Hospital do Espírito Santo - reconstrução do séc. XVII após destruição por terramoto
Era ainda Faro uma vilória quando os frades da Ordem da Santíssima Trindade e da Redenção dos Cativos decidiram mudar-se para Tavira, essa sim, cidade importante onde assentava a cruzada lusitana e donde partiam as caravelas à conquista do Norte de África. Era em Tavira que os frades poderiam servir no seu quarto voto, o de se privarem da liberdade para resgate dos combatentes cativos dos mouros.
Sim, para além da obediência, da castidade e da pobreza, os trinitários tinham mais esse voto de se entregarem como reféns para libertação de combatentes cativos. E para serem oportunos, tinham que estar no local onde as notícias chegavam sobre o desenrolar da cruzada portuguesa, Tavira.
Quantos frades se sacrificaram por combatentes reféns de mouros? Não nos chegou esse número e resta a dúvida sobre se tal voto mereceu a pena. Duvido, contudo, que os mouros quisessem frades em vez do dinheiro que pediam pela libertação dos prisioneiros.
Mas se nem todas as caravelas de retorno traziam notícias sobre cativos a libertar, com muito maior frequência traziam feridos e doentes que urgia tratar.
Não se sabe ao certo quando essa mudança de Faro para Tavira ocorreu mas sabe-se que em 1430 já existia o Hospital do Espírito Santo, esse que ainda hoje existe e que até meados/finais do séc. XX era dos hospitais mais importantes do Algarve. Hoje queda-se por uma missão muito nobre, a de ministrar pouco mais do que cuidados paliativos. E o que fazia ele quando nasceu?
Do catálogo da Exposição que em 2010 comemorou em Tavira o centenário da República constam cinco personalidades centrais de todo o processo de transição e consolidação do novo Regime e, contudo, uma delas era monárquica.
Nenhum foi marítimo nem mecânico mas alguns tiveram interesses pessoais ou familiares nas pescas. De notar, contudo, que nenhum deles teve profissão vil conforme critério tavirense do início do séc. XVIII.
Zacarias José Guerreiro nasceu em Mértola em 1859 e faleceu em Santa Luzia (Tavira) em 1918; cofundador do Centro Republicano de Tavira, foi o primeiro Governador Civil republicano de Faro, cargo que desempenhou entre 15 de Outubro de 1910 e 22 de Setembro de 1911; Presidente da Câmara Municipal de Tavira entre 29 de Dezembro de 1916 e 2 de Janeiro de 1918.
Tomás Cabreira - de seu nome completo Tomás António da Guarda Cabreira, nasceu em Tavira em 1865, faleceu também em Tavira em 1918 e chegou a Ministro das Finanças, cargo que exerceu entre 9 de Fevereiro de 1914 e 23 de Junho do mesmo ano. Militar, teve a sua formação na Escola do Exército onde se licenciou em Engenharia e na Universidade de Coimbra, onde frequentou o curso de Ciências Matemáticas. Da sua carreira académica salienta-se o Doutoramento em 1916 na Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa onde leccionou as disciplinas de Química Mineral e Orgânica, sendo depois nomeado professor definitivo do mesmo estabelecimento de ensino. Regista-se também o facto de ter sido um dos fundadores da Academia das Ciências de Portugal e da Universidade Popular de Lisboa. Na perspectiva militar, Tomás Cabreira atingiria o posto de Coronel do Exército, em 1918, ano da sua morte.
Na política, foi Vereador em 1908 da Câmara Municipal de Lisboa e Deputado pelo Algarve às Constituintes, em 1911; em 1912 foi Senador e em 1914 foi Ministro das Finanças. Fundou a União da Agricultura Comércio e Indústria.
Silvestre Falcão, de seu nome completo Silvestre José Falcão de Sousa Pereira de Berredo, nasceu em Castro Marim em 1866 e morreu em Lisboa em 1927. Licenciado em medicina pela Universidade de Coimbra, teve acção relevante no Comité Académico da Revolução de 31 de Janeiro. Ainda durante a vigência da Monarquia foi cofundador do Centro Republicano de Tavira; foi o primeiro Governador Civil republicano de Coimbra após o que foi eleito Deputado pelo Partido da União Liberal. Foi Ministro do Interior de 12 de Dezembro de 1911 a 4 de Junho de 1912. Depois de se retirar da actividade política, foi médico municipal de Tavira durante longos períodos.
A toponímia tavirense homenageou-o em 1982.
António Cabreira, de seu nome completo António Tomás da Guarda Cabreira de Faria e Alvelos Drago da Ponte nasceu em Tavira em 1868 e faleceu em Lisboa em 1953.
Monárquico militante, era irmão do republicano Tomás Cabreira, formou-se em Matemática pela Escola Politécnica de Lisboa e na política participou em várias reivindicações estudantis, foi redator político de A Nação e, entre 1892 e 1897, exerceu vários cargos no Partido Legitimista.
Sócio da Sociedade de Geografia de Lisboa, participou nas atividades de exaltação colonial e nacionalista que surgiram em consequência do Ultimato.
Fundador do Instituto Dezanove de Setembro, dedicou-se à gestão e à docência nessa instituição cuja delegação em Tavira ministrou o ensino gratuito. De notar neste particular que, sendo a instrução uma causa política eminentemente republicana, quem mais por ela fez em Tavira foi, afinal, um monárquico.
António Padinha, de seu nome completo António Fernando Pires Padinha nasceu em Tavira em 1868 e faleceu também em Tavira em 1916.
Formou-se em medicina na Universidade de Coimbra onde absorveu as ideias republicanas contrárias às do pai, o monárquico José Pires Padinha, que fora Presidente da Câmara Municipal de Tavira entre 1886 e 1889.
Na sequência da Revolução de 1910, assumiu a Presidência da Câmara de Tavira exercendo três mandatos entre 1910 e 1916. Foi sob a sua presidência que se elaboraram os projectos e se lançou a execução da electrificação da cidade, a construção de nova cadeia (na Rua da Liberdade), o novo matadouro e o cemitério municipal que substituiu os dois cemitérios religiosos (o de S. Francisco e o do Carmo).
Como nota complementar e final, refiro que foi durante a 1ª República que se procedeu à instalação de fábricas de conservas de peixe, em especial de atum, com o objectivo inicial de se fornecer alimentação conveniente às Forças Expedicionárias Portuguesas na Flandres durante a Grande Guerra de 14-18. Algumas das personalidades referidas participaram directa ou familiarmente na constituição dessas unidades industriais e do respectivo aprovisionamento. Por exemplo, o Dr. António Padinha foi um dos «Três Irmãos» que constituíram a Armação do Barril.
Tavira, Agosto de 2013
Henrique Salles da Fonseca
BIBLIOGRAFIA:
Catálogo da Exposição “1ª República em Tavira”, Museu Municipal de Tavira, ed. Câmara Municipal de Tavira, 2010
Foi em Junho de 1874 que Modest Mussorgsky compôs para piano a célebre suite “Quadros duma exposição” em homenagem ao seu grande amigo Viktor Hartmann, arquiteto e pintor, que morrera recentemente (1873) aos 39 anos de idade. Em Março de 1874 tinha estado patente em S. Petersburgo uma exposição dos seus principais quadros escolhendo Mussorgsky dez dentre os expostos e compondo uma música para cada um deles. A suite tornou-se rapidamente num êxito pelas apresentações que dela fez Claude Debussy não tardando muito para que Maurice Ravel a orquestrasse.
Assim é com o catálogo da Exposição sobre “A 1ª República em Tavira” que em 2010 esteve patente no Palácio da Galeria, núcleo principal do Museu Municipal da cidade: o que se poderia presumir um simples catálogo com imagens e breves legendas das principais peças expostas, é, afinal, um interessantíssimo documento sobre Tavira nos finais do séc. XIX e inícios do XX.
Grande louvor aos «Mussorgskys» tavirenses!
Mas os historiadores foram buscar «coisas» muito anteriores à implantação da República…
NÃO ERAM VIS, ERAM MARÍTIMOS
Em 27 de Junho de 1706 casou André Peres, «o Velho», com Isabel Madeira na igreja de Santa Maria do Castelo de Tavira sendo ele mareante, filho de Bernardo Martins e de Maria dos Reis. Segundo as testemunhas, todos “forão marítimos e não exercitarão ofício algum outro mecânico ou vil”.
Ficamos assim hoje a saber que naquele início do séc. XVIII, em Tavira, pelo menos as profissões de mareante e de mecânico não eram vis. Dá para nos perguntarmos por onde andaria então a vileza e porquê tanta preocupação uns «anitos» mais tarde com a edificação de nova cadeia. Para encarcerar que vis se tantos eram marítimos e mecânicos?
COMO ERA ENTÃO A MEDICINA…
Instruções do Director Geral de Saúde, Dr. Ricardo Jorge, para todo o país e, portanto, para Tavira também, no combate à expansão da pneumónica:
«(…) para que cada cidadão aplicasse no lenço: 20 gramas de álcool, 2 gramas de mentol, 10 gramas de amoníaco, 5 gramas de éter sulfúrico e 20 gramas de essência de rosa.»
Já o Dr. Castro de Barros, médico de Lisboa, deixava no jornal de Tavira “Província do Algarve” algumas indicações terapêuticas:
- Aos primeiros indícios de gripe, o doente deve deitar-se e cobrir-se bem, para suar;
- De 2 em 2 horas deve tomar chá com gotas de licor amoniacal anisado;
- No dia seguinte deve tomar 30 gramas de sulfato de soda desfeito em 2 decilitros de água quente;
- No outro dia (àparte meu: «se lá chegar vivo») deve tomar purgante de um caldo de carne;
- Nos dias seguintes, o doente deve consumir leite e água de 3 em 3 horas, alternadamente.
Perante a mortandade em curso, a edilidade decidiu mobilizar o parque automóvel concelhio de modo a que os três médicos e o quintanista de medicina (devidamente autorizado a prestar assistência clínica) pudessem acorrer a todas as chamadas, sobretudo nas zonas rurais onde não havia qualquer dispensário de saúde, médico ou sequer enfermeiro. Foram identificados 4 automóveis (cujos proprietários o catálogo identifica) mas por dificuldades na respectiva condução, optou a Câmara por alugar um trem que ficou à disposição dos clínicos. Mais tarde, talvez que perante a fadiga dos cavalos, foi decidido alugar mais outro trem.
Os dias eram de pânico e com os sinos das igrejas a anunciar repetidamente os funerais das vítimas da gripe, o ambiente ainda se tornava mais tenebroso. Assim foi que o Dr. João José Ponce (médico militar reformado que saltou para a frente de combate contra a epidemia) pediu formalmente ao Administrador do Concelho que, «devido à impressão que sobre os doentes produziam os prolongados dobres a finados, providenciasse de modo a olvidar a este inconveniente que aumentava o pânico da população da cidade, já por si muito alarmada com o acréscimo da doença».
Por ofício dirigido à GNR, o Administrador do Concelho chamava a atenção para a imundície que se notava na via pública, determinava que se fizesse os guardas cumprir com todo o rigor as disposições do Código de Posturas Municipais tendentes a manter a higiene, sobretudo nas ruas laterais onde a imundície mais se acumulava.
EPÍLOGO DOS CASOS FATAIS DA PNEUMÓNICA
Não havendo referência a estatísticas das vítimas concelhias (consta que em todo o país elas foram cerca de 60 mil) regista o Catálogo que os dois cemitérios religiosos existentes em Tavira acabaram por ser substituídos pelo novo cemitério municipal, destinado ao enterramento de todos os defuntos de qualquer fé. Foi por isso que o Pároco da Freguesia de Santiago pediu que nele fosse reservada uma parcela para enterramento de católicos. A Câmara – «apesar dos seus membros serem todos dessa religião» – indeferiu o pedido contrapondo que o Padre poderia dar a bênção à sepultura no acto de cada enterramento.
Á semelhança do que muitos anos mais tarde um guionista brasileiro de telenovelas escreveu para Odorico Paraguaçu, Prefeito de Sucupira, também o Presidente da Câmara de Tavira que tanto pugnou pelo novo cemitério, o Dr. António Padinha (pronuncie-se «Pádinha»), foi dos primeiros a inaugura-lo de corpo inteiro.
AS SENHORAS DE ENTÃO
Ficou por saber se a idosa Senhora mandou ou não fuzilar sem julgamento o ousado modernista que a captou em imagem juntamente com duas damas de companhia e uma atabalhoada serviçal que lhes seguia no rasto. E, sendo a devota Senhora de grande lealdade monárquica, logo o atrevido fez o daguerreotipo na recém intitulada «Praça da República». Um escândalo não só por ser apanhada em flagrante em local profanado com tal nome mas também por lhe poder captar a alma pela retenção da imagem…
DUAS CURIOSIDADES FINAIS
No dealbar da República, não havendo tempo nem verba para mudar o timbre das missivas oficiais camarárias, foi decidido adaptar o timbre monárquico a que um escriba cortaria a encarnado a Coroa que encimava o brasão.
Sendo escandalosa a higiene e «conforto» da cadeia, logo as primeiras vereações republicanas decidiram edificar novo estabelecimento prisional. O local escolhido situava-se na Rua da Liberdade.
AGRADECIMENTO
Um agradecimento especial ao meu Amigo José Padinha Rosado, companheiro de almoços no restaurante da praia do Barril, que me emprestou o catálogo cuja leitura tive pena de concluir.