DIZ-ME COM QUEM OPAS . . . OU A NATUREZA DO ESCORPIÃO
Amigos meus, talvez perplexos com os comentários absolutamente délficos dos nossos analistas, perguntam-me o que penso eu da OPA que o BCP diz ir lançar sobre o BPI. Esquematicamente, penso isto (baseado nas demonstrações financeiras de 2004):
v Para o que aqui interessa, o BCP é um banco: (i) fortemente endividado junto de bancos estrangeiros; (ii) cuja taxa de incumprimento no crédito bancário, ano após ano, fica bem acima do que se considera razoável para a banca de retalho; (iii) que não consegue (mas será que quer?) repercutir no pricing das suas operações de crédito bancário os riscos a que se expõe; (iv) cujas provisões para o risco de crédito se encontram muito aquém da perda esperada na carteira de crédito bancário; (v) com uma estrutura (medida pelo rácio cost-to-income) bastante pesada pelos padrões internacionais - e que tende a crescer mais rapidamente do que a margem operacional; (vi) que depende quase sempre dos proveitos não-recorrentes (isto é, extraordinários) para compor os resultados de exercício; (vii) com um balanço pouco líquido e pequeno demais para licitar regularmente nos leilões de liquidez primária do BCE; (viii) que não conseguiu ainda reintegrar o goodwill das anteriores aquisições - pelo que as diferenças de consolidação continuam a absorver uma fatia apreciável dos seus capitais próprios; (ix) e que, se não corrigir o rumo, terá de proceder a mais um aumento de capital antes de 2008, mesmo que esta OPA não vá por diante.
v Por sua vez, o BPI: (i) está também muito endividado junto de bancos estrangeiros, mas o seu endividamento concentra-se num número muito reduzido de contrapartes; (ii) privilegia os empréstimos hipotecários residenciais, o que imprime grande rigidez ao balanço (prazo médio muito dilatado, baixa rotação); (iii) regista taxas de incumprimento no crédito bancário mais em linha com o que se passa internacionalmente na banca de retalho, mas, atendendo aos picos de incumprimento típicos nas hipotecas residenciais, é de prever que o risco de crédito a que está, de facto, exposto se agrave significativamente nos próximos anos; (iv) porque joga forte num segmento de mercado muito competitivo (o dos créditos bancários residenciais), tem de praticar spreads que, provavelmente, não darão para cobrir os riscos que aí encontra (tudo vai, porém, do modo como evoluírem os preços do imobiliário, cá dentro); (v) regista provisões para riscos de crédito insuficientes, tendo em conta a perda esperada na carteira de crédito bancário; (vi) possui também uma estrutura empolada, mas relativamente estabilizada; (vii) apresenta, por norma, resultados correntes positivos, o que indicia solidez na construção dos resultados de exercício; (viii) sendo o mais pequeno entre os cinco maiores bancos portugueses, também não consegue aceder directamente ao mercado de repos do BCE; (viii) especialmente sensível ao ciclo económico e às conjunturas do desemprego, por força do peso que os créditos de muito longo prazo a particulares têm no seu balanço, não deverá passar sem uma nova chamada de capital se a economia portuguesa tardar em recuperar.
v Estes bancos encontram-se mal preparados para o quadro prudencial que o Novo Acordo de Basileia (Basileia 2) veio instituir: (i) novas regras contabilísticas vão obrigá-los a recalcular os capitais próprios, entre 2005 e 2007; (ii) as posições interbancárias credoras contam já para o cálculo do capital regulamentar (o que não acontecia antes de 2005); (iii) caberá, simultaneamente, ao mercado e às autoridades de supervisão ajuizar sobre o risco a que eles, como qualquer outro banco, se encontrem expostos e, bem assim, sobre a suficiência do capital que estiver afecto a esse risco; (iv) ambos terão dificuldades em demonstrar, já às autoridades de supervisão, já aos seus contrapartes no mercado, o perfil do risco nos respectivos balanços - balanços que são constituídos, quase na íntegra, por posições desprovidas de notação (rating).
v Se a OPA for uma realidade, tudo se somará num primeiro momento, excepto: (i) os capitais próprios, que continuarão a ser aqueles que o BCP possuir, mas agora corrigidos do goodwill que a operação implicar; (ii) as posições cruzadas (isto é, os créditos recíprocos) nos mercados interbancários, que se extinguirão por compensação; (iii) as aplicações que o BCP tiver em valores representativos de dívida ou de capital emitidos pelo BPI, que igualmente se extinguirão.
v Somar-se-ão: (i) o endividamento monetário (isto é, os passivos negociados nos mercados interbancários) doméstico e no exterior; (ii) a carteira de crédito bancário e todas as demais carteiras que compõem os balanços envolvidos; (iii) as restantes parcelas do activo e do passivo de um e de outro banco; (iv) os respectivos quadros de pessoal (embora, num segundo momento, possa haver lugar a despedimentos).
v Dois problemas se avolumam, desde logo: (i) a preservação das “linhas de financiamento” abertas pelos bancos não residentes, que, na nova realidade, passarão a estar respaldadas apenas pelos capitais próprios do BCP (e, mesmo esses, diminuídos pelo goodwill da operação); (ii) as novas situações de concentração de risco que resultarão da simples agregação aritmética das respectivas carteiras (isto porque se somam por inteiro as posições de crédito que cada um dos bancos detiver sobre determinada entidade, mas o capital que serve de medida para caracterizar os grandes riscos, esse, será só o do banco adquirente, o BCP).
v Não vejo como possam os capitais próprios do BCP, no quadro do Basileia 2, sustentar o endividamento monetário que assegura, hoje, o financiamento de parte substancial dos dois balanços. Nem vejo que o mercado interbancário doméstico tenha liquidez suficiente para substituir, alguma vez, as “linhas de financiamento” externas que, entretanto, venham a ser reduzidas ou, mesmo, canceladas. E, sempre, em pano de fundo a nova regra prudencial que manda incluir as posições credoras sobre outros bancos, sem excepção (não mais a excepção da OCDE), no cálculo do capital adequado.
v 1ª conclusão: o BCP terá de alienar activos, e rapidamente, mesmo antes de tentar recompor os seus capitais próprios; aliás, uma redução do balanço, nomeadamente na carteira de crédito bancário, seria sempre imposta pela concentração de risco que acima assinalei.
v O passo óbvio é a titularização de activos. E os activos com maior procura neste tipo de operações são, justamente, os créditos hipotecários residenciais e outras formas de crédito pessoal que fazem o grosso do balanço do BPI.
v 2ª conclusão: o BCP, se for sensato, venderá num ápice boa parte do Activo do BPI (e uns quantos créditos semelhantes mais que ele próprio, então, detenha) para liquidar, sem mais delongas, os financiamentos que tiver contraído para a OPA e, assim, dar um novo fôlego aos seus capitais próprios.
v A grande questão, neste ponto, é saber se as operações de titularização gerarão mais ou menos valias (dados o spread médio que o BPI tem vindo a praticar e as dúvidas quanto à perda esperada) que alterem, de forma relevante, os capitais próprios do BCP post-OPA.
v 3ª conclusão: depois da titularização de créditos e da venda de outros activos, pouco restará do potencial de intermediação bancária que o BPI hoje possui; se, entretanto, não aparecerem novos players na banca comercial (e é pouco provável que apareçam, dada a exiguidade da nossa economia), a concorrência no mercado bancário resultará atenuada.
v Dito de outra maneira, o BCP terá exterminado um concorrente, mas do facto serão os bancos concorrentes quem poderá tirar melhor partido.
v Como o BCP já deverá ter constatado, na sequência das suas anteriores aquisições, existe uma fronteira para a gestão do risco de crédito. Quando um banco é suficientemente pequeno, com uma estrutura eficiente (o que não tem sido o caso do BCP), pode prosseguir confortavelmente uma estratégia de seleccionar clientes (cherry picking ou “pescar à linha”) tomando como critério a minimização absoluta das perdas por incumprimento. Ultrapassada, porém, a tal fronteira, a dimensão da carteira torna-se tal que não poderá deixar de incluir, fatalmente, riscos agravados - e a preocupação dominante será, então, não descolar do risco médio do mercado, visto que lá estarão sempre os concorrentes a procurarem “roubar” as entidades de melhor risco.
v 4ª conclusão: Em termos de posição competitiva no mercado português, esta OPA não é a iniciativa que melhor servirá, no imediato, o interesse dos accionistas do BCP; são eles que, em última análise, arcarão com a totalidade dos custos, mas parte dos benefícios serão colhidos, inevitavelmente, pelos bancos concorrentes.
v Mas contribuirá a OPA para a maior solidez do sistema bancário português?
v Creio que não. Os grandes bancos de raiz portuguesa têm crescido em extensão, mas não em sofisticação; internamente, mas não em capacidade competitiva nos mercados internacionais; à custa do endividamento monetário externo, e não de excedentes na BTC. Neste quadro, não haverá certamente vantagem em privilegiar bancos de pequena dimensão com o único propósito de tirar partido da fórmula que apura a adequação do capital. Mas concentrar num número cada vez mais reduzido de bancos (que continuarão grandes apenas à pequena escala doméstica) significa reduzir a capacidade de endividamento monetário externo do sistema bancário como um todo. E isto é, seguramente, a última coisa que a economia portuguesa poderia desejar.
v 5ª conclusão: No plano mais amplo da política financeira, esta OPA é um contra-senso.
v Não obstante, a OPA poderia fazer ainda algum sentido se daí resultasse um banco com dimensão suficiente para operar directamente no mercado de repos do BCE. O acesso ao mercado primário da liquidez em €€ daria um contributo importante para a estabilidade do sistema bancário português. Infelizmente, o BCP não deverá encontrar no balanço do BPI valores elegíveis para as tais operações repo em quantidade suficiente que, adicionados aos que já possui, lhe permitam tornar-se uma presença regular nesse mercado.
v 6ª conclusão: também quanto à Base Monetária da banca portuguesa, esta OPA parece não levar longe.
v Então, porquê a OPA? A pergunta é tanto mais pertinente quanto, dias antes de anunciar o lançamento da OPA, o BCP comunicou ao mercado que iria proceder a um aumento de capital destinado a resgatar as stock options que há tempos tinha subscrito a benefício do seu pessoal. Ora, na ausência de outras quaisquer notícias, esta emissão, só por ela, teria o efeito de pressionar no sentido da baixa a cotação das acções do banco (efeito de diluição), tornando-o mais vulnerável a uma qualquer OPA.
v 7ª conclusão: a OPA é inoportuna e foi preparada de maneira pouco consistente (salvo se o BCP der o dito por não dito no assunto das stock options).
v 8º conclusão: se a OPA for concretizada, o BCP passará a ser um alvo fácil (BBVA? FortisBank? A própria La Caixa? Infelizmente, o lote de candidatos é pequeno) – e relativamente barato.
v Mas porquê a OPA? A única explicação que me vem à ideia é a fábula do sapo, do rio e do escorpião que queria atravessar o rio às cavalitas do sapo. Estava-lhe na massa do sangue, nunca poderia ter feito outra coisa, porque outra coisa não sabia fazer.