Sempre gostei de assistir ao espectáculo que as mentes brilhantes exibem ao exporem o resultado das suas confabulações mas confesso que sempre lhes troquei as voltas preferindo lê-las a ouvi-las. Lendo-as, tenho tempo; ouvindo-as, temo perder o fio à meada e correr o risco de ser enrodilhado. Lembro-me da história que ouvi em criança daquele cigano que falava muito depressa quando queria vender uma certa mula manca – pensaria ele que o comprador teria que dar muita atenção ao discurso e ficava sem tempo para observar a mula com o cuidado conveniente. Contavam-me que nunca chegara a vendê-la.
Portanto, gosto de mentes brilhantes lidas, não ouvidas.
A super pausada leitura que venho fazendo vai já para um ano do livro de Yanis Varoufakis, «O MINOTAURO GLOBAL»1, leva-me a pensar que desta vez o cigano foi o Tsipras que arranjou um galã para encantar as grandes credoras na Alemanha e no FMI e lhe encomendou o encantamento suficiente para lhe dar tempo - a ele, o cigano - de consolidar a maluqueira sobre as ruínas de Atenas. Mas o encantamento não produziu quaisquer efeitos junto da «angélica teutónica» e diz-se que foi fogo fátuo na «charmante gauloise». E como o cigano não ia ficar para sempre com a mula manca, empandeirou-a para qualquer lado e mudou de discurso.
Pois. Mas eu hoje não quero saber do discurso do cigano e interesso-me sobretudo pelo relinzurro (nem relincho nem zurro) da mula.
E porquê nem relincho nem zurro? Porque Varoufakis zurze no capitalismo mas não lhe apresenta uma alternativa credível. Pior: aponta críticas aos credores mas não acha necessário corrigir sequer um pequeno vício nos devedores. Ficamos a saber do que ele se queixa mas sem que nos aponte uma solução.
Assim, não vale. E não vale porque não conduz a qualquer parte; constrói um beco sem saída. E como o mundo não acaba no fundo desse beco, é a construção desse «cul de sac» que não faz sentido.
A sua tese contra a austeridade também não faz sentido se nos lembrarmos de que foram os países devedores que foram aos mercados de capitais pedir dinheiro emprestado, não foram os detentores desses capitais que impuseram aos perdulários receberem os seus capitais. E a única forma de servir a dívida é deixar de gastar mais do que se produz – a isso chama-se anular défices – e passar a gerar poupanças, sendo que ambos os patamares se alcançam pela redução da despesa (a tal austeridade) e pela produção de bens e serviços transaccionáveis, nunca pela manutenção de défices nem pelo incentivo ao consumo.
Mas é claro que Varoufakis tem razão em várias coisas e, dentre essas, realço o absurdo em que se transformou a utilização dos modelos macroeconómicos e o «gato por lebre» dos produtos financeiros tóxicos. De ambas, tratarei futuramente num outro pequeno texto em que resumirei o que Varoufakis delas conta e com que – desde já aviso - eu concordo.
Se a estes absurdos juntarmos a manipulação dos mercados em vez da normal especulação bolsista, temos que reconhecer que o Poder do Mundo foi tomado por loucos se não mesmo por criminosos. E neste particular, também tenho que concordar com ele.
Sim, gosto de mentes brilhantes mas Deus nos livre das que são marotas.
Tavira, Agosto de 2016
Henrique Salles da Fonseca
1 - BERTRAND EDITORA, Lisboa, 1ª edição, Junho de 2015
Excêntrico pelas camisas que veste, piroso pelo gosto que ostenta com as ditas camisas, vaidoso pelas atitudes que toma sobretudo perante o sexo feminino, tendencialmente caloteiro por apadrinhar a ideia do não pagamento das dívidas, esquerdino por blasfemar contra o capital e marxista por amiúde invocar Marx, ele tudo pode ser mas do que não podemos acusar Yanis Varoufakis é de ser ignorante ou curto de ideias.
Sim, já parti o bico a dois lápis com que vinha anotando à margem o livro “O MINOTAURO GLOBAL”, tal o calor da minha discórdia com alguns dos muitos temas de que ali se trata. Mas tenho que reconhecer que é obra interessante para quem gosta de temas económicos, de política internacional e quejandos... Podemos não concordar mas isso é outra questão. Livro a ler pelos esquerdinos para deleite intelectual e a estudar (para lhes conhecermos os tiques) pelos não esquerdinos.
A primeira edição, inglesa, data de 2011, ou seja, muito antes de o Autor imaginar (julgo eu) que viria a ser Ministro no seu país; a edição que me chegou às mãos, em português, data de Junho de 2015 e não sei sobre que revisão da obra inicial deriva na certeza, porém, de que transmite a ideia de que inicialmente se tratava dum trabalho centrado nos EUA mas a que posteriormente o Autor acrescentou uma perspectiva já sob forte influência do actual drama grego. Ou seja, parece-me algo como o slogan «leve dois e pague um».
Em traços gerais, para Varoufakis, a história económica divide-se em dois períodos: até à crise de 2008; depois da crise de 2008. No seu parecer, estamos agora (presumo que se refira a 2015) numa autêntica aporia. Ele acha que estamos num beco sem saída e que não se sabe minimamente o que vai acontecer de seguida mesmo que nada se faça. Ou sobretudo se nada se fizer. E como não sabemos no que demos, também não temos remédios a sugerir.
Quer dizer, ele acha que a única coisa que há a fazer é não pagar.
E como ele acha isso, a minha discórdia é estaminal e as vítimas são os bicos dos lápis.
Mais serenamente, o Autor dá-nos uma interpretação histórica muito interessante sobretudo a partir do início da guerra de 39-45 até Brentton Woods mas antes dessa digressão faz-nos um resumo das grandes correntes de opinião sobre as causas da crise de 2008.
Pese embora a inversão cronológica (o que me faz crer no tal acrescento das novas edições relativamente à obra inicial), o resumo das causas da crise de 2008 é interessante mas claramente discutível:
O fracasso da imaginação colectiva para compreender os riscos do sistema que estava em funcionamento – acontecimentos rápidos de mais para que muitas mentes brilhantes conseguissem compreender o que se estava a passar;
Deficiências da regulamentação em vigor – os operadores tiveram excessiva liberdade de actuação na sequência da desregulamentação dos mercados;
Ganância irreprimível – todos queriam ganhar tudo, imediatamente;
Origens culturais diferentes na Europa continental e no eixo UK-USA – excessiva ou insuficiente flexibilidade laboral, segurança social vs. globalização, etc;
Toxicidade do «produto» financeiro – gato por lebre;
O fracasso sistémico do capitalismo – e aqui entorna-se o caldo relativamente a quem (como eu) não é marxista.
Por hoje, fico-me por aqui com um diálogo que não existe no livro e que, portanto, é mitológico:
Pergunta de Varoufakis (pág. 35 in fine): - Alguém pode refutar a proposição de que o capitalismo, enquanto sistema, tem a capacidade incomum de se minar a si próprio?
Minha humilde resposta: - Sim, pode; a História. E mais lhe digo, Senhor Professor: o capitalismo, enquanto sistema, tem a capacidade incomum de se regenerar sempre que algum acidente de percurso o tolhe. É como o rabo decepado dos lagartos: volta a crescer.
Minos, rei de Creta, era o mais poderoso soberano do Mediterrâneo oriental e, entre outros, tinha Egeu, rei de Atenas, como súbdito.
Como prova das graças dos deuses perante o seu poder, Minos pediu a Poseidon que lhe provasse a sua admiração ao que o deus correspondeu oferecendo-lhe um belo toiro que o rei deveria sacrificar em honra do Olimpo. Mas o rei decidiu poupar ao sacrifício o belo animal por quem desde logo se enchera de estima. Zangado, Poseidon decidiu vingar-se e levou a mulher de Minos, a rainha Pasífae, a cair em tentação com o toiro, do que nasceu um ser com corpo de homem e cabeça de toiro, o Minotauro.
Perante os problemas que Minotauro provocava um pouco por toda a ilha de Creta, Minos decidiu fazer construir um labirinto onde Minotauro deveria ficar sem ser capaz de encontrar a saída. De alimento exigente, Minotauro só se saciava com carne humana e Minos decretou que todos os reis seus súbditos deveriam periodicamente enviar seis rapazes e seis raparigas adolescentes para serem introduzidos no labirinto e servirem de alimento ao Minotauro.
Perante tal flagelo, Egeu, rei de Atenas, enviou o seu filho Teseu a Creta numa barca de velas negras com a missão de matar o Minotauro. No regresso, se a missão fosse coroada de êxito, deveriam ser içadas as velas brancas; caso fosse o Minotauro a matar Teseu, as velas deveriam ser as negras.
Bravamente, Teseu entrou no labirinto e, depois de muitas buscas, encontrou e matou Minotauro.
Na euforia da vitória, Teseu regressou a Atenas mas esqueceu-se de içar as velas brancas e quando ao longe Egeu avistou as velas negras, entrou em desespero e lançou-se ao mar assim lhe dando o seu nome.
* * *
Foi Yanis Varoufakis no seu livro «O MINOTAURO GLOBAL» que me fez recordar esta história e que me fez também recordar do espanto que tive na juventude ao constatar que um híbrido de ruminante, herbívoro, pudesse ser antropófago.
Não foi só esta fantasia que encontrei no dito livro.