava possível. Sim, confirmo que gostei mas a partir de certa altura comecei a cansar-me deste livrinho que li há pouco, «Novelas e textos para nada».[3] Mas houve passagens que não esquecerei facilmente como «aquela delicadeza que troça do corcunda por causa do tamanho do seu nariz» (pág. 12) e o ritmo em que ele diz que gostava de passear – «eu que normalmente era ultrapassado pelos doentes de Parkinson» (pág. 39). E fico-me por aqui para ter a certeza de que não choco quem não esteja preparado para o nonsense becketiano.
Para já, segue-se Orhan Pamuk.
E para que o tango não ganhe a batalha pelo domínio dos meus tempos, lá vou lendo uma coisa ou outra sobre o que se passa na política e na economia, ou melhor, na economia política.
Continuemos...
Fevereiro de 2016
Henrique Salles da Fonseca
[1]Jorge Sampaio na sessão solene dos 29 anos do 25 de Abril de 1974
[2] Mateus 4:4 – E Jesus respondeu: Está escrito que nem só de pão viverá o homem, mas de toda a palavra que sai da boca de Deus.
[3] Assírio & Alvim, tradução de Maria Jorge Vilar de Figueiredo, edição de Abril de 2006