Divulguei há dias por e-mail o que penso sobre uma proposta de debate parlamentar lançada pela Deputada Joacine Moreira do «Livre». Daí, o «AINDA» do título do presente escrito apesar de o tema se estar agora a estrear no “A bem da Nação”.
Dizia eu na referida mensagem por e-mail que:
Eis o que vos digo:
A questão da devolução às ex-Colónias do património museológico português com origem naqueles países é questão que deve ser tratada por esses mesmos países e posteriormente por eles negociada com o Governo Português.
Não faz sentido que seja tratado na nossa Assembleia da República pois não é tema do interesse nacional e sim do potencial interesse de países estrangeiros que não passaram procuração ao nosso país para tratarmos do assunto.
O tema não deve, pois, ser sequer admitido à discussão na nossa Assembleia da República.
HSF
Entretanto, a Deputada Joacine, única representante parlamentar do «Livre», viu o Partido retirar-lhe a confiança política e aconteceu aquilo que se estava mesmo a ver que ia acontecer: o «Livre» saiu da Assembleia da República e a Deputada perdeu o direito ao uso da palavra no hemiciclo. Ou seja, o tema que estava para ser debatido, morreu antes de nascer. Um nado morto.
Mas fiquei a pensar no assunto e aqui estou eu para o retomar.
A segurança do património museológico é tema de grande importância e em regimes políticos com incidência cleptómana, só por mero acaso é que passado algum tempo as peças devolvidas não desapareceriam misteriosamente a favor de algum colecionador de tentador poder financeiro.
Fica o alerta.
Mas, sejamos realistas, não há quem possa afirmar com plena segurança estar imune a esse tipo de «mistérios». Contudo, há por esse mundo além quem seja mais seguro e quem seja menos seguro. Creio que a Europa é mais segura do que outras paragens e, dentre estas, o leitor que as imagine…
Apesar de tudo, tenho a Europa como uma das regiões de maior segurança museológica e essa a razão por que me lembrei de que poderia ser imaginado um Pacto Europeu de Correcção Histórica ao abrigo do qual os museus dos países (apenas europeus) aderentes poderiam requerer a devolução de peças museológicas desviadas do país de origem por actos de apropriação indevida.
Por exemplo, onde estarão as peças de arte levadas de Portugal pelas tropas de Napoleão ou durante a nossa terceira Dinastia?
Aqui deixo a sugestão aos Eurodeputados portugueses e a mais quem se interesse pelo tema.
Tenho a certeza de que este, sim, é tema a bem da nossa Nação.
Foi num cenário de exigência de igualdade, de construção duma sociedade sem classes, de reforma agrária, invasão de terras, de latifundiários em fuga ou resignando de vastas áreas e de uma geração de jovens que se consideravam na sombra social mas que agora estavam dispostos a conquistar um lugar ao Sol que os revolucionários perceberam que podiam levar por diante a sua obsessão de implantação do comunismo. Tinham à disposição jovens universitários ávidos da motivação que lhes proporcionaria a justiça social. Todos, em idades propícias à absorção de emoções e de grande inocência perante a «lavagem ao cérebro» que lhes era feita por marxistas «plantados a dedo» nas Associações de Estudantes das Universidades. O método foi o de não transmitir argumentação crítica mas sim pensamentos emotivos baseados em ideias simples e dogmáticas, essência do fanatismo.
Mas, afinal, os inocentes sabiam ler e não pertenciam a outra classe que não a da burguesia. Pequena, talvez, mas burguesia e não proletariado. E mesmo que tivessem origens proletárias, as suas ambições íntimas eram burguesas.
O desencanto foi o destino quando viram os seus ideais de liberdade e glória social atraiçoados pela realidade da ditadura do proletariado, pelas decisões «unânimes» dos Comités Centrais, pela vigilância dos controleiros, enfim, por algo que nada – mas absolutamente nada – tinha a ver com democracia.
E esse continua a ser o erro da esquerda dogmática, o de julgar que lida com proletários quando, na realidade, lida com burgueses que não se deixam manipular como boçais que efectivamente não são.
E onde encontrar essas massas proletárias ávidas da liberdade propagandeada quando a indústria foi desmantelada pelas exigências absurdas desses dogmáticos que entretanto regem a gerontocracia em que se deixaram cair? Esse é o vazio perante o qual os velhos esbarram e só não se desmobilizam porque não conhecem outra doutrina que não a da cartilha soviética. Para esses, é tardia a mudança e só o dogmatismo lhes sustém um pouco o desespero porque se pudessem pensar por si próprios, há muito que também eles para lá teriam resvalado de corpo inteiro.
Pois é, o século XXI ocidental não tem o dogma como paradigma e, pelo contrário, a sua juventude puxa pela cabeça ao enfrentar a invasão de outras civilizações – essas, sim, dogmáticas – para sobreviver mantendo os Valores da liberdade democrática e algum bem comum.
O desencanto da geração que nasceu nos 50 não foi suficiente para prevenir o embate civilizacional neste início do séc. XXI deixando a liderança a Partidos amolecidos que terão uma séria responsabilidade no que de mal nos acontecerá depois de todos estes desencantos se somarem. Mais do que uma sociedade acomodada, os invasores encontram uma sociedade liderada maioritariamente por Partidos contentes com a suavidade do politicamente correcto que construíram; todos liberais só divergindo nas congregações mais ou menos conhecidas, mais ou menos secretas em que os seus membros se integram, todos empenhados na divisão do bolo sem que o eleitor se aperceba claramente do que lhe sonegam.
Mas há sempre um limite pois não se pode enganar toda a gente durante todo o tempo.
E, das duas, uma: ou nos resta navegar de desencanto dogmático em desencanto de moleza se não tivermos a força das convicções profundas da liberdade democrática como a temos entendido no Ocidente desde a segunda guerra mundial ou então, resta-nos seguir a sugestão de Karl Popper que é, na consumação do desespero global, irmos todos para o Inferno.
Contudo, há mais um «mas» que é o de não nos deixarmos manipular nem nos deixarmos amolecer. E isso pode ser muito mau para quem nos tem manipulado e amolecido sob o título da governança pacífica e da continuidade dessa mesma governança. Pacífica ou podre? Eis a questão. Questão que horroriza a diplomacia do croquete perante quem fala grosso, mesmo que do nosso lado e tenha sotaque de Manhattan. Mais do que o conteúdo do discurso, o que mais horroriza a diplomacia côr-de-rosa é o tom. O que não isenta o Fulano de uma certa boçalidade. Mas não será o tempo de se usar um pouco dela perante a invasão sunita da Europa?
O 25 de Abril de 1974 foi um golpe de Estado comunista cujo objectivo imediato era pôr o Ultramar Português na esfera do Império Soviético a fim de enfraquecer a Europa e valorizar a URSS.
Em segundo lugar era o de fazer de Portugal uma «democracia popular» (como se tal coisa existisse) para servir de tenaz com a cortina de ferro de modo a emparedar a Europa.
Serviram-se de uma reivindicação salarial da corporação militar para derrubarem o Governo em Lisboa pois no Ultramar ...não conseguiam de maneira nenhuma ganhar a guerra. Portugal estava economicamente em condições de sustentar o conflito armado per saecula saeculorum.
Mais: estávamos com taxas anuais de crescimento do PIB que hoje parecem mentira (sempre bem acima dos 5%).
A Europa do Sul foi tomada por uma classe de políticos que não hesita em «comprar» votos usando a demagogia que paga com dinheiros públicos – daí surgem os défices públicos;
A Europa do Sul sempre gostou muito mais de folgar nas belas praias do que estudar nos livros – daí a grande deficiência na instrução e formação e a pobreza estrutural dos PIB's com inerente dependência económica externa e consequentes dívidas privadas;
Os políticos da Europa do Sul convenceram os seus eleitores de que é aos ricos que cumpre pagar a crise travestindo esse conceito marxista na famosa «solidariedade europeia»;
A Europa do Sul contou com tudo isso e agora diz que os culpados são os ricos que não querem pagar a factura da sua «dolce vita»;
Os ricos não pagam, não; os ricos emprestam, sim, mas sobem a taxa de juro porque o risco aumenta com os dislates de novo em curso.
Ou seja, Schäuble mais não faz do que defender os interesses dos seus contribuintes e por isso se zanga com o que por aqui vai novamente...
Um demagogo é aquele que defende doutrinas que sabe serem falsas a pessoas que ele sabe serem idiotas.
Henry Louis Mencken(1880-1956)
Jornalista, crítico e filósofo norte americano
Falácia – afirmação falsa não intencional; engano; erro.
Sofisma – afirmação de má-fé usada para enganar alguém; dolo.
Vivemos num tempo em que se assiste a um sensível “enlouquecimento” do processo acelerado de globalização em curso. O enfraquecimento do poder organizativo do mundo, que se afirmou nos últimos quinhentos anos e através do qual foi possível passar dos velhos absolutismos à experiência de democracia – nações, países e Estados soberanos –, é cada vez mais um dos dados relevantes da nossa actual globalização à procura de um sentido, de uma ordem que trave o risco da desumanização. A lógica da organização do mundo em países a caminhar para a democracia estendida a quase toda a Terra está a ser torpedeada por entidades “invisíveis”, com força de mito, precisamente em nome da vantagem de se pensar e agir globalmente. Falamos das organizações transnacionais sem rosto, sem democracia, sem sufrágio dos povos. A começar pelos “fantasmáticos” mercados que fizeram dos bancos reféns – os quais, como se tornou habitual dizer, “não devem ser irritados nem afrontados pois vingam-se nos Estados com as suas manobras financeiras –, passando pelas multinacionais até à multiplicação de grupos terroristas que espalham o terror por todo o lado, todas vergam hoje em dia os chamados “Estados soberanos” às suas exigências, acabando por submeter os povos a medos, a austeridades, a contribuições para pagar “dívidas” de que não foram autores.
Dei por mim a discordar da parte conclusiva deste texto (de autor[1] cuja seriedade é inquestionável) e, portanto, a considerá-lo falacioso.
Para mim, o busílis está na parte final, quando considera que se está a «submeter os povos a medos, a austeridades, a contribuições para pagar “dívidas” de que não foram autores».
Pois eu acho o contrário: os autores das dívidas foram os povos que venderam os seus votos aos demagogos que tudo prometeram sem que eles, os eleitores, tivessem que comparticipar substancial ou sequer razoavelmente no financiamento das benesses. Estas têm que ser financiadas por alguém e os demagogos não hesitam em recorrer aos aforradores – aqueles que não espatifam o que vão recebendo – pedindo-lhes emprestados os capitais que os Estados não arrecadam em Impostos para suprirem os défices públicos que a demagogia cria.
E como o uso desses capitais alheios se transformou num abuso, a dívida acumula-se em níveis perfeitamente obscenos como é corriqueiro por cá e por aí além... só havendo um modo de os países se libertarem dos pesados serviços da dívida com que se deparam: pagando o que devem e mandando os credores (e esses “banqueiros de rapina” que mais não são do que intermediários) às urtigas logo que devolvam os capitais que lhes pediram de empréstimo.
Estamos, pois, perante uma maligna classe política useira e vezeira em sofismas governando hordas encarneiradas que repetidamente votam nesses demagogos malignos. E como o grosso da dívida pública se destina a financiar políticas sociais sem suporte suficiente na tributação corrente da actividade produtiva, vulgo impostos, os beneficiários das dívidas constituídas são os povos, esses que o Autor do texto inicial isenta de responsabilidades e a quem eu atribuo todas as culpas estaminais.
Só há uma dicotomia possível com exclusão de quaisquer outras hipóteses: esses povos são responsáveis ou, em alternativa, são irresponsáveis, quer dizer, imbecis. Escolham.
Junho de 2016
Henrique Salles da Fonseca
(à entrada das grutas na Baía de Halong, Vietname, NOV15)
A diabolização das poupanças empresariais e a sacralização de um factor de produção fizeram nascer ódios que só beneficiaram quem deles se quis servir para subir a escada do Poder.
Dito de outro modo: a diabolização do lucro e a sacralização do trabalho cultivaram a luta de classes como forma de fazer a revolução e instalar a ditadura.
O discurso esquerdino era (e continua a ser) o de tudo apregoar a favor das classes trabalhadoras e de tudo acusar os capitalistas e seus cúmplices, os burgueses.
O dramático percurso histórico desse processo culminou com a derrocada do Império Soviético qual baralho de cartas mal equilibradas. Ruiu o Império mas na mente dos seus devotos ficaram os sofismas, os complexos e os tiques.
Como exemplo de sofisma temos a diabolização das poupanças empresariais quando são elas que permitem novos investimentos sem recurso ao endividamento; como exemplo de complexo temos os raciocínios revolucionários de quem possui e até ostenta usos e costumes burgueses; como tiques podemos, dentre muitos, considerar a limitação da circulação automóvel em favor das bicicletas, maratonas nas pontes e vias principais, jogo das damas e bailaricos no largo onde antigamente se podia estacionar… pois há que estrangular os vícios burgueses e dar voz aos explorados…
Mas se o Estado tem que aumentar as receitas para poder distribuir a riqueza, como justificar essas políticas que contrariam o maior contribuinte que existe no país, o automobilista? E atenção! Não aceito teorias ecológicas quando é sabido que o Protocolo de Quioto não passa de um embuste[1] para extorquir dinheiro a todo o mundo a favor duma clique de «investigadores» ao serviço dum sector que se diz produtor de equipamentos “amigos” do Ambiente que funcionam com base em pressupostos dúbios. Também não façam a conversa anti-nuclear baseados na tecnologia de Chernobyl quando o que nós queremos é o nuclear de terceira geração à imagem e semelhança do que está a ser feito na Escandinávia. E quanto aos «explorados», eles já têm o Rendimento Social Mínimo para poderem continuar no confortável desemprego e no tráfico de estupefacientes como se constata pelos raides policiais aos bairros problemáticos. Os outros, os descendentes dos antigos proletários, já têm hábitos burgueses, pertencem à sociedade de consumo e não querem que se tenha pena deles.
Não haverá quem me acompanhe a dizer que BASTA DE HIPOCRISIA?
De onde nascem as revoltas? Chega sempre o momento em que os governos – governos fechados, impunes, corruptos – enfrentam multidões em fúria a que se juntam outras multidões em fúria. Governos que, ou acabam por fugir à força como fez Ben Ali na Tunísia, ou perdem a bússola, incapazes de estancar a rebelião nas ruas, como […] Hosni Mubarak […]. "O catalisador indispensável é a palavra. Por isso, mais do que petardos ou estiletes, são as palavras – palavras descontroladas, circulando livremente, subterraneamente, rebeldemente".
A liberdade de expressão tem sido uma ficção no Egipto. Como no resto do mundo árabe. O controlo da imprensa, a perseguição dos dissidentes, o condicionamento do espaço público são fenómenos banais. Publicam-se mais livros na Grécia, lembra Anne Applebaum, do que em todos os países árabes. O que pode fazer uma população jovem neste sufoco? Pode usar o Twitter para espalhar mensagens, ideias e fotografias. E o que faz o Governo logo que toma conhecimento da ameaça? Fecha tudo; proíbe o acesso à Internet; limita o telemóvel; prende jornalistas. Uma ilusão. Se quiserem mesmo protestar, aqueles jovens arranjarão maneira de o fazer. "É a autoridade que provoca a revolução. Isto ocorre quando um sentimento de impunidade toma conta da elite: Estamos autorizados a tudo, podemos fazer tudo. Por algum tempo parece mesmo que eles podem fazer tudo. Escândalo a escândalo, ilegalidade a ilegalidade, passam sem punição. O povo permanece quieto, paciente, temeroso. Ao mesmo tempo, guarda um registo detalhado de todos os erros que em determinado momento serão somados". Os tunisinos sabiam da roubalheira do Governo em que se tinha especializado Ben Ali. Sabiam que no regime a impunidade era norma, que eles podiam fazer o que quisessem. Os egípcios também estavam a par do nepotismo e corrupção do país. Sabiam que Mubarak falsificou as últimas eleições, que o seu poder depend(ia) da repressão policial. Eram testemunhas da ostentação da família, num país em que 40% vive com menos de dois dólares diários. Bem podia Mubarak criar uma aparência de aprovação popular, bem podem os media do Estado ignorar os protestos do Cairo. Podemos resistir a tudo, excepto à humilhação. "Que foi que eu fiz", pergunta o governante, em derrota. "O que é que lhes deu na cabeça assim tão de repente?". Foi isto que ele fez: Ele abusou da paciência do povo." Mubarak promete reformas, recompõe o Governo, promove o chefe dos serviços secretos. Mas nada parece apaziguar a multidão do Cairo. Mais um cerco para hoje. Porque não são mudanças formais que a multidão procura. O desafio para Mubarak é restaurar a paciência do povo. Mas como é possível depois de se ter abusado? "A História conhece dois tipos de revolução. A primeira é a revolução por assalto, a segunda a revolução por cerco. O sucesso da revolução por assalto é decidida no primeiro ataque. Uma revolução por cerco é diferente; aqui o primeiro ataque é geralmente fraco. Mas os acontecimentos aceleram. Mais pessoas tomam parte. O sucesso da revolução por cerco depende da determinação e resistência dos rebeldes. Mais um dia. Mais um golpe." O que ditará o sucesso ou insucesso dos protestos é a intensificação da revolução por cerco. Dizem os repórteres que nunca, em ocasiões anteriores, a polícia de Mubarak foi tão ineficaz em reprimir. E se os polícias engrossarem em massa os manifestantes, aí sim, teremos atingido o ponto de não-retorno. O cerco destruirá a autoridade do regime.
"O xá deixou ao povo a escolha entre a Savak e os mullahs. E eles escolheram os mullahs". No Irão de 1979 milhares de iranianos educados estudavam na Europa e nos EUA. Não queriam regressar para a Savak (a polícia do xá). No Egipto, os resistentes são uma população jovem que estuda e vive no país. O que querem eles ainda não sabemos. E não querem, ou muitos não querem, a Irmandade Muçulmana ou líderes de fachada. Querem, para já, existir.
(Todas as citações pertencem ao livro de Ryszard Kapucsinski, Shah of Shahs, sobre a revolução no Irão em 1979.)
Pedro Lomba
Público, 2011-02-01
(Adaptações assinaladas apenas para transformação do presente em pretérito, HSF)
COMENTÁRIO:
O mundo é velha cena ensanguentada
Coberta de remendos, picaresca,
A vida é chula farsa assobiada
Ou selvagem tragédia romanesca.
Disse-o Cesário, numa boa síntese, aplicável a estes e àqueles. E as causas estão na loucura dos que se assumem como poderosos e aos quais se permitem todas as manigâncias do poder, por longo tempo impunes. Mas o desenvolvimento do progresso faz despertar para a consciência dos humilhados e lá se vai a impunidade dos poderosos. Nem sempre, contudo, acontece isso, e a farsa segue.
A liberdade não é um privilégio de alguns, mas um direito de todos, um direito precioso que o poder civil deve garantir. Todavia, a liberdade não significa arbítrio individual, mas implica a responsabilidade de cada um. Aqui se encontra um dos principais elementos da laicidade do Estado, ou seja, assegurar a liberdade para que todos possam propor a sua visão da vida comum, mas sempre no respeito do outro e no contexto de leis que visem o bem comum.
Sou contra a tirania, qualquer que seja a sua fonte, de um, de alguns, ou da maioria reunida em colectivo
Tenho seguido com interesse o debate que este jornal [Público] tem promovido sobre os acontecimentos no mundo árabe. Hesito, no entanto, em intrometer-me.
Posso ser acusado de conflito de interesses. Em 1998, em Nova Deli, fui co-fundador do World Movement for Democracy, que ainda hoje existe, com sede em Washington. Dez anos mais tarde, em Haia, voltei a ser co-fundador da European Partnership for Democracy, que tem sede em Bruxelas. No ano passado, recebi com surpresa uma Medalha de Gratidão, atribuída pelo European Solidarity Center, com sede em Gdansk, pelo apoio que terei promovido ao Solidarnosc polaco, na década de 1980.
Por outras palavras, a minha posição é demasiado simples e cortante: sou contra a tirania, qualquer que seja a sua fonte, de um, de alguns, ou da maioria reunida em colectivo. E sou a favor da democracia liberal, em qualquer parte do planeta, qualquer que seja a cor da pele, a religião, ou outras particularidades da comunidade em questão. Logo, sou a favor da democracia também no mundo árabe.
Isto não significa, no entanto, que eu possa, ou sequer queira, garantir que os actuais movimentos populares no mundo árabe vão conduzir à democracia. Ninguém pode saber. Mas isto significa que é muito claro o que o Ocidente deve fazer (e, lamento ter de o dizer, já devia ter feito há muito tempo) no Médio Oriente: condenar as tiranias, incluindo as potenciais novas tiranias em preparação; e exercer com vigor a sua influência para viabilizar transições ordeiras e pacíficas para regimes constitucionais pluralistas – vulgo democracias liberais – na região.
Isto significa deixar muito claro que o Ocidente não deve pactuar com tentativas de manipulação autoritária dos movimentos populares actualmente em curso no mundo árabe. E que deve apoiar activamente lideranças locais que se identifiquem com os princípios do governo representativo limitado pela lei.
Foi isso que fizeram Ronald Reagan, João Paulo II e Margaret Thatcher na década de 1980, quando condenaram a tirania comunista – como muito bem explicou o meu amigo John O’Sullivan no excelente livro O Presidente, o Papa e a Primeira-Ministra (Aletheia, 2007). Foi isso que fez Winston Churchill desde 1917 até à sua morte, em 1965: condenou o comunismo soviético nascente, depois o nazismo, e de novo o comunismo, quando este já estava consolidado e fazia descer uma "cortina de ferro" sobre a Europa central e oriental. E o mesmo fez Edmund Burke na segunda metade do século XVIII. Condenou a violação britânica dos direitos dos católicos irlandeses, dos direitos dos súbditos indianos e dos direitos dos colonos americanos. Finalmente, denunciou a violação dos direitos dos franceses pelo autoritarismo, alegadamente progressista, da Revolução Francesa.
Não vejo porque não podemos fazer exactamente o mesmo no mundo árabe. Significa isto que queremos impor aos muçulmanos o modo de vida ocidental? De maneira nenhuma. Significa apenas que não reconhecemos o direito de alguns muçulmanos violarem os direitos humanos dos seus semelhantes. É esta uma visão exclusiva, ou exclusivista, do Ocidente? Não vejo porquê. É uma visão acessível a qualquer pessoa, independentemente da sua "raça", religião, ou outra característica particular. Milhões de "não ocidentais" emigram anualmente para o Ocidente em busca da liberdade e do seu fruto, a prosperidade. Apesar disso, o Ocidente não os obriga a abandonar a sua religião, nem os seus costumes peculiares, a menos que impliquem coerção intencional sobre terceiros.
Uma coisa é certa: o Ocidente não deve, nem pode, abandonar a defesa da liberdade, apenas porque algumas pessoas preferem impor a tirania. É assim, foi assim, e continuará a ser assim, desde a velha Atenas de Péricles e da Grande Geração, o berço marítimo da sociedade aberta, há 2500 anos. Eles deixaram-nos uma herança nobre que ainda perdura: chama-se liberdade.
João Carlos Espada
Director do Instituto de Estudos Políticos da Universidade Católica Portuguesa; titular da cátedra European Parliament/Bronislaw Geremek in European Civilization no Colégio da Europa, Campus de Natolin, Varsóvia