PESOS PESADOS
Aquando da inauguração do Observatório de Greenwich, da medição da velocidade da luz e da descoberta do espermatozóide, na única Universidade portuguesa então existente, era proibido dissecar cadáveres para se ter a certeza de não esquartejar a alma.
Nessa mesma instituição, os Lentes eram sistematicamente recrutados dentre os licenciados pela própria Universidade como garantia da homogeneidade doutrinária definida pela Ordem de Santa Cruz.
Passados uns séculos, constatamos que o modelo das nossas Universidades públicas continua a pautar-se por princípios que obstam claramente ao progresso das ideias.
Como o Professor Paulo Ferreira da Universidade do Texas, em Austin, explica num comentário há poucos meses publicado na Brotéria, a hierarquização estabelece-se pelo critério das vagas e não pelo do mérito científico-pedagógico. Diz ele, com uma certa ironia, que um professor associado laureado com o Prémio Nobel pode ter que esperar eternamente para ver efectuada a sua promoção a professor catedrático pois em Portugal a progressão na carreira docente é controlada pelo número de vagas disponíveis e não por critérios de mérito próprio.
Se a este método somarmos a tabelização salarial, o estímulo individual é diluído e se a tudo acrescentarmos a política endogâmica de recrutamentos já antigamente praticada pela Ordem de Santa Cruz, então o arejamento de ideias é impossível e, pelo contrário, a inovação corre o risco de rejeição passando por heresia.
Diz o mesmo Professor que este modelo é responsável pelo estado obsoleto em que a Universidade pública portuguesa se encontra, dificultando-lhe a competição internacional e impedindo-a de ter um papel de inovação com qualquer impacto no crescimento económico de Portugal.
Mais: o problema está perfeitamente identificado no sistema e não nas pessoas; caso contrário, não haveria tanto talento português revelado no estrangeiro.
Caricaturando, o crescimento português faz-se apesar da Universidade e cada Professor português que se distingue no estrangeiro é um atestado de menoridade ao sistema universitário público nacional.
Com a entrada em funcionamento das Universidades privadas, o cenário global foi substancialmente alterado e o monopólio público irremediavelmente quebrado mas convenhamos que as diferenças não têm sido tantas que se possa notar já uma modificação abissal do panorama.
A começar pelo sistema de licenciamento que não impediu o tão temido «gato-por-lebre» e a acabar pelo controle corporativo dos reconhecimentos das licenciaturas. Ou um, ou outro; os dois, não fazem sentido.
Se as iniciativas universitárias privadas portuguesas reconhecidamente padecem de capito diminutia, então compreende-se que tenham que passar por um crivo que obste à possibilidade de subverterem a intelectualidade nacional mas a partir do momento em que lhes é dado alvará, não há mais razões para que as licenciaturas sejam de novo postas em causa pelas Ordens; contrariamente, se as Ordens é que dão o reconhecimento das licenciaturas, então não faz sentido que as iniciativas universitárias privadas não sejam de livre estabelecimento.
Tudo isto poderia ter alguma lógica se fossem estes os parâmetros em jogo mas parece assim não ser e que tudo se faz daquele modo condicional para salvaguarda do estatuto da Universidade pública portuguesa que não quer ver a concorrência bater-lhe à porta. Ou seja, tudo tem que ser feito para que tudo continue na mesma. Arrisca-se o desenvolvimento intelectual, técnico e económico de Portugal mas garantem-se as cátedras tão confortavelmente conquistadas por antiguidade e algum mérito próprio. E quanto mais não seja, a oferta de ensino a baixo custo é um trunfo com que os privados não podem concorrer. Eis um status a defender, incompatível com alterações ao sistema tradicional de financiamento das Universidades do Estado. Que ministrem cursos inúteis é questão menor; o que interessa é que os alunos fazem um curso barato e depois até podem ir para o desemprego.
Quando, a pretexto da contenção da Despesa Pública Corrente, o Governo envereda por uma política de aproximação progressiva das propinas públicas às homólogas privadas, está a quebrar um dos maiores trunfos inibidores da concorrência inter universitária e isso pode pôr em causa a manutenção deste verdadeiro peso pesado que é a actual estrutura universitária pública, que ao longo dos séculos tem moldado as elites portuguesas. E como nas comparações internacionais continuamos claramente distantes dos nossos parceiros, concluamos que a inércia deste peso tem alguma ou muita responsabilidade nas dificuldades do nosso arranque para o progresso das ideias, da técnica e da economia.
Há que aligeirar o peso, há que arejar as ideias.
Lisboa, Novembro de 2003
Henrique Salles da Fonseca