Quem havia de dizer que, vez por outra, palavrões como estes são uma maravilha! Enquanto alguns fármacos tipo «mata-gente», como os antibióticos, se intitulam com palavreados semelhantes, estes levam-nos a cantar: «era o vinho meu bem, era o vinho, era a coisa que eu mais adorava»!
Perde-se na poeira dos tempos, sempre empoeirados, o conhecimento dos primeiros viti-vinicultores, que terão aparecido dez, vinte mil ou ainda mais anos atrás! Avozinhos bons esses, hein?
A ciência depois de nos querer convencer que os vinhos hoje sabem a frutas verdes, vermelhas, pretas, canela, abiu, araçá e murumuru, além de outros, vem agora animar-nos a beber mais uns copos, sempre do tinto, informando-nos que um composto encontrado na casca das uvas e no vinho tinto, a que chamou de resveratrol, aumenta a resistência à velhice e ainda evita a obesidade! Que delícia.
Saudemos estas Festas com tinto !
Eu conheci, muitos anos atrás, um homem com oitenta e tantos anos, alto, forte e seco (por fora) que de repente caiu de cama. O seu tempo chegava ao fim. Esse homem todos os dias de manhã começava por «matar o bicho» com um copo, um copo, não um cálice, de aguardente bagaceira. Depois, durante o dia, emborcava mais uns cinco litros de vinho. Velho rijo e são. O médico chamado a sua casa, vendo que a vida estava por um fio, recomendou: "Enquanto estiver assim não pode beber mais de um litro de vinho por dia". Resposta do velhote: "Pra beber tã pouco prefiro nã beber nada!" No dia seguinte morreu! Não se pode dizer que tenha morrido cheio de saúde, mas chegou aos oitenta e muitos, rijo e bêbado que nem um tonel. Pena não se ter feito uma análise do seu DNA (naquele tempo não havia disso) porque certamente deveria estar cheio do tal resveratrol, do tinto e do bagaço!
Era dali de perto de Évora. Talvez junto da Ribeira de Peramanca, onde se produzia um vinho tão maravilhoso que animou o Geraldo Geraldes a conquistar Évora aos mouros com meia dúzia de amigos! Há quase novecentos anos!
O problema por enquanto está só na procianidina. Dizem os cientistas que este composto - a procianidina é um composto! - encontrado nas sementes das uvas, faz muito bem ao sistema cardiovascular, sendo um vaso dilatador, coisa que os romanos que há 2.000 anos bebiam vinho do Alentejo já sabiam, e se encontrará sobretudo nas uvas do sudoeste de França! Isto porque o estudo foi feito numa escola de medicina em Londres. Porque não fazem esses estudos em Évora e dão a conhecer ao mundo uma região de briol que não pede meças ao sudoeste francês?
Entretanto um tinto das castas Trincadeira e Tinta Caiada, sobretudo dali, das terras de Peramanca, aaahhh!, dão vida a qualquer gladiador que se preze nas suas gladiações pela luta diária em que a globalização nos meteu.
vO editor deste blog, dando seguimento a mais um dos inúmeros relatórios sobre a crise do SNS, lançou o repto que eu diria ulianoviano: Que fazer (agora que tudo parece ter sido já experimentado e que da fonte das ideias nem mais uma gota)?
vAceito o repto. E começo por dizer que o financiamento dos cuidados de saúde deixou de ter solução no dia em que a ciência e a tecnologia começaram a progredir a um ritmo cada vez mais vertiginoso. Num processo malthusiano, o custo dos cuidados de saúde que aquelas duas irmãs vão tornando possível cresce exponencialmente; os fundos disponíveis para os pagar, não tanto. Acrescente-se a isto dois factos que alargam sem parar o fosso entre custos e dinheiro disponível: (a) o envelhecimento da população (logo, maior procura de cuidados de saúde); (b) o aumento da lista dos cuidados de saúde que podem ser correntemente praticados (logo, maior oferta de actos médicos).
vO dilema continua a ser aquele que eu descrevi num artigo sobre precisamente este mesmo tema que veio a lume na revista “Economia Pura” de Setembro de 2003: quando desligar a máquina.
vTrês pontos, pelo menos, parecem-me essenciais: (a) a triagem dos pacientes que, hoje, se encaminham directamente para os hospitais; (b) a gestão integrada das tesourarias dos hospitais; (c) a segmentação dos actos médicos (e dos cuidados de saúde) financiados.
vA triagem dos utentes. Os hospitais são organizações caras, recheadas de equipamentos cada vez mais caros e formadas por profissionais especializados, logo bem pagos. O acesso à rede hospitalar deveria ser restringido aos pacientes que só aí podem ser capazmente tratados. O que é dizer, pacientes enviados por Centros de Saúde de proximidade (estes preparados para efectuar diagnósticos e prestar cuidados de saúde em regime de ambulatório, 24 x7x365, talvez em regime de rotatividade) e por paramédicos a operar a partir do Serviço Nacional de Ambulâncias (SNA). O acesso directo aos hospitais não seria completamente vedado: quem quisesse poderia fazê-lo, sujeitando-se a pagar o respectivo custo se a situação não configurasse uma daquelas que determinariam o envio desse caso por um Centro de Saúde ou pelo SNA. Esta solução, aqui esquematicamente descrita tem, pelo menos, dois corolários: (a) a criação de uma rede de hospitais para doenças/recuperações prolongadas (caminho que as Misericórdias parecem estar a explorar); (b) a plena utilização dos equipamentos hospitalares existentes no território nacional, o que significaria, a possibilidade de um doente poder ser encaminhado (salvo se a tanto se opusesse formalmente, correndo os correspondentes riscos) para um hospital mais distante da sua residência (como dizia, há anos, um perito norteamericano nestes assuntos, o nosso problema não é de hospitais, é de estradas, por vezes fico com a ideia que o SNS é pensado para que os familiares dos pacientes internados possam fazer comodamente as suas visitas diárias).
vA gestão integrada das tesourarias. Os hospitais pagam mal (nem todos...). Pior do que isso, o SNS como um todo, não sabe como paga, quando paga, a quem paga e quanto paga – mas paga sempre. Nesta escuridão, como é fácil de imaginar, todos os esquemas são possíveis, todas as ineficiências passam despercebidas, todos os excessos de custos permanecem impunes. Para completar o quadro, cobram ainda pior (do doente particular às seguradoras, passando pelos regimes convencionados) – e ninguém parece preocupar-se com isso. Estou em crer que uma plataforma (virtual) de gestão das tesourarias (esquema corrente em qualquer multinacional que não queira soçobrar ao primeiro solavanco) obraria, não direi milagres, mas maravilhas em matéria de contenção da Factura de Saúde.
vSegmentação dos actos médicos. Actualmente, se uma pessoa sentir dores nos calos todos os dias, todos os dias vai passar um bocado do seu tempo ao hospital que lhe ficar mais a jeito – e todos os dias é atendida, observada, diagnosticada e, quem sabe, medicada, mas quase sempre acarinhada. A segmentação que tenho em mente garantiria a gratuitidade (para o paciente) dos actos médicos praticados, e dos cuidados de saúde prestados na rede hospital quando ele fosse enviado por Centro de Saúde ou pelo SNA. Para utilização dos Centros de Saúde, cada pessoa disporia do seu cartão (pessoal e intransmissível) com um plafond de créditos válido para um dado período de tempo (ano, trimestre) e renovável. Os plafonds de créditos poderiam, muito bem, ser atribuídos em função da idade e de outras características relevantes do respectivo portador (por exemplo: a doentes que padecessem de determinadas doenças poderiam ser atribuídos plafonds de créditos mais elevados, ou até ilimitados). Importante é que cada acto médico fosse efectivamente facturado - ainda que essa factura não fosse apresentada ao paciente para pagamento (mas sê-lo-ia, a ele ou à sua seguradora, uma vez ultrapassado o plafond de créditos).
vEstranhará o leitor, talvez, que eu não me tenha envolvido, desde logo, nas polémicas de público/privado e de prestador/financiador. Quanto ao primeiro destes dilemas, não direi mais que Deng Chauping disse: “que me importa a cor do gato; o que me interessa é que ele cace ratos”. Compete ao Governo vigiar se quem ele põe “a caçar ratos” neste território do SNS os caça, de facto.
vNa discussão entre Administração Pública prestadora e Administração Pública financiadora sou a favor desta última solução por uma pilha de razões que não vêm agora ao caso (ver, a propósito, o artigo que publiquei na revista Economia Pura, em Julho de 2003, “Liberalização, Privatizações e Regulação”). Mas não deixo de ter presente que a intermediação orçamental, quando o Governo cobra aqui uns impostos para pagar ali umas despesas, tem um custo – e esse custo tem de ser medido e ponderado, quer na fase de planeamento, quer na fase de execução. Sempre.
vEnfim, o erro crasso (em m/ opinião naturalmente) que este Governo tem vindo a cometer neste domínio. Esmagado por despesas que não consegue controlar, nem em valor absoluto, nem em ritmo de crescimento, tem ele avançado com soluções que ignoram uma das traves mestras de qualquer modelo de prestação de cuidados de saúde: a política do ordenamento (da ocupação) do território. Os nossos primeiros reis sabiam mais disto que o actual Governo.
De um relatório que me é enviado periodicamente extraio uma questão que julgo interessar a todos os residentes em Portugal:
« (…) A comissão que estuda modelos alternativos para financiar o Serviço Nacional de Saúde apresentou uma espécie de ponto de situação (…) [em 24 de Novembro de 2006]. (…) A ideia base dos peritos é simples. Como a economia não acompanha o ritmo de crescimento da despesa em Saúde, Portugal tem de fazer alguma coisa: aumentar os impostos, criar um imposto especial para a saúde, permitir aos cidadãos saírem do SNS, fomentar os seguros privados, enfim, há várias hipóteses em cima da mesa, nenhuma delas particularmente agradável para os cidadãos, porque aumenta os encargos. (…)»
Para além da questão muito provável de, como utentes, mais tarde ou mais cedo, todos virmos a necessitar de cuidados de saúde e até mesmo de hospitalizações, temos também tudo a ver com o reverso da medalha na nossa inultrapassável condição de contribuintes.
Seria interessante trocarmos impressões sobre este assunto e por isso pergunto o que se deve fazer. Para não facilitar a questão, sugiro que nos imaginemos na posição do Ministro da Saúde.