Vietnamita exilado 37 anos em Lisboa no final do século XVIII
“Um Moisés Vietnamita”, livro publicado nos EUA pelo professor da Universidade da Califórnia George E. Dutton que conta a história de um padre católico vietnamita que viveu exilado em Lisboa durante 37 anos, nos séculos XVIII/XIX.
Philiphê Binh era um padre católico que, em 1796, viajou da região de Tonkin, no Vietname, para Lisboa com o objectivo de conseguir a nomeação de um bispo para a sua comunidade de ex-jesuítas e assegurar a sua continuação.
“A sua viagem para a Europa foi um notável acto de coragem e convicção e a sua determinação feroz durante os anos da missão é algo que deve ser celebrado”.
O padre Binh “representava uma comunidade católica resiliente que interagiu com o catolicismo global nos seus próprios termos, sem medo de tomar grandes riscos para defender as suas práticas e tradições.”
Os primeiros católicos a chegar ao Vietname foram missionários portugueses, no início do século XVI, mas o seu sucesso foi muito limitado até à chegada dos jesuítas, um século depois, que foram capazes de estabelecer a religião no país.
A viagem do padre Binh acontece quase cem anos depois, quando os católicos do país “vigorosamente se envolveram na política da igreja para defender a sua distinta herança católico-portuguesa.”
No livro, que contou com a colaboração do português Raul Máximo da Silva, Dutton mostra como as crenças, histórias e genealogias do catolicismo de origem portuguesa “transformaram a forma como os vietnamitas pensam sobre si e vêem o seu lugar no mundo.”
O americano decidiu escrever esta história depois de encontrar as 12 mil páginas de manuscritos do padre Binh enquanto pesquisava o seu primeiro livro sobre a revolta camponesa de 1831.
“Os escritos do padre Binh permitiram-me ver como é que o mundo católico era visto a partir de uma perspectiva vietnamita. Também me intrigou o facto de ser um raro visitante asiático na Europa daquele tempo que deixou extensos comentários sobre como foi a sua vida em Portugal durante quase 40 anos”.
O Autor explica que “outros autores já escreveram sobre os primeiros visitantes asiáticos na Europa mas poucos foram capazes de o fazer de forma extensa, na perspectiva do próprio asiático.” “Finalmente, achei que esta era uma correcção importante para a história do Vietname, em que muita ênfase é colocada nos contactos com França e pouca atenção é dada às ligações com Portugal”, acrescenta.
Neste momento, cerca de sete por cento dos vietnamitas são católicos (perto de seis milhões de pessoas), a quinta maior população católica da Ásia.
Dutton acredita que o livro é importante porque, num país onde 45 por cento da população pratica a religião tradicional vietnamita, “a história dos católicos é muito frequentemente esquecida e marginalizada.”
Em 1612, o xogunato de Edo (actual Tóquio) decretou a proibição do cristianismo nos distritos da sua jurisdição, estendendo-a posteriormente a todo o país e forçando a reconversão de todos os católicos. Os que se opuseram a esta medida foram condenados à tortura e à morte ou expulsos do território para Manila e Macau, em 1614.
Regressado da Cochinchina, Fernando da Costa, um português de Macau, relatou aos padres de Macau o que tinha visto naquele reino e manifestou-lhes a sua convicção de que seria possível convertê-lo à fé cristã.
Por isso, no início do ano de 1615, os padres Francesco Buzomi e Diogo de Carvalho desembarcaram na Cochinchina. Após o regresso do padre Diogo de Carvalho ao Japão em 1624, onde acabaria por ser condenado à morte, coube ao padre português Francisco de Pina, ido de Macau em 1617, ocupar o seu lugar.
Foi na Missão de Hoi An, cidade onde estava estabelecida a residência dos jesuítas naquela região do Mar do Sul da China, no contacto diário com os locais, que Francisco de Pina se apaixonou pela língua anamita e se auto propôs a realizar uma tarefa exigente e pioneira: romanizar a língua escrita do actual Vietname, que até então, era apresentada sob o antigo registo baseado em ideogramas de feição chinesa.
Para que a difusão da fé cristã fosse eficiente era fundamental que fosse feita na língua local. Francisco de Pina foi o primeiro europeu a interessar-se pelo estudo da língua anamita e a falá-la fluentemente.
A língua vietnamita tem seis tons que estão na maioria das palavras sendo os mesmos definidos pelos acentos. Quase todas as palavras são monossilábicas, não tem declinações nem conjugações mas sim pequenas partículas que determinam o género das palavras e os tempos dos verbos. É uma língua com sons próprios e uma musicalidade própria, parecendo ser falada e cantada ao mesmo tempo. Durante séculos, devido à forte influência da cultura Han (dinastia chinesa), a língua vietnamita foi falada com uma fonética diferente da língua chinesa e escrita através de ideogramas chineses. Os vietnamitas não pronunciavam os ideogramas Han em chinês mas sim em sino-vietnamita, uma forma de pronunciar criada pelos próprios. Por volta do século X foi adoptado o ideograma Han como modo de escrita, o que deu origem à criação da escrita nacional denominada Chu Nom, um conjunto de ideogramas chineses e sinais que permitiam descrever sons e palavras vietnamitas sem raiz na terminologia chinesa. Estas palavras representavam metade do vocabulário vietnamita sendo a outra metade composta pelos termos sino-vietnamitas de origem chinesa.
A tarefa de romanização da língua anamita tornou-se complexa e morosa pois à medida que iam chegando novos missionários, oriundos de Portugal, Itália e França, Francisco de Pina tinha, simultaneamente, que continuar o seu trabalho e ensinar a língua anamita aos seus novos discípulos. Os frutos do seu trabalho ficaram patentes na quantidade de missionários falantes de anamita (35), muitos deles portugueses, que participaram, em 1645, numa reunião em Macau para definir a fórmula de baptismo, não em latim como era obrigatório mas sim em anamita para que, no preâmbulo de um baptismo, os paroquiantes locais entendessem bem o dogma católico de Deus e da Santíssima Trindade e não o confundissem com a existência de três Deuses.
Cinco desses missionários foram considerados peritos em língua anamita, com destaque para Gaspar do Amaral, considerado, então, o melhor especialista em língua anamita.
Pierre Huard realçou o papel dos portugueses na elaboração dos dicionários bilingues “lusito-annamites”. Gaspar do Amaral redigiu um dicionário Anamita-Português e António Barbosa e Manuel Ferreira redigiram, cada um, um dicionário Português-Anamita. Todos os manuscritos nos quais foram registadas as formas arcaicas e as primeiras transcrições estão dadas como desaparecidas. O dicionário Viet-Latin do padre francês Pierre Pigneau de Béhaine, mais tarde Bispo de Adran, e o dicionário trilingue de Alexandre Rhodes são os únicos trabalhos de lexicografia que sobreviveram até hoje.
Dos missionários chegados à Cochinchina em 1624, distinguiu-se o jovem padre jesuíta francês, Alexandre de Rhodes, discípulo de Francisco de Pina e que mais tarde viria a reconhecer que os sermões do padre Francisco de Pina, em língua anamita, eram bem mais úteis do que os dos padres Emanuel Fernandez e Buzomi, pregados através de intérpretes.
A morte prematura de Francisco de Pina em 1625 fez com que Alexandre de Rhodes passasse a ser o seu precursor, prosseguindo com a sua obra, divulgando o alfabeto romanizado da língua vietnamita e elaborando uma gramática anamita e um dicionário Anamita-Português–Latim o que, erradamente, lhe conferiu o título de “Pai do Quoc Ngu”, relegando para segundo plano, durante séculos, Francisco de Pina, o jesuíta português que esteve na base deste inédito trabalho linguístico.
Georges Taboulet na sua obra “ La Geste Française en Indochine” afirmou que Alexandre de Rhodes não tinha inventado o Quoc Ngu. Segundo este, a transcrição fonética da língua anamita, através dos caracteres latinos e sinais convencionais, resultou de uma criação colectiva na qual participaram, de forma notável, os padres: Francisco de Pina, Gaspar do Amaral, António Barbosa e Christoforo Borri.
Os missionários utilizaram os caracteres latinos para transcreverem foneticamente a língua anamita. O modo de transcrição da língua anamita continha particularidades fonéticas do português, o que contribuiu para que a língua portuguesa tivesse ficado, historicamente, ligada a este processo de latinização.
Alexandre de Rhodes apenas teve o mérito de ter codificado, regularizado e vulgarizado a nova escrita.
As obras da autoria de Alexandre Rhodes: O Catecismo e o “Dictionarium Annamiticum, Lusitanum et Latinum”, com um manual de gramática anamita, publicadas em Roma, em 1651, marcaram a aparição do Quoc Ngu e concederam ao jesuíta francês um estatuto de superioridade relativamente aos outros missionários. Todavia, a publicação das suas obras ocorreu na segunda metade do século XVII, quando teve lugar o aperfeiçoamento das regras de transcrição do Quoc Ngu, denominada por segunda fase.
A primeira fase, referente à pesquisa e ensaio da transcrição da língua anamita, através da utilização de caracteres latinos, até à formação gradual do Quoc Ngu, ocorreu na primeira metade do século XVII cabendo, nessa fase preliminar, todo o mérito aos missionários portugueses Francisco de Pina, Gaspar do Amaral e António Barbosa e ao missionário italiano Christoforo Borri, o segundo europeu, depois de Francisco de Pina, a falar fluentemente a língua vietnamita.
No “ad lectorem” do seu dicionário, Alexandre de Rhodes prestou homenagem ao seu mestre Francisco de Pina reconhecendo os seus profundos conhecimentos da língua anamita e realçando o facto de ele ter sido o primeiro padre a pregar naquela língua.
Outro pormenor que não abona a favor de Alexandre de Rhodes tem a ver com os manuscritos dos dicionários de Gaspar do Amaral e António Barbosa, deixados por estes em Macau quando dali partiram, em missão religiosa, vindo a naufragar ao largo de Macau devido a um tufão, em 1646. Alexandre de Rhodes, terá então mudado a sua residência da Cochinchina para Macau onde, tal como outros missionários, terá consultado os manuscritos daqueles dois padres portugueses. No prefácio do seu dicionário, Alexandre Rhodes assumiu tê-lo feito.
Ainda em Macau, a missão jesuíta local terá acusado Alexandre de Rhodes de plágio quando este imprimiu e assinou um relatório sobre a situação no Japão, dirigido à princesa da Dinamarca, o qual havia sido escrito por outro missionário jesuíta.
O próprio dicionário Anamita-Português-Latim com mais de 8 mil verbetes em língua anamita traduzidos para o português e para o latim, publicado em Roma em 1651, como sendo de sua autoria, suscita, ainda hoje, muitas dúvidas sobre quem terá sido o seu verdadeiro autor. Segundo o professor vietnamita Pham Van Huong, da Universidade de Bordéus, na capa do dicionário, Annamiticum está escrito de forma errada: Annnamiticum (com três enes), o que põe em causa os seus “bons” conhecimentos, não só do Quoc Ngu mas também de latim.
No interior do dicionário, outros pormenores reforçam a convicção de que terá sido um português e não um francês, o autor daquele dicionário. A pronúncia da vogal u é mencionada à portuguesa e não à francesa. Segunda-feira e Terça-feira estão traduzidas como: “Thu hai” (segundo) e “Thu ba” (terceiro). Só na língua portuguesa existem Segunda-feira e Terça-feira para designar dias da semana.)
Também a forma como se escreve Portugal em vietnamita (Bo Dao Nha) confirma a influência da língua portuguesa. Se o som correspondente ao fonema nh tivesse sido criado por Alexandre de Rodes, então esse fonema teria sido gn em vez de nh.
Dúvidas sobre a verdadeira autoria deste dicionário poderão ter estado na origem da recusa de uma segunda missão na Cochinchina, quando Alexandre de Rhodes a solicitou junto da Igreja Católica Portuguesa.
O falecido Padre Manuel Teixeira, jesuíta de Macau, sempre teve uma opinião muito pessoal sobre este assunto. Para ele, Alexandre de Rhodes não elaborou aquele dicionário. Limitou-se a assinar, como sendo de sua autoria, um dicionário que nunca escreveu.
Também na obra do jesuíta italiano Christoforo Borri “Relatione della nuova missione delli PP. della Compagnia di Giesu, al regno della Cocincina”, publicada em Roma, em 1631, apareceram pela primeira vez frases na escrita do Quoc Ngu, sob a forma de caracteres impressos, ainda sem acento tónico. Um Quoc Ngu anterior ao constante das obras de Alexandre de Rhodes.
A actual língua vietnamita não se escreve através de ideogramas como acontece nas línguas chinesa e japonesa ou noutros idiomas asiáticos. Embora tenha acentuação e sintaxe particulares, com acentos gráficos próprios, adaptados à pronúncia tonal da língua, apresenta-se-nos através dos mesmos caracteres utilizados na língua portuguesa, organizados em torno de um alfabeto. Foi Francisco de Pina quem iniciou o processo de latinização da língua anamita que viria a concretizar-se no Quoc Ngu, a escrita oficial da actual língua vietnamita, e no desenvolvimento e adopção oficial de um registo romanizado distinto do chinês.
Em 1945, Ho Chi Minh, primeiro presidente da República Democrática do Vietname, decretou que o Quoc Ngu seria a escrita oficial da língua vietnamita. A adopção do Quoc Ngu permitiu combater o analfabetismo, porque era mais fácil de ser aprendido que os ideogramas da escrita chinesa, e reconquistar a dignidade da cultura vietnamita que assim pôs termo à influência milenar da cultura chinesa.
Homem de cultura inesgotável e de pareceres fundamentados, o meu amigo José Augusto Fonseca já citou Vo Nguyen Giap no magnífico texto que nos ofereceu sobre o tempo e a memória na Indochina mas essa é uma personalidade inesgotável e eu não posso deixar de dizer que em toda a minha viagem pelo Vietname me lembrei dele. E se a Ho Chi Minh vi como o cérebro da construção da independência política vietnamita, a Giap continuo a ver como o braço físico dessa independência.
Vo Nguyen Giap nasceu em 1911 e morreu em Hanói em 2013 aos 102 anos de idade. General, fundador e comandante supremo do Exército do Povo do Vietname e um dos mais importantes estrategas militares do século XX, comandou as forças que derrotaram o Exército Francês em Dien Bien Phu em 1954 e o Exército dos EUA em 1975 logrando finalmente a reunificação do Vietname independente.
A título de curiosidade – não esqueçamos a fé budista que traça o karma de cada um à nascença – Vo significa força e Giap, armadura. É claro para mim que essa leitura influenciou decisivamente, pela fé, toda a vida da criança que então nascia.
Fluente em francês, em 1925 (com 14 anos de idade) já fazia parte de organizações clandestinas que lutavam contra a ocupação francesa do seu país; em 1933 foi expulso da Universidade de Hanói por se envolver em actividades subversivas e no ano seguinte ingressou no Partido Comunista da Indochina.
Passou então a ensinar História, mas ocupou mais o seu tempo a organizar colegas e alunos no âmbito da luta revolucionária. Em 1934 casou-se com a tailandesa Dang Thi Quang, também ela militante comunista que acabaria os seus dias sob tortura na prisão.
Ilegalizado o Partido Comunista em 1939, segue-se a perseguição política pelas Autoridades francesas em toda a Indochina (Vietname, Camboja e Laos) e Giap e Ho Chi Minh fogem para a China onde o futuro general se inicia na táctica de guerrilha.
No início da década de 1940 começa a carreira militar em operações de guerrilha na fronteira com a China que, à semelhança do Vietname, estava sob o domínio japonês e em 1941 participa na fundação da Liga Vietnamita para a Independência, mais conhecida por Viet Minh.
Quando, em 1945, os japoneses se renderam, Ho Chi Minh tomou o poder na parte norte do Vietname estabelecendo a capital em Hanói e Giap foi nomeado Ministro da Defesa e comandante do Exército. Assim se formou o primeiro núcleo das Tropas de Libertação do Povo com apenas 34 homens.
Giap e Ho Chi Mihn em Hanói, 1955.
Expulsos de Hanói por um contra-ataque francês, os nacionalistas meteram-se na selva e deram inicio à guerrilha que se prolongou até 1954. E foi a partir do núcleo inicial de 34 homens que Giap constituiu o aparelho militar que surpreendeu os franceses em Dien Bien Phu montando uma demorada operação de cerco da base francesa com milhares de civis a serem mobilizados para transportarem em cestas ou à mão todo o equipamento de artilharia necessário para contrabalançar o poderio francês.
General Giap, em 2008 (Ricardo Stuckert/PR/ABr).
Da derrota dos franceses resultou a divisão do Vietname com o Norte a ser governado pelos comunistas liderados por Ho Chi Minh e o Sul sob protecção americana. Mas os vietnamitas não desistiram da reunificação e a partir de 1959 deu-se início à segunda fase da Guerra do Vietname.
Armadilha
Entrada de túnel em Cu Chi, arredores de Saigão
Vietcongs em descanso
Giap, à frente das forças norte-vietnamita e dos mobilizados e simpatizantes no sul, os vietcongs, desenvolveu uma desgastante guerrilha por todo o Vietname do Sul que evoluiu para combates nas ruas de Saigão. E foi em 1975 que se alcançou a reunificação do país.
Giap continuou Ministro da Defesa e, por um curto período, foi Primeiro-Ministro mas em 1991 retirou-se em definitivo da vida pública.
Eis de quem me fui lembrando durante a visita aos túneis que os vietcongs fizeram em Cu Chi, arredores de Saigão, onde lhe «vi a sombra» por trás de cada armadilha e onde muitos americanos perceberam o que é a força de vontade de um povo que não olha a sacrifícios para se libertar de estrangeiros.
E daqui voámos para o Camboja onde nos aguardavam cenários diferentes. Já conto...
Se eu fosse um desses azougados que empunha cartazes e grita nas ruas, apetecer-me-ia gritar «VIVA SAIGÃO!!!».
Lembrei-me de Pasárgada...
Em Pasárgada tem tudo
É outra civilização
...
Tem prostituta bonita
Para a gente namorar
...
— Lá sou amigo do rei —
Terei a mulher que eu quero
Na cama que escolherei
Vou-me embora pra Pasárgada!
Foi em Saigão que vi as mulheres-polícias mais bonitas que se pode imaginar, de capas de revistas, de «fazerem parar o trânsito», à la lettre. Foi uma pena não ter tido a rapidez suficiente para as fotografar porque nunca tinha sido posto perante a hipótese de andar a fotografar polícias. É que os da minha terra nunca me despertaram tais apetites e o hábito por vezes faz o monge. A «non plus ultra» estava na praça da Catedral e quando, refeito do espanto, peguei na máquina fotográfica, já ela se metia num carro-patrulha assim ficando fora da objectiva. Sim, há que voltar a Pasárgada.
Quando cheguei à Ópera, vi nas varandas que correm ao longo das fachadas laterais umas cabecinhas de quem estava sentado a tomar um refresco durante o intervalo de algum espectáculo e, aproximando-me, vi que se tratava de europeus saboreando o final da tarde depois de algumas claves de Sol e antes de outras de Fá. Regressei aos tempos coloniais, à nostalgia da longínqua Paris, só faltando quem os abanasse. Faltando também algumas guerras que os atirasse dali para fora como «donos» da casa que não era deles. Mas agora, postos os pontos nos ii, lá estavam eles a gozar a temperatura que já acham amena. E a subtileza da situação vi-a confirmada no cartaz anunciando como primeira peça do concerto daquela tarde o «Dueto das Flores» da «Lacmé» de Léo Delibes interpretado por duas cantoras minhas desconhecidas, obviamente vietnamitas de quem não fixei os nomes e que, portanto, não consigo procurar na Internet. Mas, para dar o tom, que fique o dueto pela Anna Netrebko e pela Elina Garanca:
À hora por que lá passámos, estava vedado o acesso de turistas à Catedral pelo que o meu amigo Pepe me entregou a sua máquina fotográfica e entrou como crente trazendo de volta a informação de que toda a fachada interior do lado do Evangelho está dedicada a Santo António de Lisboa (não de Pádua) e a fachada do lado da Epístola está dedicada a Nossa Senhora de Fátima. Não há dúvida, Portugal é muito maior do que dele fazem os telejornais.
E era no meio da azáfama desta praça tão central que eu me perguntava como seria tudo aquilo no tempo das guerras com os de cada lado a imaginarem «em cada rosto um inimigo» como na cantiga de Grândola... Deve ser horrível viver numa guerra civil com os membros duma mesma família a optarem por campos opostos. E, contudo, as evocações de Stº António e de Nossa Senhora já lá estavam.
Foi também nesta praça que me lembrei das imolações dos monges budistas em protesto contra as medidas tomadas pelo Governo do então Vietname do Sul relativamente à liberdade religiosa. Curiosamente, encontrara num templo-museu em Hué o carro que figura na foto mais conhecida deste tipo de ocorrências:
Ei-lo em Hué:
Liberdade religiosa ou medidas de política contra monges politicamente hostis?
Foi um deleite ler este cocktail de provas de que a História se repete, INDOCHINA – O TEMPO E A MEMÓRIA
Valéry Giscard d'Estaing e General Bigeard
De entre tudo, recorto a figura do militar Bigeard, que chegou a general, um dos mais consagrados da França. Um verdadeiro patriota, a síntese perfeita da coragem física com a coragem moral.
Astray e Franco
Recorto também a figura de Unamuno, cuja inteligência e desassombro lhe permitiu responder assim ao general Astray:
- Este é o templo da inteligência e eu sou seu sumo-sacerdote! Vós estais profanando este sagrado recinto. Tenho sempre sido, digam o que digam, um profeta de meu próprio país. Vencereis porque tendes sobrada força bruta. Mas não convencereis porque para convencer há que persuadir. E para persuadir lhes falta algo que não tendes: razão e direito. Mas me parece inútil cogitar de que pensais na Espanha.
No entanto, não creio que se possa concluir com rigor científico que a História se repete. Não será que é mais a incapacidade de o homem aprender com os seus erros?
1 - Uff. Há mais de quinze dias que, " A Bem da Nação" não era "alimentado". Mandei "e-mail" (fiquei inquieto) e mandaram-me dar uma volta. Ná. Aqui há coisa. E tenho de saber o que se passa. E liguei para o Henrique. Susto dos grandes. Meu. A voz vinha num sumiço de muito longe. Chegava fraquinha. E anunciava: estou no Vietname. E fraquinho fiquei eu. Imaginei logo, o que estariam a fazer, os seguidores da segurança Vietcong ao Amigo Henrique. Ele, em visita ao País ter-se-ia equivocado (acontece aos melhores) confundiu Ngo Dinh Diem (VS) com Ho Chi Minh (VN), confundiu o general Giap líder militar do Vietminh, e depois ministro da Defesa do Vietname do Norte, com o general Cao Ky do Vietname do Sul (CEM da FA), que não podia com o outro e... foi dentro para interrogatório. O que não estaria a sofrer. Depois, lá vieram, quase 20 dias passados, textos sobre o Vietname. Desconfiei de início (deveria ser truque da segurança), mas agora acredito mesmo que está em Lisboa. Pelos belíssimos textos com que nos brinda. Da minha parte, só agradecimentos.
2 - Curiosamente o Henrique (e porque gosto de datas redondas) foi à Indochina nos 60 anos da Batalha de Dien Bien Phu (1954). E apesar do heroísmo de ambos os contendores (porque as baixas dos dois lados foi brutal) não posso deixar de recordar o Tenente Coronel Bigeard, comandante do regimento de paraquedistas da Legião Estrangeira, que convocou os seus militares, onde lhes perguntou, quais os que queriam saltar sobre o campo cercado (e para romper o cerco, as baixas seriam muitas) e todos deram um passo em frente. Então, olha para eles, e diz-lhes: vão todos fazer a barba, porque comigo, qualquer homem só pode morrer barbeado de fresco. E saltaram, e romperam o cerco, mas o destino de Dien Bien Phu, e da França na Indochina estava selado. (A Batalha de Dien Bien Phu - Jules Roy).
3 - Mas o Henrique foi também ao Vietname, nos 50 anos do envolvimento (agora às claras) dos americanos no conflito vietnamita (1964). E tudo começou, quando o contratorpedeiro Maddox foi atacado por vedetas torpedeiras do Vietname do Norte (há quem sustente que não houve ataque), e os EUA consideraram que o VN tinha ido longe de mais. Lyndon Jonhson (sucessor de JFK) ficou logo com vontade de pôr o dedo no gatilho das FA's americanas. No dia 7 de Agosto de 1964 a Câmara dos Representantes aprovou por unanimidade (416 votos), e o Senado, com apenas dois votos contra, uma Resolução que dava ao Presidente americano "carta branca" para atacar o Vietname do Norte. Como resultado, de 1965 a 1968, de 3500 marines enviados para o Vietname, passou-se para 500.000 militares. Foi obra. Mas como dizia Frantz Fanon, quem sente a Pátria na sola dos pés está disposto a tudo. E foi o que aconteceu. Os franceses retiraram e os americanos também. Se não se acredita naquilo que se faz, o resultado é sempre este. (Com o apoio de: Os Anos de Salazar - volume 20). E já agora. Aqui. Porque Lyndon Jonhson enviou nesta altura mensagem a Salazar onde lhe colocava a questão relacionada com o golfo de Tonquim. As voltas que o mundo dá. Na altura o Secretário de Estado americano era Dean Rusk e o Secretário da Defesa era Robert McNamara. E (cá para nós) o Secretary Dean Rusk a propósito deste assunto levou um resmungão (?) de AOS. Pudera: querem apoio moral no Vietname, e quando lhes falo em África...nada.
4 - E já agora. 50 anos do golpe militar que afastou João Goulart da Presidência brasileira. E não é que este queria uma Reforma Agrária no Brasil, estender o voto aos analfabetos e heresia das heresias legalizar o Partido Comunista Brasileiro de Luís Carlos Prestes? O Presidente não devia estar bom da cabeça. E para a tratar o general Castelo Branco (CEME), com o apoio dos generais Artur Costa e Silva e Cordeiro de Farias, com os governadores de Minas Gerais, Magalhães Pinto, e de Guanabara, Carlos Lacerda, resolveram colocar o Presidente Goulart no Uruguai fazendo movimentar as tropas do general Olímpio Mourão Filho comandante da 4ª Região Militar, em direcção ao Rio de Janeiro. E o destino de Goulart foi logo ali traçado.
5 - E não quero maçar mais. Mas hoje estive na Biblioteca Municipal de Coimbra. E ali estava a evocação dos 150 anos do nascimento de Miguel de Unamuno. O que escreveu "Por Terras de Portugal e Espanha" e "Portugal Povo de Suicidas", que fizeram com que admirasse mais este "gigante" das letras espanholas. Porque a minha admiração vem do diálogo (?) de Unamuno com o general Millán Astray a 12 de Outubro de 1936. Unamuno começara por apoiar a República, mas foi contra a forma como a mesma queria fazer a Reforma Agrária e o modo como tratava a política religiosa e... outras questões mais. E Unamuno de apoiante da República passa a apoiante dos sublevados de 18 de Julho de 1936. Mas face à prisão e assassinato de professores da sua Universidade e de conhecidos seus, revolta-se também contra este estado de coisas. E foi no salão Nobre da Universidade de Salamanca que tudo aconteceu. O general Millán Astray no meio da euforia dos sublevados, após discurso, disse: "Muera la inteligência. Viva la muerte". Unamuno não se contém: "Estáis esperando mis palabras. Me conocéis bien, y sabeis que soy incapaz de permanecer en silencio. A veces, quedarse calado equivale a mentir, porque el silencio puede ser interpretado como aquiescência". E desancou o general nacionalista. Depois disto, Unamuno seria afastado e pouco durou. Abatido, desolado pela morte de sua esposa e vivendo praticamente em situação de prisão domiciliária, morre pouco depois, a 31 de Dezembro de 1936.
6 - O texto é longo. Mas a tua viagem à Indochina foi o que me sugeriu. Foi tempo do Tempo e Memória. Que não é lembrada e ensinada onde devia ser. E, por isso, a História repete-se para espanto (de muitos) e já aguardada (por poucos). Mas temos de nos habituar. Sem ficar espantado, com o muito que nos aconteceu, e...está a acontecer. E olha. Se entenderes, publica A Bem da Nação.
A zona turística no Vietname central é uma cidadezinha próxima de Danang chamada Hoi An e é ali que os hotéis se estendem ao longo da costa marítima com uma notável concentração de qualidade, todos de 5 estrelas e de luxo e com praias privativas (a praia do nosso tinha sido levada por um tufão e as ondas quase rebentavam dentro da piscina ultrapassando uma primeira linha de big bags protectores e vindo morrer na segunda barreira); os de 4 estrelas não têm acesso directo à praia. Não descortinei nenhum que pudesse adivinhar de capitais portugueses. Porquê, se por ali escorre tanto dinheiro?
Sobre Hoi An «falam» melhor as fotografias do que as palavras...
Interior da ponte dos japoneses
O nosso grupo numa rua igual a todas as outras
Num Estado «socialista», o único tipo de transporte público que vi consiste num triciclo de propriedade do cidadão que o empurra à força de pedal
De Danang rumámos por estrada a Hué passando por montanhas imponentes e muito penhascosas em que eu me afastava da janela do autocarro com medo dos precipícios que insistem em me incomodar. Mas esse tormento de quem padeça do mesmo mal (não chega a ser atracção do abismo mas...) está por pouco pois estão em construção os túneis por onde passará uma auto-estrada que ligará as duas cidades. Também aqui não vi empresas de obras públicas que eu pudesse adivinhar de capitais portugueses. Porquê, se Portugal parou com esse tipo de trabalhos e o Vietname parece apostado neles? Eu já me contentaria se soubesse que alguns gabinetes de engenharia portugueses andavam por aquelas bandas mas temo que também isso não aconteça. Por onde anda a nossa diplomacia económica?
Nas montanhas vê-se uma importante acção florestal que dá a matéria-prima necessária à indústria papeleira (no que o Vietname se tornou auto-suficiente) e regressados às planícies, intensa actividade agrícola com arrozais a perder de vista.
Hué, antiga cidade real, é historicamente interessante mas foi nas suas cercanias que comecei a ficar um pouco farto de pagodes e templos... Em compensação, deliciei-me com as escolas um pouco por toda a parte cheias de crianças e jovens.
A propósito de Hué ter sido cidade real, notei um pouco por todo o país um à-vontade enorme no hastear da bandeira monárquica. Não se colocando a questão do Regime, os vietnamitas não apagaram a História mas nos idos belicosos passaram as bainhas das espadas republicanas pelas gargantas dos monárquicos, o que nós, muito bem, não fizemos. Não se pode ter tudo...
O nosso guia no Vietname central dizia chamar-se Óscar mas não explicou por que motivo tem nome cristão. Também ele aprendeu espanhol em Cuba onde se licenciou em engenharia civil, está reformado mas a pensão é pequena e vê-se na necessidade de continuar a trabalhar. E foi precisamente a propósito dessa necessidade que referiu o baixo nível salarial dos professores primários e secundários que dão aulas suplementares aos alunos cujos pais paguem por fora esse esforço extra. Assim se acentuam as desigualdades sociais pela via da educação. E isto acontece num país que se diz socialista. De qualquer modo, fiquei com a ideia de que a escolarização faz o pleno não só naquela região mas talvez mesmo em todo o país.
Ainda não foi desta vez que levantei a questão sindical. Pareceu-me que o guia não era suficientemente isento para me poder dar uma resposta aceitável, sem propaganda partidária.
Foi de Hué que voámos para sul rumo a Ho Chi Minh City, a metrópole composta por cerca de 50 municípios que engoliu Saigão. Esta, bem orgulhosa dos seus pergaminhos europeizados, é uma cidade de grande qualidade urbanística de que contarei mais à frente...
(continua)
Lisboa, 10 de Dezembro de 2014
Henrique Salles da Fonseca
(no topo da estrada de montanha entre Danang e Hué)
Da baía de Halong rumámos ao aeroporto de Hanói para voarmos até Danang, o centro do Vietname. Despedimo-nos então de um dos melhores guias turísticos que alguma vez tivemos: professor universitário, amável e despretensioso que, esquecia-me de contar, tinha feito o Serviço Militar Obrigatório durante a guerra com a China passando à disponibilidade com o posto de Capitão.
E que guerra foi essa? Um pouco envergonhado por não saber, tentei perguntar sem dar muito nas vistas mas acabei por ter que ir à Internet procurar. No dia seguinte àquele em que o Juan referira uma batalha perdida em que ele próprio participara, já me senti mais à-vontade para fazer perguntas.
A Guerra sino-vietnamita de 1979 durou só um mês, de 17 de Fevereiro a 16 de Março, com ambos os lados a cantarem vitória na certeza, porém, de que as forças chinesas retiraram do Vietname e as forças vietnamitas continuaram no Camboja para confirmarem o afastamento de Pol Pot.
Na origem do conflito estava a velha rivalidade entre a China e a URSS que apoiava o Vietname na expulsão do poder no Camboja do pró-chinés Pol Pot. Invadindo o Vietname, Pequim enviava um sinal claro a Moscovo de que não iria aceitar passivamente um aumento da influência do Partido Comunista da União Soviética numa área que a China considerava dentro da sua esfera de influência mas devem ter percebido que sai caro a quem se mete com os discípulos de Nguyen van Giap e retiraram estrategicamente de modo a não correrem o risco duma derrota que não pudessem ocultar. Assim, apregoaram urbi et orbe que tinham emboscado as forças vietnamitas num vale fronteiriço e regressaram rapidamente à China antes que os confrontos formais se transformassem nas acções de guerrilha em que os vietnamitas já se tinham especializado.
E, afinal, tinha sido precisamente nesse acontecimento que o «nosso» Juan participara como emboscado. Não há dúvida, o mundo é pequeno.
Ao longo de toda a viagem, cruzei-me com outros participantes na guerra sino-vietnamita mas com ninguém que dissesse ter lutado contra os americanos. Os chineses continuam a ser os inimigos locais e não outros povos.
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Danang é um dos tais nomes que sempre ouvíamos nos telejornais durante a guerra americana no Vietname pois era uma base aérea muito grande e relativamente próxima da fronteira (paralelo 17) com o então Vietname do Norte.
Vista do ar, à noite, é um espectáculo de luzes que nada tem a ver com a tristeza cinzenta que eu imaginava ser a cor dominante dum país que, afinal, já nada tem de comunista. Daí a uns dias, percorri de ponta a ponta uma avenida longuíssima e larga de três ou quatro faixas em cada sentido que tinha sido a pista dos aviões da tal base americana entretanto desmantelada.
Terá sido desta mesma base aérea que levantou voo o bombardeiro B52 que se despenhou quase intacto num dos 17 lagos de Hanói e cuja profusa aparelhagem electrónica os soviéticos se apressaram a vasculhar. E como esse lago é vizinho do palácio da Presidência vietnamita em cujos jardins se localizava a residência de Ho Chi Minh, este apanhou um enorme susto e decidiu passar-se para uma outra casa que dispunha de um túnel de fuga em cuja boca ele mandou instalar um catre para se poder esconder em qualquer momento. O Conselho de Ministros passou a reunir nos baixos dessa casa e ele acabou por morrer (de tuberculose, cancro de pulmão ou suicídio) nesse tal catre.
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O «mar» de motorizadas e motos é impressionante – com muitas completamente fora de mão como se isso fosse a coisa mais natural da vida – e se já hoje o trânsito é impraticável para qualquer estrangeiro, dá para imaginar o que será quando as motos e motorizadas se transformarem em automóveis. Creio que será o engarrafamento completo e então, sim, será possível um estrangeiro sentar-se ao volante de um carro... parado. Por enquanto, o forasteiro que se aventure apenas a atravessar uma rua «dançando» com o trânsito: terá emoção que baste, não precisa de mais nada para se sentir um glorioso vencedor das agruras deste mundo..
O dia amanheceu radioso na baía de Halong e no deck superior fez-se uma sessão de tai chi, a ginástica de origem chinesa que nos estica por todo o lado e nos põe quase a dançar. O monitor era um dos membros da equipagem que, dentre as funções que lhe estavam atribuídas, ajudava a servir as refeições e a evacuar os candidatos a náufragos em caso de chatice náutica. A polivalência desta gente não tem nada a ver com o que se passou em Portugal na época vermelha revolucionária em que havia quem aparafusasse do lado direito, quem o fizesse só do lado esquerdo, quem limpasse de um certo nível para cima e outros daí para baixo. Nunca cheguei a apurar se nessa saga de absurdas especializações haveria escriturários de débitos e outros só de créditos. Esse cenário insólito tinha obviamente como finalidade destroçar o aparelho produtivo privado para o pôr nas mãos do Estado enquanto no Vietname o objectivo é garantir um posto de trabalho mais confortável do que fingir que se é empresário numa economia em que, apesar de tudo, abunda o sub emprego.
Depois de esticado e banho tomado, a minha mulher ainda a «passar pelas brasas», eis que me encontro entre os primeiros clientes do pequeno-almoço e ouço alguém por trás a perguntar se se podia sentar na minha mesa. Era o Juan, o nosso guia, que logo perguntou se eu queria continuar a conversa que o jantar da véspera interrompera.
- Sí, por supuesto, sente-se Usted! – ao contrário dos espanhóis, os cubanos não se tutuam e o Juan aprendera espanhol em Cuba pelo que o tratei sempre por Você.
- O jantar interrompeu-nos a conversa ontem quando eu ia explicar como morreu o comunismo aqui no Vietname.
- Sim, confesso que julguei que a conversa não continuaria e que a interrupção pelo jantar tivesse sido oportuna.
- Não, não! Trata-se de um facto histórico e, como tal, há que o referir com toda a naturalidade e com o máximo de verdade de que cada um seja capaz.
- Óptimo! Então, porque é que o Juan acha que o comunismo foi banido do Vietname?
- Porque se a ideia comunista é muito bonita, ela não passa disso mesmo, uma ideia que, afinal, não funciona. Na prática, nós não produzíamos o suficiente para o nosso consumo alimentar, tínhamos que importar o arroz que é a base da nossa alimentação, o sistema estatal de distribuição não funcionava correctamente e havia gente a passar fome. As «cooperativas» agrícolas punham as brigadas de trabalho a funcionar em horários fixos como se fossem uma fábrica ou um escritório, os ordenados não compensavam quem trabalhasse mais, o colapso era evidente e felizmente houve um homem que decidiu resolver o problema em vez de ficar agarrado aos dogmas marxistas. Chamava-se Nguyễn Văn Linh e era a pessoa certa no cargo certo – Secretário Geral do Partido Comunista do Vietname – para decidir o que considerou necessário. Chamou-lhe «economia de mercado de orientação socialista» e ficou conhecido como o Gorbachev vietnamita. Começou por experimentar a liberdade empresarial numa região agrícola próxima de Hanói e, vendo que resultava, logo se apressou a estender o sistema a todo o país. E sabe o que aconteceu?
- Não sei mas estou ansioso por saber.
- O Vietname é hoje o segundo maior exportador de arroz de grão longo a nível mundial depois da Tailândia. Exportamos o arroz barato e consumimos o bom.
- Formidável!
- Mas continuamos com problemas...
- Sim, é natural que numa economia em movimento haja problemas.
- O fraco crescimento mundial atirou-nos para baixas taxas de crescimento anual do PIB.
- O que é que quer dizer com essas taxas baixas?
- O ano passado ficámo-nos pelos 5% e este ano não vamos ultrapassar os 7%.
- Mas isso é muito bom quando comparado com o que vemos por esse mundo além...
- Mas nós precisamos de muito mais porque temos uma taxa de crescimento demográfico relativamente alta e temos que «inventar» cada vez mais postos de trabalho.
- E o Estado Social de orientação socialista não ajuda essa gente?
- Sim, dá-lhes toda a liberdade para encontrarem as soluções que considerem convenientes.
- Como assim?
- O nosso Estado Social não existe. Não há, como na Europa, subsídio de desemprego, não há Segurança Social obrigatória, a Saúde é paga, a Educação é paga.
- Então, onde está o socialismo?
- De mão dada com o comunismo, algures por aí, escondidos.
Começaram a chegar outros passageiros para o pequeno-almoço e houve que acabar com a conversa antes que tudo se transformasse num comício. Felizmente, logo houve quem se aproximasse com perguntas específicas relativas ao programa do nosso «grupo excursionista» e o guia teve que dar a conversa comigo por finda.
Fiquei assim a saber que o capitalismo escorraçou o comunismo das terras do pássaro Viet e começo mesmo a desconfiar de que, afinal, em termos doutrinários, foi a América que ganhou a guerra do Vietname.
Descidos das etéreas espiritualidades inerentes às visitas que nos programaram a vários pagodes (onde se confessam os pecados em oração ao Senhor Buda e se proclama o arrependimento) e templos (onde se pedem benesses ao Orago em apreço), rumámos à Baía de Halong para um cruzeiro que nos mostrasse as belezas naturais da região, o que faço por imagens...
Nosso barco na Baía de Halong
Baía de Halong
Grutas
Metidos no barco durante tempo excessivo para meu gosto, aproveitámos para conversar informalmente com o nosso guia, o franzino e insignificante Juan, tirando-lhe «nabos da púcara» que ele não haveria de referir se não perguntado.
Assim, explicou que o budismo vietnamita lê as condições estruturais da vida de cada um, o karma, logo à nascença em função da posição dos astros na data e hora do nascimento, das condições climáticas, das origens familiares, etc. Portanto, cada um tem a sua «folha» devidamente preenchida e não há como fugir. Na dúvida, para afugentar os maus espíritos, à criança é inicialmente dado um nome feio que a proteja de acidentes, maus-olhados, doenças e morte. No caso dele, Juan, chamaram-lhe Esqueleto. Só quando ultrapassa a idade mais perigosa é que se dá um nome normal à criança que vigorará para o resto da vida. No caso dele, como a avó era católica, chamaram-lhe João e também lhe puseram o nome budista de Yin para não se sentir desenquadrado da maioria social. Escapou-me o apelido.
- E como é que Você fala tão bem espanhol?
- Estive em Cuba.
- A fazer o quê?
- Nos primeiros tempos a aprender espanhol e depois a fazer o curso de microbiologia com uma especialização em biologia marinha.
- E essa formação foi importante para si?
- Sim, estudei as águas em diversas acções científicas ao longo da costa vietnamita e depois passei a dar aulas de Microbiologia na Universidade de Hanói, onde continuo.
- E como concilia as aulas com a actividade de guia turístico?
- Os meus cursos são trimestrais e no resto do tempo aproveito para isto.
- E para que estuda mais: para a Biologia ou para o Turismo?
- Para a Biologia tenho que estudar muito mais para não me desactualizar enquanto que a conversa turística é quase sempre a mesma.
- E esta actividade é importante para si?
- Sim, claro! Tenho quatro mulheres em casa.
- A poligamia é permitida no Vietname?
(risos)
- Não, não! Tenho a minha mãe, a minha mulher e duas filhas.
- E a casa é sua?
- Sim, herdei-a do meu pai que a construiu conforme o seu karma. Mas como o meu karma é diferente do dele, tive que colocar um espelho sobre a porta para afastar os maus espíritos que não me queiram a viver ali.
- Esses espelhos que se vêem sobre as portas significam então que as casas não foram construídas de acordo com os proprietários actuais?
- Exacto. A habitação está totalmente privatizada no Vietname assim como a agricultura. Nós somos donos das nossas propriedades e podemos vendê-las livremente.
- Mas então o Vietname não é um país comunista?
- Ho Chi Minh nunca quis um Vietname comunista à maneira da China ou da Rússia. Nós somos uma sociedade socialista, não comunista.
- E o que há de diferente nisso?
- Tudo: nós enterrámos há muito o comunismo e vivemos em economia de mercado com preocupações sociais. Mas tocaram para o jantar e a continuação da conversa fica para amanhã.
Tive dúvidas que o Juan quisesse continuar a conversar sobre o regime mas, afinal, a iniciativa foi mesmo dele como amanhã se verá.