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A bem da Nação

Burricadas nº 37

 

 

 

UMA DESGRAÇA NUNCA VEM SÓ – III

(à guiza de Post Scriptum)
 
v      Em recente debate televisionado, ninguém parecia preocupar-se com a regra de licitação que, tradicionalmente, as Lotas portuguesas adoptam. Refiro-me ao leilão em que os preços são recitados por ordem descendente, a que o castiço “chui” vem pôr termo.
v      Ora os inconvenientes do leilão “de cima para baixo” são de tal modo óbvios que o método nem sequer deveria ter sido alguma vez adoptado. E se quem tem a obrigação de regular os mercados soubesse ao que vem e para o que está, há muito que, com um “chui”, teria remetido esta forma de leiloar para um Museu do Irracional.
v      Num leilão competitivo, montado no interesse de ambas as partes (mas especialmente atento ao interesse da oferta), todos, desde que sejam solventes, têm sempre a possibilidade de se manter em jogo - bastando para tal fazer um lance mais alto.
v      Ou seja, o método não é limitado superiormente (por isso disse que era mais atento aos interesses da oferta) e só termina quando não forem manifestadas expectativas de preço mais elevadas do que a última a ser anunciada. Com a apreciável vantagem de a questão do preço de abertura nem sequer se colocar.
v      Facilmente se vê que um leilão "de cima para baixo" não é um leilão competitivo, pela simples razão de que o primeiro a dizer "chui" arremata, dá o mercado por encerrado e com isso expulsa todos os outros licitantes.
v      É um esquema com um limite superior, o que suscita desde logo a questão de saber quem o fixa, como o fixa e porquê o fixa, uma vez que o preço de abertura vai influenciar os lances.
v      E é um esquema de lance único (ou irreversível): cada licitante, quer queira, quer não, só pode falar uma vez – e, se o fizer, cala irremediavelmente todos os restantes.
v      Ambos os métodos seriam mais ou menos equivalentes, verificadas que fossem duas condições: (a) pertencer à oferta o lance inicial; (b) poder a oferta dar o mercado por encerrado, se o preço descer abaixo de um determinado limiar.
v      Ora, sabe-se: (1) que as lotas transaccionam produtos perecíveis; (2) que a logística de armazenagem (o transporte no tempo) é insuficiente, de fraca qualidade e cara; (3) que as posições da oferta e da procura não são simétricas (aquela, se não vender, suporta danos por não cobrir o que já despendeu; esta terá, apenas, lucros cessantes).
v      A assimetria do mercado é ainda acentuada pelo facto de a oferta ter, por regra, menor capacidade financeira que a procura (quer quanto a capacidade financeira própria, quer quanto a capacidade de endividamento; os Bancos pelam-se por financiar a distribuição, mas "cortam-se" quando se trata de emprestar à agricultura ou à pesca).
v      Quer dizer: o armador (a oferta): (1) não tem apoios idênticos ao do distribuidor (a procura); (2) não está em pé de igualdade com o distribuidor quando se trata de dar o mercado por encerrado; (3) encontra-se sempre numa posição de necessidade, dados os custos que já teve de suportar directamente.
v      Em suma: (1) o leilão "de cima para baixo" revela que a oferta tem mesmo que vender, seja qual for o preço, dado que não dispõe de poder negocial; e (2) o mercado, ao ser irreversível, em vez de revelar quem está disposto a oferecer o preço mais alto (quem tem a expectativa de preço mais elevada, segundo o critério "máximo dos máximos"), vai nivelar-se pelo "máximo dos mínimos" - sem que a oferta tenha meios de contrariar isso (a tal assimetria acentuada e a referida irreversibilidade).
v      Esta simples alteração no método de leiloar (adoptando-se definitivamente o leilão “de baixo para cima”) teria um efeito estruturante no Sector das Pescas por de mais evidente. E tornaria um pouco menos patético o lamento do Ministro.
Lisboa, Junho de 2008
A. PALHINHA MACHADO
 

Burricadas nº 36

 

UMA DESGRAÇA NUNCA VEM SÓ - II
 
v      Em Portugal, todo o risco de mercado recai, exclusivamente, sobre quem ousa produzir bens alimentares perecíveis. Mas sabe-se há muito (desde o séc. XVII no Japão, e desde o séc. XVIII na Flandres) que as Bolsas de Mercadorias, correctamente reguladas, são o único meio de distribuir por produtores, distribuidores e consumidores, com um mínimo de equidade, esse risco (e também risco de crédito e risco de contraparte).
v      Logo, sem um mercado da 1ª transacção bem organizado e eficiente, o relançamento do Sector das Pescas continuará a ser um objectivo permanentemente adiado.
v      A solução que, entre nós, a tradição moldou para a entrada do pescado nos canais de distribuição comercial não favorece o Sector das Pescas, desperdiça recursos e desaproveita oportunidades.
v      Presentemente, não é possível falar de um mercado nacional de pescado, mas sim de vários locais de transacção (as lotas), um em cada porto de descarga. Esta realidade compartimentada, formada por fragmentos estanques, é o oposto de um mercado eficiente.
v      E, no entanto, bastaria começar a veicular toda a informação relevante (qualidades, quantidades, preços oferecidos, preços pedidos, ordens efectuadas) por todas as lotas para que, pelo menos entre aquelas geograficamente mais próximas, ficassem mais transparentes as intenções da procura e da oferta, e para que o mercado, mesmo “a contado”, pudesse finalmente começar a funcionar.
v      Mas só isso não faria um verdadeiro mercado. Há também regras e procedimentos a institucionalizar, como haverá regras e procedimentos a modificar. Por exemplo, o método adoptado actualmente para a formação do preço em lota (leilão “de cima para baixo”) não tem lógica económica, nem teoria que o apoie. Apenas confere à procura a posição dominante, e faz recair sobre a oferta todo o risco de mercado.
v      Para que os preços passassem a ser correctamente formados, e o risco de mercado mais equitativamente repartido, bastaria proceder a leilões “de baixo para cima”, tomando-se talvez por base de licitação o que hoje se designa por “preço de retirada”.
v      E se fosse instituído um mercado de “futuros” sobre algumas espécies de pescado (as de maior procura), não só se distribuiria melhor o risco nas transacções “a contado”, como oferta e procura, por igual, disporiam de instrumentos de cobertura para o risco de mercado em horizontes temporais previsíveis (até 6 meses, talvez).
v      Acontece que a existência de um mercado de “futuros” suficientemente activo e líquido poderia induzir maior disciplina nas capturas: os barcos, querendo, não mais zarpariam para a faina sem saber o que vão pescar e a que preços vão ter de vender o pescado.
v      E se assim é para o Sector das Pescas, por maior razão será para a Agricultura, dado que em Portugal, desde sempre, os agricultores começam por investir na produção e só mais tarde é que vão à procura de um mercado onde a escoarem. Consequentemente, sujeitam-se ao preço que os distribuidores se dispuserem a pagar nessa data, sob pena de verem a produção apodrecer-lhes nos silos e nos armazéns. E é assim que a Agricultura se esvai.
v      Como qualquer outro, aliás, também o mercado da 1ª transacção do pescado exige suportes físicos (hardware: armazéns, equipamentos de movimentação, capacidade de frio) e suportes organizacionais (software: regras de negociação, instrumentos financeiros, informação divulgada, boas práticas) adequados. E tal como todos os mercados, também ele se verá asfixiado por regimes fiscais deficientemente concebidos, ou por encargos (isto é, custos de transacção) demasiado ambiciosos.
v      Enfim, o aparecimento, em território português, de um mercado bem organizado e eficiente para a 1ª transacção dos produtos da pesca, quer “a contado”, quer “a futuro”, não deixaria de arrastar consequências inesperadas: (1) maior racionalidade no esforço de pesca, logo menor pressão sobre os stocks biológicos; (2) o posicionamento de Portugal como o principal porto para as frotas pesqueiras da Europa Ocidental no Atlântico Central e Sul (posição hoje ocupada por Cádis); e (3) a instalação, em Portugal, de um inovador mercado financeiro das pescas, cobrindo grande parte da Europa Ocidental e o Maghreb. (cont.)
 
Lisboa, Junho de 2008
 
A. PALHINHA MACHADO

Burricadas nº 35

 

UMA DESGRAÇA NUNCA VEM SÓ - I
 
v      Há dias, fomos surpreendidos por umas declarações algo patéticas do Senhor Ministro da Agricultura e Pescas. Lamentava-se o governante de que o peixe vendido pelo pescador, na lota, a 1 lhe chegava ao prato a 10 ou mais. Melhor exemplo não haverá para documentar a desgraça que nos saiu na rifa.
v      Neste lamento pungente vai tudo o que nos caracteriza e que persiste em dar forma à nossa organização social. Se não, repare-se: o mercado (no caso, o mercado do pescado) é, na mente do Ministro, uma realidade exterior à esfera do Estado – e uma realidade que ele nem sequer tenta compreender, quanto mais regular.
v      Quem percorrer a nossa História dos últimos dois séculos verá que muitos traços têm permanecido intactos, ainda que disfarçados com as roupagens próprias das sucessivas épocas. O lamento deste nosso governante é disso excelente prova.
v      Um desses traços é, precisamente, o perpétuo infortúnio dos agricultores, dos pescadores e de todos aqueles que produzam bens alimentares para vender – uma má fortuna cujas causas ninguém, entre nós, conseguiu ainda identificar.
v      E assim é, não porque elas, matreiras, se ocultem, mas porque nós não temos olhos para as ver. Para tal, os nossos olhos teriam de ser capazes de distinguir, com cristalina nitidez, as diferentes intenções que animam um mercado - e tão longe eles não alcançam.
v      Não, não me refiro às mais que sabidas oferta e procura – os lados do mercado. Refiro-me, sim, às intenções que animam tanto a oferta como a procura – e essas são: de cobertura (o agente económico não pretende ficar exposto ao risco de mercado e, por isso, convenciona antecipadamente um preço que lhe convém); de especulação (o agente económico aceita expor-se ao risco de mercado na expectativa de que ocorra um dos cenários que lhe proporcionam ganhos). Especuladores, neste sentido preciso, são as companhias de seguros – uma especulação que é tradicionalmente bem vinda.
v      Mas, por cá, continua-se a confundir especulação (correr riscos deliberadamente) com manipulação (forçar uma realidade no interesse de uns poucos, e em prejuízo dos demais). Como se continua a ensinar que o mercado é, não um sistema de regras, uma organização, mas tão só aquele pontinho onde a oferta e a procura, despidas de qualquer animus face ao risco de mercado, se cruzam.
v      Resultado, ao banir-se a especulação, seja no plano ético, seja no plano legal, veda-se, de facto, o acesso das intenções de cobertura ao mercado, por não terem estas, aí, quem lhes adquira o risco. E o que, por hábito, continuamos a designar por mercado não será mais do que um esquema de trocas avulsas, aberto a toda a espécie de habilidades.
v      Em Portugal, persiste, de há muito, a preocupação de banir a especulação dos mercados da 1ª transacção dos bens alimentares (os mercados onde estes bens dão entrada nos canais de distribuição e/ou de transformação). Ouve-se a cada passo, legislador, governantes, arraia miúda, os próprios produtores, a proclamarem alto e bom som: especular com bens alimentares é um crime!!!
v      Consequência inevitável de tanta miopia: o risco de mercado das actividades agrícolas recai, todo, sobre os agricultores; o risco de mercado da pesca são os pescadores que o suportam por inteiro; e assim por diante.
v      Se a oferta é abundante, os preços na 1ª transacção - que são sempre e só, na nossa maneira tosca de ver o mundo, preços “a contado” (transacções de “toma lá, dá cá”, com entrega e pagamento imediatos) – caem a pique, e com eles os rendimentos dos agricultores e dos pescadores. Se a oferta é escassa, o produto da venda, mesmo com preços altos, pode não ser suficiente para proporcionar ao produtor um rendimento decente, dados os custos que teve de suportar.
v      E como os bens alimentares são, por natureza perecíveis, e como não existem meios logísticos suficientes, nem linhas de financiamento adequadas às especificidades dos mercados de 1ª transacção, agricultores e pescadores, ou vendem, ou vendem - sempre “a contado”. Não lhes resta alternativa, porque não há quem esteja na disposição de comprar a prazo e assumir o risco de mercado. Isso, Leitor: cá adentro, tropeçamos a cada passo em manipuladores de preços; mas, especuladores, nem vê-los.
v      A solução que o Ministro (acolitado pelos pescadores - e, a seu tempo, lá virão os agricultores) preconiza é outro dos traços que nos acompanha desde o fundo dos tempos: Tendes problemas? Então tomai lá uns subsídios.
v      Não ocorreu a ninguém que subsídios é sinónimo de impostos - e que o OGE é um modo caro de transferir rendimento (a intermediação orçamental não é de borla, longe disso).
v      Não ocorreu a ninguém que o subsídio não cria mercados, não modifica a estrutura de nenhum mercado e que quem deles verdadeiramente beneficia são os manipuladores - que crescem e prosperam em terra sem rei nem roque (crescem, prosperam, mas têm o cuidado de não se multiplicar, pois se o fizessem o mercado não tardaria a irromper - e lá se iam os sobrelucros que só a manipulação proporciona).
v      Em termos crus: o subsídio engorda a presa – e são certamente necessários subsídios para que tudo fique na mesma, apesar da crise.
v      Não ocorreu ao Ministro: (1) que ele não é o Estado a olhar para a sociedade civil e o tecido económico; (2) que, não ele, mas o Governo que ele integra, é o órgão executivo do Estado; (3) que uma das funções primordiais dos órgãos do Estado é aperfeiçoar a organização da sociedade; (4) que uma dessas formas de organização é, justamente, o mercado; e (5) que compete aos membros dos órgãos do Estado (designadamente, do Poder Legislativo e do Poder Executivo), em nome da sociedade que lhes dá a razão de ser e os sustenta, assegurar a eficiência dos mercados através de regulação e supervisão.
v      Não ocorreu ao Ministro que o busílis da questão, antes de estar nos 10 que tem de pagar, está nos 1 que o produtor recebe - apesar de o consumidor final estar na disposição de pagar 10.
v      Não ocorreu ao Ministro ser governante. Ocorreu-lhe, apenas, ser o padrinho que distribui por uns quantos afilhados mais um bodo que, aliás, nem sequer lhe pertence.
v      Em termos ainda mais crus: ocorreu ao Ministro alguma coisa que valha, nesta eventualidade? (cont.)
 
Lisboa, Junho de 2008
A. PALHINHA MACHADO

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