vCirculam pela Internet textos vários que incitam os portugas a boicotar tudo o que cheire a GM - por causa do encerramento da fábrica de Azambuja, naturalmente.
vTenho para mim que é sempre mau deixar que o coração tome o lugar da razão. Por norma, acaba-se dando tiros no pé, quando não pelo corpo todo.
vPara quem viva arredado destes faits divers esclareço que a GM, nos EUA, está à beira da falência, devido a anos de gestão azarada e a um generoso esquema de pensões de reforma impossível de cumprir. Cá pela Europa, ressalvando o mercado alemão, também não goza de melhor saúde - sobretudo, depois de ter entregue à FIAT um balão de oxigénio financeiro de muitos, muitos milhões de USD que deram novo, mas curto, alento à periclitante marca italiana.
vPerante este quadro, duas perguntas, desde logo, se impõem: Cegos ao que se passa à nossa volta, queremos continuar a apostar recursos e futuro num grupo empresarial que está em risco de se dissolver de um momento para o outro? E se a GM, entretanto, solicitar a protecção judicial face aos credores (o famigerado Chapter XI), para não imaginar pior, o que acontecerá à fábrica portuguesa e aos que lá trabalham?
vE o que é, afinal, a fábrica de Azambuja? É uma linha de montagem mono-marca - ou seja, o troço da indústria automóvel que, graças aos robots, utiliza a mão-de-obra menos especializada de toda a fileira.
vInteressante, sim, seria trabalhar no design de modelos, desenvolver e fornecer peças, componentes, ferramentas e acessórios - actividades que fazem apelo a maior especialização, geram maior volume de emprego e atingem clientelas mais diversificadas.
vBem vistas as coisas, quando se quer estar na indústria automóvel sem correr o risco de marcas próprias: (a) ou se incentiva a montagem, na esperança de induzir a formação de um cluster de fornecedores locais; (b) ou, então, começa-se por apostar no cluster de fornecedores locais para, em seguida, atrair montagens (etapa industrial final)- com o propósito último de, por razões logísticas, criar um mercado cativo para os fornecedores locais; (c) ou só resta andar ao sabor do vento – como parece ser o caso.
vCom isto quero dizer que a verdadeira ameaça para a economia portuguesa provém, não do encerramento da fábrica de Azambuja, mas de a GM (Casa mãe) se acolher à protecção do Chapter XI ou, pior, desaparecer tout court.
vQuando, na indústria automóvel, a nível mundial, existe capacidade em excesso, é de temer que o mercado não dê pela falta de umas quantas marcas em declínio (dito de outro modo: caso a GM entre em colapso, não é de crer que apareça alguém a relançar as suas actuais marcas e as respectivas produções). Isto, sim, é que deveria preocupar-nos a todos, pois, a acontecer, propagaria para montante a má-fortuna da GM - com efeitos directos no cluster de fornecedores nacionais.
vSe o Governo quisesse agir sensatamente, começaria por ponderar muito bem os riscos de persistir na presença industrial, entre nós, de uma GM que luta desesperadamente por sobreviver.
vSe viesse a considerar esses riscos aceitáveis, o Governo poderia manifestar, com diplomática fleuma, a sua disposição de apoiar os planos de recuperação que a GM, ou alguém por ela, está a gizar. Por exemplo, abrindo uma linha de seguro de crédito específica, em condições competitivas, que cobrisse as relações do cluster nacional com a GM, numa base contratual, regular e continuada.
vPoderia também propor-se estudar com a GM a logística (complicada como facilmente se imagina) tanto das suas actividades no Sudoeste europeu, como da distribuição das suas viaturas entre a Europa do Sul, os EUA, a África do Norte e Ocidental e a costa atlântica da América do Sul. Sines existe precisamente para isto. Mas, como tudo indica, continuarão a ser os portos marítimos de Barcelona, Valência e Málaga a movimentar todo esse tráfego.
vEnfim, como último recurso, poderia desafiar algum dos nossos empresários, tão defensores dos centros de decisão nacionais (e por que não também os sindicalistas que, depois de fazerem o mal, rezam agora pela caramunha), a correr o risco de pegar na fábrica de Azambuja em regime de outsourcing. Se não aparecer ninguém disposto a correr este risco, forçoso é concluir que a decisão da GM, por muito que nos incomode, é lógica e é inatacável.
vComo ser simpático para o Governo português, para os sindicatos portugueses ou para os trabalhadores portugueses não consta de nenhuma alínea, de nenhum parágrafo dos estatutos da GM, ninguém de boa fé pode vir agora reclamar que foi ao engano.
vE as atitudes “macho” a que temos assistido só agravam o custo de oportunidade da localização em Portugal, tanto para os que já cá estão, como para aqueles que para cá estavam a pensar vir.
vSeria, na verdade, difícil encontrar uma forma mais tonta de responder a uma situação complicada.
Saído jovem de Portugal rumo a África, o José Gomes Martins acabou por se fixar na Tailândia onde já leva quase 30 anos de paz.
José Gomes Martins, um beirão na Tailândia há quase 30 anos
Nesta minha saga do resgate dos “portugueses abandonados”, conheci-o virtualmente nas minhas andanças internéticas em busca dos locais por onde Portugal andou nos tempos do Império e por onde foi abandonando, vivos e mortos, muitos dos que lhe foram fiéis e por ele deram a cara e até a vida. Mas voltando ao José Gomes Martins, falta agora conhecê-lo pessoalmente pois visito-o regularmente no seu “Aqui Maria” (v. http://www.aquimaria.com/html/aboutth.html)e ele é dos mais antigos frequentadores do “A bem da Nação”.
Estranhando-lhe o silêncio, procurei-o certa vez em directo e foi com preocupação que não obtive resposta. Passado mais um silêncio, procurei-o ontem de novo: que tinha vindo a Portugal, que acabara de regressar à Tailândia e que estava a arrumar as suas “coisinhas” na cabeça para retomar a escrita.
Respirei de alívio mas fiquei com pena de não o ter sabido por cá pois havia de o encontrar para falarmos em directo sobre o que tanto nos interessa: Portugal.
Aprazámos encontro em Goa.
Convidei-o a escrever um texto sobre o que vira em Portugal mas respondeu-me que a tristeza o invadiu e que preferia não mudar o sentido da sua vida revelando a mágoa de sentir um país abandonado. Sirvo-me das fotografias que me enviou do seu Planalto Beirão natal para fazer eu a reportagem que o magoaria de mais. Vejamos se enxergo o país que ele encontrou.
Terá sido pelo ano de 1930 que a Câmara Municipal de Mortágua – extremo poente do mesmo Planalto – decidiu electrificar a sede do Concelho e para isso comprou um gerador que funcionava entre o pôr do Sol e a alvorada; terá sido durante as férias escolares desse mesmo ano que o meu Pai fez a instalação eléctrica na casa paterna. Foi já pelos finais da década de 50 que se instalou o abastecimento doméstico de água e se iniciou o saneamento básico, tudo e apenas na sede do Concelho; o abastecimento doméstico só chegou às demais sedes de Freguesia com a primeira Vereação democraticamente eleita depois de 1974 e quanto ao saneamento nada sei porque, felizmente, esse tipo de obras deixou há muito de ser notícia.
Terá sido na década de 50 que foi inaugurado o único Hospital das redondezas sendo que, até então, qualquer caso que não pudesse ser atendido pelo farmacêutico, tinha que ir a correr para Coimbra por estradas bem menos fáceis que as de hoje. Os dois médicos a percorrerem de dia e de noite montes e vales para atenderem gente isolada e indefesa contra os males mais ou menos virulentos que amiúde davam origem à celebração do requiem.
População envelhecida à espera dos cânticos de requiem
Ou seja, precaríssimo conforto duma população eminentemente rural, praticando uma agricultura de subsistência e com elevados índices de analfabetismo. As crianças abandonavam bem cedo a escola para ajudarem os pais no ganha-pão da família, o pastoreio constituindo a tarefa mais suave que os esperava nas mais tenras idades. Com grande densidade florestal, não era fácil a produção alimentar fora dos lameiros e outras zonas baixas; a fomeca a apertar os estômagos, ávidos duma produtividade agrícola totalmente desconhecida de gerações sucessivas, o gado a viver bem perto das pessoas para aquecer no Inverno com o bafo e outras exalações de ruminança.
O mundo rural esvaziou-se
As feiras mensais a assumirem um papel importante no aprovisionamento doméstico e a servirem de escoadouro para as magras produções agro-pecuárias com preços formados ao abrigo do método do “sabe Deus como” mas único recurso de ligação à longínqua e, no entanto, imprescindível economia monetária.
Foi deste mundo sem conforto e sem esperança que saíram os inconformados com tal sina. Assim se fizeram o Brasil, Angola e tantos outros países de maravilha. Foi daqui que saiu o José Gomes Martins e foi aqui que voltou para reencontrar a sua própria meninice.
E que viu ele?
Viu aqueles que não ousaram dizer que bastava e que por isso mesmo se deixaram ficar e viu os que tinham modo de vida capaz de sustento sem frio. Mas a esses que viu também passaram os anos por cima só que, como nunca cheiraram a esperança de nova vida, encarquilharam nos horizontes da miopia a que se abandonaram. Para esses, tudo é igual: tanto o Brasil como a Tailândia ou até mesmo França e a América ficam para lá de Viseu . . .
"Quem canta seu mal espanta"
Mas Viseu cresceu mais do que alguma vez sonhou e é hoje um pequeno e harmónico centro urbano que finalmente encontrou a Universidade como a solução para a fixação da juventude e é dessa nova camada de gente educada que está a surgir uma dinâmica social e industrial impensável até há pouco.
Este novo Planalto Beirão está urbanizado em pequenos núcleos que esvaziaram as aldeias vizinhas, não fez evoluir a economia agrária de que estava fartíssimo, decantou-se em duas camadas – os velhos e os novos – e deixou morrer o mundo de antigamente que não era competitivo mas apenas sobrevivente.
Foi este Portugal abandonado que partiu o coração do José Gomes Martins e eu creio que esse é um mundo que não volta mesmo mais.
O meu amigo só poderá encontrar essas aldeias de ruralidade pura e inocente lá nas faldas das montanhas de . . . Chiang Mai.
Esta, uma reportagem de partir corações. Partamos para o futuro.
A super propagandeada má sina dos portugueses tem sido alvo da especialização dos telejornais e da imprensa escrita de pendor mais popular. Mas se foi essa a razão que levou à captação de audiências e à facturação de publicidade, os demais órgãos de comunicação tinham também que enveredar pela exploração desse filão e eis como em Portugal a tónica da comunicação assentou arraiais nos queixumes, nas reivindicações, nas denúncias de corrupção e demais poucas-vergonhas, enfim, em todas as formas de apagamento das virtudes nacionais.
A serem verdadeiras as notícias que somos obrigados a seguir, não é crível que Portugal exista como local habitado por seres racionais. Dado que empiricamente se conclui em sentido contrário e que Portugal sempre dispõe de alguma massa cinzenta, então também podemos de modo empírico concluir que a tónica escolhida pela comunicação social está desfasada da realidade, ou seja, que desinforma ou, até mesmo, que mente.
E como chegou a exploração das baixezas aos píncaros da moda?
Creio que tudo tem a ver com a falência do actual modelo de desenvolvimento português, processo tipicamente interno mas acelerado pela globalização em curso.
Se a prática fisiocrata sempre foi em Portugal uma autêntica falácia, já o mesmo se não diga do mercantilismo que até ao 25 de Abril de 1974 imperou em todo o espaço português com a evidente opção pela concretização do Pacto Colonial que partia do pressuposto de que as colónias tinham sido inventadas para assegurar à metrópole uma balança comercial favorável. E mais: nos últimos tempos, cada parcela (Província Ultramarina) devia ser comercialmente autónoma perante a Metrópole e, mais especificamente, devia ter crédito no Banco de Portugal por onde passavam todos os movimentos financeiros com o exterior. Foi o Doutor Salazar que deu forma a uma certa “harmonia complementar de espaço” em que a Metrópole produzia vinho e azeite, S. Tomé e Príncipe se dedicava ao cacau, Angola ao café e Moçambique ao chá. Quando em Moçambique foram descobertos depósitos diamantíferos, logo o Inspector do Ministério do Ultramar foi mandado regressar à Metrópole e guardar silêncio para não incomodar a angolana Diamang; o café de Quelimane nunca chegou ao mercado de Lourenço Marques e outras condicionantes que tenham ocorrido nas demais parcelas do Império ficam para relato de quem as investigue como ilustração de um modelo de desenvolvimento que, para o melhor e para o pior, era coerente e que por isso mesmo funcionou durante decénios. Enfim, uma lógica de complementaridade entre as diferentes parcelas territoriais e de estabilidade global que tudo tinha a ver com o condicionamento industrial, sempre em clara oposição à concorrência inter-territorial e mesmo intra-territorial.
Pese embora algum imobilismo, chamemos-lhe sem pejo modelo de desenvolvimento pois foi ele que encheu de ouro os cofres do Banco de Portugal, reservas essas que tanto têm durado para o financiamento das dificuldades do modelo que se seguiu e a que agora tantos portugueses oram de crepes.
Fim abrupto do Império e ruptura revolucionária foram a face visível da Lua que subiu aos céus em 1974 e se encheu em 1975; da face oculta constavam a passagem desse mesmo Império para a esfera soviética como garrote à Europa ocidental, com excepção do petróleo e diamantes angolanos que na Tordesilhas de então se destinaram a outras voracidades.
Muito aplaudido no regresso à sua velha dimensão europeia, foi rapidamente que em Portugal, ao som de folclóricas canções de protesto e loas aos cravos, se procedeu à estatização de parte significativa da Economia, se enveredou pela política comunista do pleno emprego, pela concessão de regalias totalmente novas no panorama laboral, na Saúde, na Segurança Social. Ficaram estas regalias no discurso da esquerda política como as famosas “conquistas irreversíveis de Abril” com elas fazendo pacote o princípio do ensino gratuito para todos e esse insaciável sorvedouro de dinheiros públicos que é o Serviço Nacional de Saúde. Foi depois dos finais de 1975 que com algum esforço se conseguiu instalar uma democracia de cariz verdadeiramente ocidental mas – não nos esqueçamos – ainda neste ano de 2006 a Constituição Portuguesa refere o socialismo como algo a prosseguir (1) e tem um capítulo inteiro dedicado à organização económica do país (2). Temos, pois, um modelo constitucional de organização económica e não faltam ocasiões para que sejam feridas de inconstitucionalidade algumas reformas de necessidade axiomática.
Constitucionalmente nomeados voluntários para seguirmos na senda socialista, eis como os constituintes nos atribuíram autêntica “capito diminutia”, impedidos que estamos de maioritariamente escolher o que uma actual minoria “in illo temporae” decidiu e fixou para a eternidade sob o beneplácito tutelar do Conselho da Revolução maioritariamente constituído por capitães auto-graduados em marechais, quase todos nostálgicos das gloriosas vitórias do Exército Vermelho dos sovietes supremos.
E se em 1976 apenas um Partido votou contra a Constituição aprovada naquela sessão parlamentar, não terão entretanto faltado ocasiões para que alguns desses constituintes aprovadores se tenham arrependido de terem então cuspido para o ar. De crocodilo, as lágrimas que derramem com a curta memória dos eleitores a permitir-lhes uma inexplicável sobrevivência política.
E no que se transformou Portugal? Na omnipresença da Administração Pública com sistemática tutela dos mais recônditos nichos da vida nacional, na sede da burocracia, na busca e venda dos favores públicos com formidáveis malabarismos para o financiamento partidário, no esmagamento tributário da actividade produtiva e consequente incapacidade privada de financiamento da Despesa Pública, na acumulação de défices, no aumento da Dívida Pública. Tudo, em resultado de vagas sucessivas de promessas eleitoralistas que criaram a firme convicção no cidadão de que tudo lhe é devido, que tudo são direitos e que as obrigações até são escamoteáveis por tanto advogado carente de clientes.
E como a terra não é povoada por Deuses, nem sempre as realidades correspondem ao imaginário resultante de tanta promessa política e daí a frustração que induz a sensação de fraude, que presume a inépcia do funcionário madraço, se transforma em insatisfação generalizada, no queixume permanente, na desmotivação que os fracos níveis culturais não permitem sublimar, na desconfiança relativamente aos ganhadores e na inveja contra quem não se sinta miserável, ouse sorrir e seja empreendedor.
Foi o maravilhoso e o inebriante fantástico do discurso político que criou falsas expectativas na mente daqueles que nada possuíam e que a tudo imaginaram poder aceder sem esforço e quase que por direito divino, que o Direito Natural é de modesto calibre para ter aqui cabimento: o emprego na Repartição ou Empresa Pública obtido pela via partidária, o horário bem definido e complementado com razoável dose de horas extraordinárias descaradamente calculadas à medida dos interesses da tesouraria do empregado e não obrigatoriamente das necessidades de serviço, a irredutível e estanque definição de funções, calendário prenhe de feriados e pontes, contrato colectivo atempado e definindo novos níveis salariais sempre acima da inflação do ano anterior, Delegados Sindicais vigilantes contra a hierarquia técnica e disciplinar, sistemática e progressiva comparticipação nos ganhos de produtividade, dispensas mensais tipicamente femininas aplicadas aos homens, licenças quase eternas de maternidade e paternidade, etc., etc., etc.. . . eis a utopia que infalivelmente chegou ao fim porque multiplicou desmesuradamente a Despesa Pública e dificultou tanto a actividade produtiva que já não há onde ir buscar mais impostos.
Se a tudo isto somarmos as condicionantes impostas pelo Pacto de Estabilidade e Crescimento e as deslocalizações proporcionadas pela globalização, então é bem de ver que, sendo o desemprego um ónus público e a redução do número de empresas contribuintes uma realidade, as alterações ao modelo baseado nas “conquistas irreversíveis de Abril” são não só necessárias mas também urgentes.
Agora é que Saramago vai passar a ter razão quando repetir que a situação tudo terá deixado de ter a ver com o 25 de Abril pois chegou ao fim a revolução dos cravos e vamos mesmo ter que passar a produzir mais e a consumir menos.
Para já, o Governo está a agir no sentido correcto mas a “procissão ainda vai no adro” e outros passos são imprescindíveis, os quais não resultam directamente das avisadas palavras do Comissário Almunia mas sim das necessidades intrinsecamente nacionais.
Nasceu no Quelhas a ideia de que na década de 60 do século passado Portugal tinha gente a mais na Agricultura, que havia que reforçar a população industrial e que no futuro o sector terciário deveria ultrapassar a Indústria. Só desse modo Portugal ombrearia estatisticamente com os países mais desenvolvidos. Foi num ápice que surgiram perigosas experiências de industrialização quase forçada e que passaram a constar dos compêndios as académicas ridicularizações das “campanhas do trigo” e de outras iniciativas fisiocratas de revigoramento da produção alimentar. Tudo isso se passou no âmbito de uma situação de claríssimos saldos positivos da Balança de Pagamentos, com os cofres do Banco de Portugal bem recheados, no seio de um mercantilismo de dimensão imperial. O abandono político a que a produção agro-pecuária foi votado teve um breve interregno no tempo de José Gonçalo Correia de Oliveira como Ministro da Economia nos finais do consulado salazarista e só voltou a preencher a agenda política pelos piores motivos com a fatídica Reforma Agrária do Dr. Cunhal. Se até essa Reforma a Agricultura portuguesa estava atrasada e adormecida, a partir de então passou a um coma profundo de que só ameaçou emergir à custa de subsídios, nomeadamente os da hoje moribunda PAC europeia. E quando esta ameaça chegar ao fim e os subsídios titubeiam, eis que a guerra estala entre a CAP e o Ministro com uns só a pensar em subsídios e o outro a não os poder pagar por exaustão dos fundos públicos. Entretanto, sobre o que é realmente importante ninguém fala: o método de formação de preços e a transparência dos mercados.
Qual o fundamento para que o produto agrícola A tenha o preço X e o produto pecuário B o preço Y? Apenas um único critério preside a essas definições: a vontade exclusiva dos comerciantes por oposição a qualquer negociação com os produtores. E o mais triste é que em Portugal isto sucede assim desde a Batalha de S. Mamede entre os correligionários de D. Afonso Henriques e as tropas de D. Teresa e do Conde Peres de Trava. É evidente que, estando os agricultores excluídos da definição dos preços das suas próprias produções, tenham nos subsídios a sobrevivência da sua actividade e que não saibam o que fazer à vida quando os fundos públicos se esgotam e o Ministro é posto entre a espada da CAP e a parede de Bruxelas.
Esperemos sentados para voltar a ver searas ondulantes nos campos de Portugal
Daqui sugiro às partes que passem a tratar da questão com a seriedade que ela merece e que constatem uma realidade evidente: actualmente, o risco recai apenas sobre os produtores e tudo tem que ser feito para que ele se distribua equitativamente sobre todos os intervenientes no mercado, ou seja, produtores e comerciantes.
A distribuição do risco entre produtores e comerciantes faz-se com as operações sobre futuros, a transparência dos mercados consegue-se com as bolsas de mercadorias e a experiência acumulada no mundo civilizado é tão vasta que não faria sentido vir aqui explicar como isso se faz (3). O que é de estranhar é que os mais directos interessados na questão, os agricultores e o Ministério da Agricultura, nunca tenham estudado a lição e ensaiado soluções, mesmo a contragosto dos lançadores de OPA’s e do Ministério do Comércio.
Um novo modelo de desenvolvimento não exige o sangue de vítimas pois basta promover a transparência dos mercados, nomeadamente os agrícolas e pecuários, deixar viver quem queira funcionar longe dos subsídios e convidar os funcionários públicos à desvinculação do Estado para adesão a essa nova economia produtiva.
Em resumo, o novo modelo deverá revestir uma abordagem moderna dos ideais fisiocratas, esses que diziam que a Agricultura era a base fundamental da felicidade das Nações. Se isso suceder numa perspectiva pluri-sectorial e não apenas na Agricultura e nas Pescas aproveitando a experiência adquirida nos mercados maduros e nas novas tecnologias, poderemos rapidamente instalar um novo modelo de desenvolvimento que ajude a equilibrar a balança comercial, a de transacções correntes e a de pagamentos, deixando de ser problemática a manutenção em Portugal dos nossos centros de decisão.
Então, quando finalmente nos sentirmos úteis, conquistando benesses à custa do mérito próprio em vez do uso da reclamação por direitos revolucionariamente adquiridos, riremos do antiquado triste fado da má sina colectiva e na Comunicação Social a guerra de audiências há-de passar-se para as novas virtualidades nacionais.
* * *
Sugestão final: há tanta informação estatística comprovativa das afirmações produzidas ao longo do presente texto, que aqui deixo aos estudantes de Economia, de História ou de História Económica a sugestão de desenvolverem trabalhos de investigação que academicamente comprovem a tese essencial que aqui defendo e que consiste na tradicional opacidade dos mercados em Portugal e no método “sui generis” de formação de preços a que muitos chamam de especulação, olhómetro ou, mais prosaicamente, roubalheira.
Junho de 2006
Henrique Salles da Fonseca
(1)– VII Revisão Constitucional (2005) – Preâmbulo §4º: “A Assembleia Constituinte afirma a decisão do povo português de (…) abrir caminho para uma sociedade socialista (…)”
(2)– Idem, Parte II – Organização económica
(3)– Para saber mais, consultar p. ex. “Introdução aos mercados de futuros e opções”, “Funcionamento dos mercados de futuros e opções”, “Contratos de futuros – avaliação e estratégias de intervenção”, Instituto Mercado de Capitais – Bolsa de Valores do Porto, 1995
Haverá realmente mais país para além do défice? Eis a polémica questão que há algum tempo o Presidente Sampaio lançou. E, sim, creio que tinha toda a razão para colocar tal questão uma vez que o processo de reequilíbrio das contas públicas tem sido no nosso país objecto das mais variadas imaginações contabilísticas, sempre com o objectivo de fingir que se estava a mudar aquilo que se pretendia manter.
Pretendia-se manter a omnipresença da Administração Pública em todos os recantos da vida nacional; pretendia-se manter a Função Pública como o local certo para se ter um vencimento tranquilo; pretendia-se manter o Estado como o grande zelador de todos e cada um dos cidadãos.
Assim se agravou a carga fiscal para níveis verdadeiramente asfixiantes da Economia e, por incrível que pareça, ainda vai aparecendo quem advogue que a redução do défice se deve fazer pelo reforço das receitas em vez de o ser pela redução das despesas. Mais: há quem apresente estatísticas mostrando que a carga fiscal portuguesa é menor que nos demais Estados Membro da UE com isso glosando o mote das taxas portuguesas em comparação com as estrangeiras esquecendo o real problema que existe de desvio da concorrência pela via da fiscalidade. Quando em toda a UE – e em especial na Zona Euro – a matéria tributável for calculada por um único método, então colherá discutir taxas. Entretanto, é do conhecimento empírico que a actual carga fiscal portuguesa é asfixiante da actividade económica. E as tais estatísticas só servem para deturpar a realidade que pesa sobre um tecido empresarial maioritariamente débil, sem estrutura tecnológica moderna, gerido “sobre o joelho” e não gerando um valor acrescentado que lhe permita enfrentar a concorrência externa e muito menos o permanente assédio do Fisco.
E se tanto se tem pugnado pela formação profissional da mão-de-obra e pelo retorno às vias profissionalizantes no ensino secundário, há que reconhecer que nos temos sistematicamente esquecido da formação do próprio empresariado. Não basta ser empreendedor, é fundamental saber gerir e é precisamente esta vertente que tem sido esquecida. O resultado é o choque geracional com os jovens licenciados a chegarem às empresas e a serem incumbidos de tarefas profissionalmente aviltantes porque “há que começar por baixo, a arrumar prateleiras e a varrer o chão” para se conhecer o negócio. Estas falácias incomodam muito os jovens licenciados mas na verdade só revelam a grande impreparação dos empresários que assim pensam. E é disto que somos servidos e não de outro tipo de empreendedorismo. O famoso “guarda-livros” ainda existe na terminologia empresarial portuguesa e a contabilidade é “uma coisa que só serve para eles nos virem cá buscar mais dinheiro”. E quando se começa a ensaiar uma contabilidade como auxiliar da gestão, logo o empresário tradicional começa a ficar nervoso não vão os empregados passar a saber quanto a empresa ganha ou deixa de ganhar. É também a este tipo de empresariado que a fiscalidade portuguesa se dirige e não esqueçamos que a grande maioria do tecido empresarial português é de pequenas e micro empresas e, muito provavelmente, com este tipo de liderança.
O quase extermínio da iniciativa produtiva já não deixa grandes dúvidas de que parece chegado o momento de questionar da irreversibilidade das “conquistas de Abril”. Deverá o Serviço Nacional de Saúde continuar a constituir um insaciável sorvedouro de dinheiros públicos? Não terá chegado o momento de dizer aos professores que deixarão de ser eles a definir a política de educação? Não terá chegado o momento de dizer aos profissionais da Justiça que têm feito um trabalho de eficácia miserável? Continuarão os contratos colectivos de trabalho a fazer sentido?
É claro que numa pequena economia aberta como a nossa, as condicionantes internacionais – nomeadamente a globalização para que não estávamos minimamente preparados – têm constituído um sério problema mas convenhamos que o modelo de desenvolvimento em vigor também tem muitas responsabilidades. E se sobre o ciclo económico internacional e sobre a política mundial não podemos actuar de modo decisivo, já a nível interno só a nós, portugueses, compete diagnosticar os problemas e encontrar-lhes as soluções.
E, se não, vejamos:
A pressão há decénios exercida no sentido da terciarização da nossa economia tem prejudicado muito a capacidade produtiva daí resultando grande debilidade da oferta;
Como o modelo de desenvolvimento se tem baseado no estímulo da procura, o desequilíbrio da Balança Comercial assume um carácter perene com grandes reflexos na Balança de Transacções Correntes e mesmo na de Pagamentos;
O endividamento externo do sistema bancário assim resultante pode ter reflexos na manutenção em Portugal de importantes centros de decisão.
Há, portanto, que alterar o modelo e com urgência pôr Portugal a produzir mais e eventualmente a consumir menos.
A libertação da economia produtiva tem que se basear em três pilares:
vRedução significativa da carga fiscal
É necessária uma substancial redução do número de funcionários públicos – mesmo considerando o exercício dos direitos pensionáveis – sobretudo se se criarem condições para que o tecido empresarial produtivo se sinta motivado para receber esses “dispensados” da Função Pública. Basta referir que as Despesas com Pessoal inscritas no Orçamento de Estado de 2006 representam praticamente 15% do PIB para se compreender que qualquer redução nesta rubrica implica imediatas melhorias no défice e na pressão fiscal sobre o tecido produtivo; o mesmo se diga quanto à pressão inflacionista pela transformação dos “consumidores públicos” em “trabalhadores produtivos”. Depois do congelamento das “promoções automáticas” em finais de 2005, é com agrado que se constata em 2006 a entrada em vigor da política de redução significativa dos efectivos públicos.
vRedução significativa da burocracia
Desde os anos 40 do século passado que, com a imposição dos formalismos notariais, a envolvente burocrática da vida empresarial vinha crescendo a um ritmo entorpecedor constituindo nos últimos anos um forte obstáculo à dinâmica económica em geral e à implantação empresarial em particular. É com satisfação que constato a política em curso de anulação de inúmeros requisitos burocráticos e da anulação da obrigatoriedade do fornecimento de informações à Administração Pública sobre a vida das empresas, elementos esses de que ela já dispunha nuns Departamentos e que não disponibilizava aos outros. Calcula-se que sejam cerca de 150 mil as certidões que anualmente as empresas deixam de ter que apresentar no sentido de que nada devem ao Estado e à Segurança Social. O desmantelamento do cerco burocrático é importante para a competitividade geral da nossa Economia sobretudo porque se tornava evidente que a qualidade do negócio jurídico e o relacionamento com o Fisco já não conseguiam ser garantidos com base nos obsoletos processos em vigor.
Depois de um estrondoso défice orçamental em 2005, é com políticas de efectiva redução da Despesa Pública Corrente que finalmente se pode começar a acreditar que os défices previstos no Programa de Estabilidade e Crescimento vão ser cumpridos; muito desejo que as realidades se comecem a verificar já no corrente ano.
Mas tem que haver um terceiro pilar para que tudo volte a fazer sentido e esse é o da
vCriação de mecanismos que permitam a transparência dos mercados e a clarificação do sistema de formação de preços
No que respeita à economia produtiva portuguesa, a criação de mecanismos que permitam a transparência dos mercados é um processo fundamental uma vez que a distribuição do risco não se faz com equidade por todos os operadores envolvidos. A gravidade da questão assume dimensões de fatalidade quando se trata de produtos perecíveis. A agricultura e as pescas portuguesas há muito que deixaram de ter voz activa na formação dos preços de transacção das suas próprias produções e por isso mesmo em quase nada contribuem para a dinâmica económica nacional. Contudo, se pudéssemos contar com um pujante sector primário, o saldo da Balança Comercial registaria “ipso factu” uma grande melhoria com inerentes benefícios para a indústria e para os serviços, a Balança de Pagamentos apresentaria melhores saldos e o risco de manutenção em Portugal de importantes centros de decisão não se faria sentir com a gravidade actual. Mas essa pujança só será possível quando houver uma clarificação no método global de formação dos preços, quando os mercados forem transparentes e sobretudo quando neles se puder transaccionar sobre futuros, única forma de distribuir o risco pelos vários intervenientes no mercado.
Tendo os problemas portugueses tudo a ver com a exaustão do modelo de desenvolvimento implementado depois de 1974, a adaptação a um novo modelo está a acirrar a resistência daquelas correntes políticas que implementaram o modelo exaurido. Mais: dado que as alterações necessárias no modelo implicam mudanças muito significativas no que se refere às condições laborais de muitos dos que se encontram a funcionar no âmbito do velho modelo, fácil é de admitir que a inércia seja enorme e a contestação produto de grande consumo.
A gratuidade de inúmeros serviços a que o Estado se viu constitucional ou administrativamente obrigado criou um clima de permanente exigência sem qualquer expressiva contrapartida por parte dos beneficiários; a terciarização quase compulsiva da actividade económica nacional provocou uma quebra radical da actividade produtiva; o fomento do consumo pela prática de uma política salarial eleitoralmente calendarizada, levou à degradação da Balança de Transacções Correntes a ponto de colocar problemas de endividamento externo e da manutenção no país de alguns centros de decisão.
Fechou-se o ciclo por falência do modelo; procura-se outro modelo que inaugure o novo ciclo.
Resta saber se haverá vontade política para voltar a dar força à actividade produtiva em Portugal.
Lisboa, Março de 2006
Henrique Salles da Fonseca
Publicado na "Economia Pura", edição de Junho/Julho de 2006
Luzida fragata a que naquela segunda feira, 27 de Março de 1684, subiu a barra do rio Praya, acesso principal ao Reino do Sião.
“Nossa Senhora do Rosário” se chamava a fragata e nela se fazia transportar o seu proprietário, Pero Vaz de Siqueira, grande armador de Macau e Senhor nos mares da China, a quem o Vice-rei da Índia, D. Francisco de Távora, enviava como Embaixador de D. Pedro II, rei de Portugal, ao rei Phra Narai do Sião.
“Depois que o Senhor Embaixador recebeo as ordens para fazer trez Embaixadas aos Reynos de Sião, Cauchinchina e Camboja, não poz a consideração nas grandes despezas que se lhe offerecião de sua fazenda para o serviço de Sua Alteza porque para este dezejou sempre ter muito pello grande zelo que nelle morou sempre de leal vassalo, mas considerou que para conseguir as ditas Embaixadas lhe era necessário grande lustro e apparato assim de gente como de ornatos porque os Reys destas partes não estimão os Embaixadores que a seus Reynos vão, tanto pela calidade das pessoas quanto pello apparato com que entrão em seus Reynos( … )”
Depois de 60 anos de governação filipina e das batalhas de Montijo (1644), Linhas de Elvas (1659), Ameixial (1663), Castelo Rodrigo (1664) e Montes Claros (1665) pela restauração da soberania nacional, estava o reino em tão grandes dificuldades financeiras que o Vedor da Fazenda, D. Luís de Meneses, 3º Conde da Ericeira,acabaria por se suicidar.
É assim bem de ver por que tanto fausto na Embaixada ao rei do Sião teria que correr pelo financiamento privado do próprio Embaixador.
E como podia então um Embaixador financiar tão luzidas missões de Estado?
Pero Vaz de Siqueira era natural de Macau, fidalgo-cavaleiro, participou de 1644 a 1647 na Embaixada que seu pai chefiou ao Japão com o objectivo de tentar reabrir o comércio japonês que acabara em 1639 com a expulsão dos portugueses, em benefício do exclusivo holandês. Depois de participar na reconquista de várias praças na Índia, regressou a Macau no início da década de 1670 onde casou rico e se tornou armador e comerciante entre Macau, Bornéu, Timor, Java e Sião explorando, sem lhe dar esse nome, as vantagens comparativas dos diferentes produtos no comércio internacional. Pena foi que seu pai não tivesse conseguido demover o Xógum Tokugawa Iemitsu a reabrir aos portugueses o tráfego da prata japonesa para a China e das sedas chinesas para o Japão. Paciência; se não se conseguia chegar directamente ao Japão, havia que tentar um intermediário e esse poderia muito bem ser o Sião, reino amigo tanto do Japão como de Portugal. E se a Coroa não tinha cabedais que lhe permitissem o desempenho condigno das missões de Estado, nada mais conveniente do que mobilizar a vontade particular de quem comerciava sob alvará régio amealhando lautos bens de fortuna podendo vir a ter interesse directo no pródigo mas bom termo diplomático de tão prodigioso trato.
Mas se em Portugal a restauração se fez contra os espanhóis, lá por fora, no que restava do Império, houve que enfrentar espanhóis, holandeses e franceses que tudo nos queriam abocanhar. E se no Japão, Malaca, Sri Lanka e Macaçar tivemos que defrontar os interesses holandeses, no Sião tínhamos os Bispos franceses que, ao abrigo das determinações de Urbano VIII, ali derrotaram o Padroado Português, cativaram aquele grego a que nós chamávamos Constantino Falcão que desempenhava o cargo de Governador em nome do rei Phra Narai e assim impediram a entrada do Sião como intermediário de Portugal no negócio com o Japão. E porquê? Porque naquela época tudo o que no Oriente fosse bom para Portugal era mau para as outras nações europeias. Eis como a Guerra da nossa Restauração foi bem mais ampla do que aquilo que os compêndios de História referem.
E não contentes com o imbróglio político, houve também a questão religiosa pois era a partir de Macau que o Padroado Português exercia a sua acção na China, Japão, Sudoeste Asiático, Tonquim, Cochinchina, Hainan e Camboja mas sempre em confronto com o Padroado da Coroa Espanhola situado nas Filipinas e que daquela região queria afincadamente expulsar qualquer influência portuguesa. Assim foi que Jesuítas e Franciscanos – os prosélitos do Deus infinitamente bom e do perdão – optaram por Macau e, portanto, por Portugal enquanto Agostinhos e Dominicanos – os do Deus castigador – se resguardaram nas Filipinas ao abrigo de Espanha. E como aquilo que na Europa é verdade, na Ásia pode não ser, eis como no Sião os franceses se encarregaram de facilitar a vida aos espanhóis, seus arqui-inimigos no Velho Continente, dificultando a diplomacia portuguesa. Mais: em 1686 os siameses não ajudaram Portugal, no ano seguinte os franceses mandaram um contingente militar e assumiram o quase monopólio das relações do Sião com o exterior mas em 1688 o rei Narai adoeceu, Constantino Falcão foi passado pelas armas e os franceses expulsos. Portugal viu confirmados os seus créditos no Sião, não conseguiu voltar a comerciar com o Japão e optou durante mais alguns séculos pelas lutas contra piratas, tufões e tsunamis nos imensos mares do sul.
E por aí navegou a seu bel-prazer em lauto comércio entre as praças que tanto prezava para benefício próprio e de locais, sempre com o dedo no gatilho e de olho posto na cobiça de quem construía menos conventos do que Universidades.
Quando o último português regressava à pátria lambendo as feridas do Império perdido no Largo do Carmo, sobrevoou a antiga fortaleza de Nossa Senhora dos Milagres no Cabo de Jafanapatão e à sua frente viu o Sol pôr-se em terra por trás de Madurai e Pondicherry.
Lisboa, Março de 2006
Henrique Salles da Fonseca
BIBLIOGRAFIA:
“A EMBAIXADA AO SIÃO DE PERO VAZ DE SIQUEIRA (1684-1686) ”
Autora: Leonor de Seabra, Leitora de Português na Universidade de Macau
Editores: Instituto Português do Oriente e Fundação Oriente
Pela rota de Índia se foi fazendo Portugal e disso é prova que foi com os dinheiros realizados na Europa com mercadorias exóticas, tais como o açúcar madeirense, que se financiou o início da construção em Lisboa do Hospital de Todos os Santos. Corria o ano de 1498.
Mas foi bem antes disso, em 1430, que os monges da Ordem da Trindade se instalaram definitivamente em Tavira ali construindo o Hospital do Espírito Santo para apoio aos navegantes e combatentes no norte de África. De tal modo a sua acção se destinava a apoiar os agentes da conquista que há quem considere este o primeiro hospital do ultramar português.
Dará para imaginar no que nessas épocas remotas consistiam os hospitais e que medicina neles se praticava?
Fossem quais fossem, eram os tratamentos que à época se conheciam mas a higiene devia ser bem duvidosa. Normalmente, aproveitavam-se umas casas que estivessem livres e de que o Alcaide ou Governador militar pudessem dispor nelas autorizando a entrada de doentes que se recolhiam a montes de trapos a que chamavam enxerga. Era sobre esses trapos que se derramavam os humores sempre fétidos só que alguns purulentos e outros apenas orgânicos. Dá para imaginar . . .
Quem desses doentes tratava eram religiosos que tudo faziam por amor a Deus pois outro sentimento não poderá ser invocado no meio de tanta pústula, escara, febre e gemido. Era pois necessário que os religiosos seguissem os mareantes. Sobretudo a partir do momento em que pelo ano de 1434 Gil Eanes dobrou o Cabo Bojador e em que a evacuação de doentes para Portugal deixava de ser possível sem acrescidos riscos na sobrevivência do infeliz. A expansão da Fé passou a ser anunciada como um objectivo das descobertas portuguesas mas não restam muitas dúvidas de que só assim é que se conseguiria convencer a Igreja a acompanhar esses meio azougados aventureiros que estavam certamente muito mais interessados no ouro da Mina e nos curativos hospitalares do que na piedade inspirada no crucifixo.
Apesar da relativa proximidade, em 1486 foi instalado em Safim um local de acolhimento dos doentes enquanto não eram evacuados para Tavira. Acabou este local por desempenhar as funções de verdadeiro hospital pois chegou a ter físico, cirurgião e boticário. A terra era pobre naquelas paragens mas o mar, esse, era pródigo em pescarias e era nessa faina que os portugueses lá andavam por longos períodos. O pretexto para se instalar este hospital foi o do apoio aos nossos pescadores mas acabou por servir toda a população indígena que muito beneficiou com a situação. Datam de muito mais tarde, 1516, os hospitais de Tânger e Arzila e é incerta no tempo a fundação do Hospital de Santa Cruz do Cabo de Gué, hoje Agadir, que foi praça portuguesa entre 1505 e 1541.
Mas se a rota do Algarve d’além-mar (Marrocos) para Portugal se fazia em linha recta e o porto de chegada era algures no Algarve d’aquém-mar, quando a origem da viagem era a sul do Cabo Bojador, a rota era circular zarpando as caravelas para o mar alto rumo à Madeira e Açores, daí tomando o nascente até Lisboa. Eis a razão pela qual foi necessário edificar em Lisboa o Hospital de Todos os Santos e não mais no sul do reino. Só que o hospital de Lisboa nunca foi considerado afecto ao ultramar pois atendia sobretudo às populações residentes na cidade e cercanias.
O mais antigo hospital situado além do Bojador foi mandado erigir em 1497 pelo Rei D. Manuel na Ilha de Santiago, em Cabo Verde, a que se seguiu o de S. Jorge da Mina (actual Gana) em 1498. Foi ainda o Rei D. Manuel que em 1504 mandou instalar o hospital em S. Tomé para apoio aos mareantes que demandavam o Manikongo mas que acabou por se destinar sobretudo às populações residentes em clima tão inóspito como aquele que hoje sabemos ser sobretudo palustre.
. . . e assim foi que Bartolomeu Dias dobrou o Cabo das Tormentas.
Chegados ao Índico, havia que prover aos cuidados nessa banda já tão longínqua e nada menos do que dois hospitais foram instalados em 1505 em Sofala e Quilôa e o da Ilha de Moçambique em 1507. Foi este último que passou a assumir a liderança no sistema de saúde português na costa oriental de África dadas as condições de salubridade do local e a afabilidade dos povos indígenas.
Mas a navegação no Atlântico sul deixou em 1500 de se fazer ao longo da costa africana passando a fazer-se pelo recém-descoberto Brasil com aproveitamento total dos alísios e evitando as calmarias namibianas. Eis como se tornou necessário e possível instalar um hospital na resguardada Bahia de Todos os Santos. Contando com o de Tavira, foi este o 9º na sucessão.
Data de 1511 a instalação do hospital em Melinde, não longe de Zanzibar, onde os portugueses largavam habitualmente a navegação costeira para se fazerem à travessia do Índico rumo a Chaul, já na costa do Malabar.
A amizade estabelecida por Vasco da Gama com o Rei de Cochim facilitou a instalação naquele porto em 1505 do mais antigo hospital português naquela costa, a que se seguiu em 1506 o de Cananor. São incertas as datas em que se edificaram os hospitais em Goa e Baçaim mas em 1512 Afonso de Albuquerque vê-se obrigado a expulsar os falsos doentes que se recolhiam em mendicidade no hospital de Goa e por carta datada de 31 de Outubro de 1548 da Misericórdia de Baçaim se ficou a saber que “(…) porque serteficamos a Vossa Alteza, que o ano em que sercarão Dio (1546), forão tantas as necessidades desta terra de feridos e doentes e pobres, que a elle della vyeram que nem ho espritall, nem a misericordia, nem o capitão nem outras nenhumas pessoas erão poderosas pera os agasalhar, nem curar, nem respairar, como hera necessaryo, se não forão os moradores desta terra que, ainda que são pobres, vendo quanto compria ao serviço de Deus e de Vossa Alteza, faziãm de suas casas espritais, e gastavão o seu, e davam muita conssolação dos ferydos e doentes que de Dio vynhão, que herão muytos”.
Assim contamos 17 hospitais entre Tavira e Baçaim. Ficam por contar os que se instalaram para lá da Índia. Mas disso tratarei alhures quando o Sol cair em terra e se puser por trás de Madurai e Pondicherry.
Lisboa, 28 de Março de 2006
Henrique Salles da Fonseca
BIBLIOGRAFIA:
“ARMADAS PORTUGUESAS – apoio sanitário na época dos Descobrimentos”
Autor: Médico Capitão-de-mar-e-guerra José de Vasconcellos e Menezes