Soubéramos nós que iríamos andar tanto a pé e teríamos arranjado segways (que já usámos noutras paragens) para visitar Estocolmo. Mas não o fizemos e ficámos com as solas dos pés gastas, as pernas doridas e um cansaço que subia das cruzes por ali acima até à base da consciência. Mas a nossa guia – portuguesa radicada na Suécia há mais de 40 anos – já não tinha idade para experimentar uma segway. E a ordem foi: - A butes, marche!
Cidade moderna onde foi antiga a ponto de que um turista menos expedito em questões históricas perguntou se Estocolmo tinha sofrido muito com a segunda guerra mundial. Nem queríamos acreditar no que ouvíamos e a guia teve que disfarçar e dizer que aquela modernidade na Vasagatan (Avenida Vasa) e adjacências resultava das demolições feitas para que se pudesse construir o metropolitano. E mais não disse para que o dito turista não continuasse a fazer a figura de urso que já começara a exibir com a pergunta inicial. Não era português.
Em Estocolmo, a modernidade vai da época pós-guerra até aos dias actuais com edifícios de arquitectura tal que me deixaram embasbacado – e eu até «já passei além da Taprobana».
Stockholm Conference Center
Foi com algum detalhe que nos mostraram a Câmara Municipal: houve coisas de que gostei e houve outras coisas. Gostei da arquitectura geral do edifício e do salão azul (o dos banquetes que o Rei oferece aos nobelizados) mas achei o painel do salão doirado uma pepineira atroz.
Dali partimos para a cidade velha.
Gostámos do que vimos e foi por lá que senti a História a passar por nós.
E de quem me lembrei? Sobretudo da Rainha Cristina e de duas personalidades tão díspares como D. António Pimentel do Lago e de Descartes.
Cristina convidou Descartes para ensinar filosofia aos suecos na condição de a ensinar a ela também. O ilustre filósofo tinha que rumar ao palácio real logo pela manhãzinha e apanhou uma pneumonia que o levou para o além…
D. António Pimentel do Lago, natural de Amarante, era o Embaixador de Filipe IV de Espanha e III de Portugal junto da Coroa Sueca. Socialmente conhecido por «O Amarante», o Embaixador teria encantos especiais por que a Rainha se deixou seduzir mas, infelizmente, tuberculizou e morreu no regaço (ou no leito?) de Sua Majestade. A dor de Cristina foi tal que fundou uma Ordem Honorífica a que chamou «Stora Amaranterorden» e a que nós chamamos «Grande Ordem de Amarante». Trata-se ainda hoje da mais importante Ordem sueca.
E foi por isto tudo que me senti a passar. Gostei, claro!
Mas ficou tanto por ver na Suécia que só há uma solução: lá voltar.
Pelos vistos, os suecos concordam comigo quando digo que as ruínas são monumentos ao desleixo das gerações anteriores. Em Sigtuna as ruínas estão consolidadas e em sua substituição existem construções relativamente modernas (do séc. XVIII para cá) que desempenham funções equivalentes. Refiro-me às igrejas, sobretudo.
Igreja de Santa Maria
Como já referi em texto anterior, a cidade foi fundada há mais de mil anos, é uma relíquia da História sueca e também um aprazível local onde a estrutura hoteleira entretanto instalada ao longo do município (mais de 4000 camas) lhe permite ser um importante centro de conferências. Não é, pois, um amontoado de ruínas, é, sim, uma localidade viva e, fundamental, com vida própria. Nada a ver com Pompeia, Herculano ou Conímbriga e muito menos a ver com Balsa que continua miseravelmente debaixo do chão.
Duas curiosidades que esta simpática localidade me revelou:
Teve durante muitos anos o mais pequeno edifício servindo de Câmara Municipal em toda a Suécia
O último posto de telefone na via pública em toda a Suécia foi transformado em quiosque de troca de livros
É claro que o actual município tem sede num edifício maior (o primitivo está dedicado aos tempos escolares livres das crianças mais pequenas) e o quiosque de troca de livros fez-me pensar numa questão para que não tive «lata» de pedir informação: - Há quantas gerações já não há adultos analfabetos na Suécia?
A propósito de Câmaras municipais, amanhã vamos à de Estocolmo e fechamos a «loja» sueca.
Lagertha é o exemplo das mulheres que lutaram militarmente nas guerras dos povos nórdicos, nomeadamente daqueles a que hoje chamamos suecos e que povoam largamente a mitologia nórdica. Diz quem sabe que há mitos femininos presentes em documentos, textos e poesia de toda a Escandinávia.
Lagertha foi líder militar e obteve o título de Duquesa
Nas lendas escandinavas, Lagertha é esposa do guerreiro viking Ragnar Lothbrok, é skjaldmö (“donzela de escudo”), participa em diversas batalhas, assume a liderança militar e chega a Duquesa. Segundo o «Gesta Danorum», livro do século XII sobre feitos escandinavos na particularidade dinamarquesa, da autoria do historiador medieval Saxo Grammaticus, Lagertha era guerreira e reconhecida valquíria. A presença de mulheres guerreiras na mitologia nórdica parece mesmo indicar que elas tinham uma posição social mais destacada do que noutras sociedades antigas, nomeadamente as meridionais então conhecidas.
A civilização viking era envolta em grande misticismo, a começar pelo uso das runas, alfabeto mágico dos povos germânicos e como tinham uma religiosidade baseada em cultos, actos e rictos, mas não em dogmas, a cultura religiosa sofreu mudanças após o domínio cristão. O cristianismo introduziu novos conceitos religiosos e influenciou as fontes históricas pelo que talvez hoje não consigamos conhecer mais do que uma versão «interpretada» (para não dizer «deturpada») da realidade viking original.
Para conhecer um pouco da mitologia nórdica, ver, por exemplo, em
Os mitos, lendas e sagas nórdicas só foram escritos e, portanto, fixados culturalmente, na era cristã durante o processo de consolidação dos reinos da Dinamarca, Noruega e Suécia.
Viking era um ofício ligado a operações de guerra, pirataria e comércio marítimo, constituindo uma pequena parcela da população, formada na maioria por camponeses. O modelo feminino ficou, assim, com aspectos conflituantes: de um lado, havia deusas vikings associadas a valores guerreiros, de autossuficiência, de feminilidade e de feitiçaria enquanto do outro lado havia a Virgem Maria como modelo de pureza, submissão e devoção à família.
Diferentemente do cristianismo, na cultura viking havia sacerdotisas que dirigiam rituais de sacrifício e ritos de adoração aos deuses. De um modo geral, a mulher integrava expedições colonizadoras, podia participar na defesa armada em casos de ataque, tinha plenos direitos perante a sociedade tais como acesso à propriedade, direito à herança do marido e podia tomar a iniciativa do divórcio.
Em resumo, a mulher viking lutava e, portanto, tinha os mesmos direitos que os homens. Por aqui se vê a diferença com as sociedades meridionais cujo argumento principal para aplicação da «Lei Sálica» era e ainda é o de a mulher, não combatendo, não ter os mesmos direitos que o homem.
Eis como as sociedades nórdicas sempre aproveitaram ao máximo as potencialidades de todos os seus membros, homens e mulheres, enquanto nós, cá pelo Sul, seguíamos (e os muçulmanos continuam a seguir) uma prática misógina, redutora das potencialidades endógenas globais.
Não é por acaso nem por azar que uns são desenvolvidos e outros continuam boçais.
(continua)
Janeiro de 2019
Henrique Salles da Fonseca
(Estocolmo histórico, na rua mais estreita da cidade medieval)
BIBLIOGRAFIA:
«Guerreiras viking», Pedro Machado Frossard - Revista Planeta, edição 522, 13JUL16
Sigtuna, o «berço» da Suécia, localiza-se a uns 50 kms a norte de Estocolmo e relativamente perto do aeroporto pelo que o aglomerado histórico passou do milhar de habitantes que tinha tido durante séculos e séculos para passar a ser o centro político-administrativo de um conjunto de localidades onde residem alguns dos 75.000 funcionários do dito aeroporto.
Se nos tempos a que chamamos históricos Sigtuna vivia da pesca e da agricultura, hoje vive sobretudo da História (leia-se, turismo), do aeroporto e de alguns perímetros industriais nas redondezas.
Foi lá que nos mostraram uma pedra relativamente grande com inscrições rúnicas, a escrita antiga da civilização viking…
… mas a que vimos na parte histórica de Estocolmo tem as letras e os desenhos realçados com tinta e dá muito melhor ideia do que se trata:
Então, para que todos fiquemos a saber o mesmo, fui à Wikipédia buscar informação sobre este alfabeto:
As runas são letras usadas nas línguas germânicas da Europa do Norte, sobretudo Escandinávia, Ilhas Britânicas e Alemanha desde o século II ao XI. Tais caracteres têm sido encontrados em pedras, pergaminhos e placas metálicas.
As inscrições rúnicas mais antigas datam de cerca do ano 150. Com o avanço do cristianismo na Escandinávia, no século XI, o alfabeto rúnico foi sucessivamente substituído pelo latino. O alfabeto primitivo tinha 24 runas e era usado nas actuais Alemanha, Dinamarca e Suécia. A lista ordenada das runas é conhecidacomo Futhark devido ao facto de as suas primeiras seis letras serem 'F', 'U' 'Th', 'A', 'R', e 'K' - ᚠᚢᚦᚨᚱᚴ e foi usada até à Idade Média.
Estocolmo é um conjunto de 14 ilhas e ilhotas mas é já fora do seu perímetro que se estende até ao mar Báltico aquilo a que eles chamam «o arquipélago». Não vou discutir a sintaxe nem a semântica suecas mas, para mim, a um conjunto de ilhas continua a chamar-se arquipélago sejam as ditas urbanas, rurais ou qualquer outra coisa. Só sei que fui corrigido quando disse que Estocolmo é um arquipélago. Que não, o arquipélago começa lá mais à frente em direcção ao mar. Pois sim; não será por isso que nos vamos zangar.
Então, para eu aprender a ter maneiras, fomos fazer um cruzeiro até ao final do «arquipélago» e nisso – entre a ida e a volta – navegámos três horas em que a partir de certa altura fomos escoltados por um mega navio de cruzeiros que «bateu a bola baixinho» para não fazer ondas que nos pusessem de pernas para o ar nem provocassem tsunamis nas margens pejadas de casas de férias dos muitos suecos verdadeiramente endinheirados. Mas nas ilhas mais próximas da cidade, vê-se que há muito «pobretanas» que ali vive o ano inteiro com barco à frente e carro nas traseiras. Ver qualidade de vida é algo que me dá enorme prazer mas que infelizmente faz inveja a muita criatura que não tem onde cair morta. Gostei do que vi mas, mesmo que pudesse, não me habilitaria a construir ou comprar casa naquelas paragens - não gosto de frio, prefiro o arquipélago que se estende frente a Angra dos Reis, no Estado do Rio de Janeiro ou o das Kirimbas no norte de Moçambique.
Mas, apesar do muito ou menos frio, só uma exclamação me ocorre: - Assim, sim!
E para que não restem dúvidas, aí vai mais uma vista:
E a maior parte das «casinhas», com a Bandeira Nacional hasteada.
Visita relâmpago de quatro noites e cinco dias mal contados por causa da ida e da volta, só deu para visitar um pouco de Estocolmo e alguns – poucos – arredores.
Frio como já não nos lembrávamos desde que há uns anos fomos ao Canadá também em finais de Dezembro e primeiros dias de Janeiro. Mas se é mesmo para ver um país, há que o visitar na plenitude das respectivas características, não em situações adamadas, incaracterísticas.
E se desta vez os termómetros não mediram nada de escandaloso (-2, -4), o efeito vento, sim, estragou tudo dando sensações ao estilo dos -10 ou pior, o que para meu consumo é demais. Pior na cidade com o vento encanado pelas ruas do que no campo onde ele, afinal, parecia uma brisa perfeitamente suportável. Ao todo, só tivemos uns floquinhos de neve bem simpáticos que me fizeram lembrar o Augusto Gil e a sua «Balada…» dos «pezinhos de criança».
E foi nessas ventanias nocturnas – a noite põe-se pelas 3 da tarde – que me lembrei da «Miséria» de João de Deus quando vi alguns «sem abrigo» em pleno centro de Estocolmo:
Era já noite cerrada,
Diz o filho: "Oh minha mãe,
Debaixo daquela arcada
Passava-se a noite bem!"
Sim, «sem abrigo» lestianos pedintes mas também vikings. E foi por estes que perguntei porque dos outros já sabia a resposta, igual à de cá. Os «sem abrigo» vikings são alcoólatras ou, em menor número, vítimas de outras dependências. A ponto de até os guias turísticos se referirem «à dura relação dos suecos com o álcool». O que mais me espantou não foi a realidade que me referiram – tão semelhante ao que se passará por cá e por outras bandas – mas sim a franqueza com que nos falaram do tema, sem encapotamentos nem falsas justificações. E quando nos foram mostrar Sigtuna, tida pelo «berço» da Suécia, não perderam a oportunidade de nos mostrarem uma mansão agrária que está em vias de se transformar num grande polo de turismo (rural) mas que até há pouco era um centro de desintoxicação da alcoolémia. E à minha pergunta sobre se acabaram com esse trabalho de desintoxicação porque o problema diminuiu, logo me informaram que a razão não era a da diminuição do problema mas sim porque cerca de 97% dos «curados» regressava ao internamento não muito depois de um ano de terem tido «alta». Porquê, o tratamento era assim tão ineficaz? Sim, mas não só. Uma parte substancial dos «retornados» preferia viver naquele internato do que ter que enfrentar as agruras da vida cá fora, vida de que estavam, entretanto, completamente desadaptados. E como desadaptados, caíam novamente na dependência do álcool e tudo voltava ao início. E então? - perguntei eu. A resposta não se fez esperar: - Que se cuidem pois o Estado não pode continuar a suportá-los indefinidamente deitando dinheiro à rua. Sim, pareceu-me cruel. Mas eu sou latino, lamecha, não sou um frio viking.