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A bem da Nação

CURTINHAS XXVI

Atenção! este Texto é mesmo chato...

 

v     Há coisa de duas semanas assisti na Gulbenkian a uma conferência sobre “O Risco e a Cidade” pelo Prof. Quintanilha. Uma abordagem algo intimista, muito interessante – com um senão: por aquela sala esvoaçaram palavras como “probabilidades”, “incerteza”, “risco”, “resultado”, “perda” ou “ganho”, “sorte” e “adversidade”, sem que ninguém conseguisse dar-lhes um conteúdo preciso. Muitos terão saído com a ideia de que tudo aquilo não passava de sinónimos que cada um usará conforme mais jeito lhe der.

v     E, no entanto, falava-se das pedras angulares do conhecimento actual, tanto nas ciências da Natureza como nas ciências do Homem. Quem sabe se o leitor não comunga também de igual perplexidade? Talvez gostasse de compreender melhor aquilo que arrumou já no esconso das “conversas abstrusas, só para iniciados”? Sim? Então venha daí.

v     Se houver um destino a fadar-nos: ou conhecemos o que ele nos reserva – e é inútil tentar contrariá-lo; ou não conhecemos – e o que tem de ser, será. No primeiro caso dispomos de informação completa sobre um futuro que é inescapável. No segundo caso, ignoramos tudo sobre o que nos espera, mas também não poderemos escapar-lhe. Em ambos os casos estamos cientes de que não existe alternativa: tudo evolui perante nós como uma infindável sucessão de situações únicas. Nestas circunstâncias não há lugar, nem para a incerteza, nem para o risco: ou há clarividência perfeita, ou há a mais absoluta ignorância. Qualquer delas completamente inútil.

v     A nossa experiência, porém, diz-nos que muitas situações comportam diversas possibilidades, mas que, em cada momento, só uma dessas possibilidades eclodirá. Designemos por cenário (ou estado da natureza) cada uma dessas tais possibilidades, nesse momento. Se formos suficientemente hábeis na descrição dos cenários, eles serão mutuamente exclusivos (isto é, elementares) de tal forma que poderemos dizer sempre, a posteriori, que cenário ocorreu e que cenários não se verificaram.

v     Os jogos proporcionam excelentes exemplos. Na “moeda ao ar” os cenários elementares são: “cara para cima”, “coroa para cima”, “moeda em pé” (não! “moeda desaparecida por um buraco” não é um cenário admissível porque o jogo é jogado, por hipótese, numa mesa enorme e lisa). No lançamento de um dado, são seis os cenários definidos como “a face virada para cima” (excluindo os casos em que o dado fique em equilíbrio precário, ou sobre uma aresta, ou sobre um vértice). No xadrez, os cenários são muito mais numerosos, sendo cada um deles totalmente descrito pelas pedras no tabuleiro e pelas posições que elas aí ocupam.

v     Uma vez lançada uma moeda (perfeita, por definição) ninguém consegue saber de antemão como irá ela cair sobre a mesa. Há incerteza, mas não ignorância: na verdade, qualquer um de nós pode descrever os cenários possíveis – só não conseguirá predizer qual ocorrerá. Com o dado rolado passar-se-á o mesmo. Pelo contrário, no xadrez, a causa da incerteza reside, antes do mais, na estratégia que cada jogador tenta executar e que o adversário lhe permitir – são eles, os jogadores, a fonte da incerteza.

v     Incerteza em sentido amplo é quando conseguimos enumerar os cenários possíveis, sem poder dizer antecipadamente qual irá ser observado. Estamos confrontados, então, com um problema de informação limitada que gera um ambiente de incerteza e que nos impede de indicar, sem sombra de dúvida, que cenário ocorrerá nesse tal momento. Os jogos que referi são, cada um a seu modo, processos geradores de incerteza neste sentido. E se reflectirmos por uns instantes concluiremos que as nossas vidas estão mergulhadas permanentemente em ambientes de incerteza. Só que – há incertezas e incertezas.

v     A incerteza gerada pelo lançamento da moeda ao ar, pelo rolar de um dado, por muitos fenómenos naturais, é uma incerteza sobre cujos cenários possíveis não temos qualquer acção: estes cenários são-nos exteriores, exógenos. Qualquer deles pode acontecer – e não os podemos alterar. Tudo o que está ao nosso alcance é descrever, da forma mais exacta possível, todos os cenários elementares – e furtarmo-nos ao ambiente que os gera se não quisermos sofrer-lhes as consequências. Esta é a incerteza em sentido estrito.

v     No caso do xadrez, porém, e na generalidade dos processos de inter-relação social, tal como em vários fenómenos naturais, os cenários possíveis podem ser, mal ou bem, desenhados – ou seja, podemos agir sobre o ambiente de incerteza dando-lhe a forma que pensamos ser, para nós, a mais favorável. Fala-se, então, de risco. No parágrafo anterior, se houver que decidir, decide-se em face da incerteza em sentido estrito. Aqui, está-se num ambiente de risco e decidir-se-á em face do risco. (continuarei, apesar de tudo, a falar de ambiente de incerteza em sentido amplo, sem especificar se se trata de ambiente de incerteza em sentido estrito ou de ambiente de risco).

v     É corrente ouvir-se dizer: “Não levo chapéu-de-chuva. Corro o risco de apanhar uma molha!” Na realidade, quem diz isto está a decidir em face da incerteza, já que só lhe restam duas opções: não se expor ao ambiente de incerteza – e ficar debaixo de telha; ou expor-se – e nada poderá fazer para que chova ou não chova (excepto se for xamã...). Pelo contrário, o jogador de xadrez, ao condicionar com os seus lances o adversário, tenta reduzir o ambiente de incerteza com que iniciou a partida.

 "Rain-makers" sioux. Que probabilidade haveria de chover caso as danças da chuva não tivessem sido executadas? Não o poderemos saber pois que se trata de uma experiência não experimentada e, a essas, nunca lhes conheceremos os resultados . . .

v     Em princípio, a cada cenário corresponde um resultado quantificável para o sujeito que se expõe (ou que fica exposto) ao ambiente de incerteza. Dê-se um nome a esta correspondência “cenário ® resultado” num tal ambiente de incerteza: função de perda (é um nome pessimista, como tudo aquilo que lida com a incerteza). Alguns resultados podem ser apetecíveis para o tal sujeito; outros nem tanto; outros ainda podem ser mesmo muito desagradáveis (e, no limite, fatais). Uns representarão ganhos, outros perdas. E se os resultados traduzirem invariavelmente perdas, seja qual for o cenário elementar que ocorra, então sim, esse é um ambiente de incerteza verdadeiramente adverso.

v     Por estranho que pareça, são os ambientes de incerteza cujas funções de perda assumem um amplo espectro de resultados de todos os matizes, nem só ganhos, nem só adversidade, que mais chamam a atenção – e que mais ricos se revelam em termos de decisão.

v     Quando os resultados possíveis num determinado ambiente de incerteza são, uns, ganhos, outros, perdas, a tentação é ponderar quais nos parecem mais verosímeis, ou quais deles pensamos que ocorrem com mais frequência. O passo seguinte é, por conseguinte, atribuir um número a cada cenário elementar. Não de qualquer maneira, mas de tal forma que: (a) todos esses números sejam não negativos; (b) a soma de todos os números atribuídos (aos cenários elementares) seja sempre igual a 1; (c) se um cenário nos parece mais verosímil que outro, então o número que atribuirmos àquele primeiro não pode ser inferior ao que atribuímos a este último. Os números com estas características designam-se por probabilidades: cada um deles é a probabilidade que atribuímos à ocorrência de um cenário (elementar ou não). E o conjunto por eles formado é a distribuição de probabilidades nesse ambiente de incerteza.

v     O que não faltam são maneiras de atribuir probabilidades aos cenários elementares de um ambiente de incerteza. Desde que se respeitem aquelas três regras, qualquer um pode construir, modificar, moldar distribuições de probabilidades conforme melhor lhe parecer. Sob este ponto de vista, as probabilidades são puramente subjectivas. E há até métodos simples, mas consistentes, de rever as probabilidades inicialmente atribuídas, tendo em conta a informação adicional que entretanto nos vai chegando (métodos bayesianos).

v     Ao falarmos de probabilidades, vemos melhor porque é que os cenários elementares da “moeda em pé”, ou do “dado sobre uma aresta” podem ser afastados sem grande prejuízo. São, de facto, cenários possíveis, mas altamente inverosímeis – a que, quase sem nos darmos conta, atribuímos a probabilidade 0. Diz-se então que são acontecimentos improváveis (embora possíveis, em abstracto).

v     O que tem mais graça é que a incerteza não é só subjectiva, companheira inevitável da nossa ignorância e do facto de não conseguirmos ir além da informação limitada sobre (quase) tudo o que nos rodeia. Parece que ela também está inscrita no âmago da própria matéria (princípio da incerteza de Heisenberg). Mas isso são outros contos.

v     Eu bem avisei....

Lisboa, Dezembro de 2006

A. Palhinha Machado

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