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A bem da Nação

História de médico

 

 
 
Até alguns anos atrás, ser médico do interior era mais que ser um profissional na arte de curar, era ser também um confessor, um aconselhador de gente. Muitas vezes o paciente contava segredos que obrigava a atitudes nem sempre convencionais.
Relato um caso médico que exemplifica com clareza essa afirmação. 
 
Com a morte prematura do marido num acidente, Maria viu-se sozinha e com três filhos pequenos para criar. Por sorte sabia costurar. Passou a trabalhar dia e noite. Ganhava o suficiente para sustentar a família, porém não sobrava muito tempo para se cuidar. Engordava. Alguns fios brancos permeavam a cabeleira negra. Pequenas veias azuis mapeavam as pernas bem torneadas.
 
O tempo passava e a jovem viúva sentia a falta de um companheiro. Quando ia levar ou buscar os filhos à escola, ao passar pela oficina do vizinho, percebia cumprimentos velados, enfatizados por longos olhares e palavras de agrado aos pequenos. Passou a reparar no rapaz, que devia ter mais ou menos a mesma idade. Envaidecida,  passou a se” produzir”. Cortou os cabelos,  pintou os lábios, fez regime, passou a usar roupas da moda, mais” transadas". Dali por diante tudo aconteceu muito rápido.  Conversas, namoro e casamento. 
 
Maria vivia no paraíso. Tinha um lar e uma nova e feliz família. Mas, depois de um ano,  toda essa felicidade ficou ameaçada. João queria ter também seus próprios filhos e ela não engravidava. Fez de tudo, levou-a até à benzedeira e finalmente ao médico.
 
Durante a consulta o casal demonstrava ansiedade.  A anamnese nada esclarecia. Porém, ao examinar a paciente o doutor percebeu dentro dos pêlos púbicos uma fina e tênue linha cicatricial. Seu instinto disse-lhe para ficar calado ao perceber o olhar aflito da jovem mulher. Pediu os exames  e aguardou os resultados. Mas foi com surpresa que viu Maria voltar no dia seguinte, sozinha. Queria esclarecer a cirurgia.  Na ultima gestação ela e o primeiro marido haviam decidido pela esterilização tubária. Receando não ser aceita pelo novo companheiro, omitiu o facto. Pensou que com o tempo João se conformasse com a falta de filhos, afinal tantos casais não têm crianças....Infelizmente ela se enganara e agora não sabia o que fazer. Queria ajuda do profissional para resolver o seu problema.
 
O médico disse-lhe que  teria que falar a verdade, caso João o procurasse para maiores esclarecimentos. Chorosa, pediu que não dissesse nada. Tinha medo que seu casamento acabasse. Em dilema, e sentindo o peso da responsabilidade,  o médico pediu que voltasse com o marido quando os exames ficassem prontos. À noite não dormiu, matutava uma maneira de dizer a verdade sem prejudicar aquele relacionamento.
 
No dia em que o casal voltou com os resultados dos exames, diagnosticou:
- O mal estava nas trompas que estavam obstruídas.
- Mas como isso pode acontecer? Perguntou João.
- Na realidade pode haver várias causas, infecções, aderências, bridas, obstruções...Mas  há uma chance cirúrgica de tratamento, embora os êxitos sejam ainda pequenos... Podemos tentar resolver o  problema com a desobstrução das trompas....
 
Foi assim que o doutor  ganhou mais um afilhado e salvou um casamento!
 
 Maria  Eduarda Fagundes
Uberaba,13 de fevereiro 2009.
 

Uma autocrítica

 

                   
Caricatura de Charles de Villiers (o médico descortês)
 
 
Em rodas sociais, aonde se encontra algum médico, sempre há quem “puxe conversa” indagando sobre questões de saúde geral ou pessoal, mesmo até já sabendo a resposta, só para testar o individuo ou para apaziguar algum tipo de ansiedade. Provavelmente esse tipo de comportamento,  pouco ético e educado,  seja um reflexo da evidente falta de qualidade da assistência dos serviços de saúde pública, do estilo de vida corrido e da pouca cultura do povo brasileiro.
  
A formação dos nossos futuros profissionais me assusta. Para se tirar a qualquer preço o país do subdesenvolvimento, com o aval do governo, cada vez mais abundam escolas médicas sem as adequadas condições de funcionamento. Para compensar as deficiências, ensinam os alunos a diagnosticar prodigalizando pedidos de exames complementares, caros e sofisticados, às vezes desnecessários, onerando o limitado orçamento, em detrimento da boa e velha semiologia. Tratam as doenças, menosprezam o doente. A tão importante relação médico-paciente, baseada na confiança e respeito, quando o profissional saber ouvir o doente e interpretar suas queixas, palavras, movimentos, está cada vez mais subestimada. 
 
Os avanços tecnológicos e os novos conhecimentos reforçam a propedêutica e terapêutica médica, mas é a abordagem e o papel humanístico do profissional  que determinam o sucesso ou não do tratamento.
 
 
 
 
Quando o conceito de doença psicossomática foi levantado pelo médico americano Alexander, da escola de Chicago, que dizia que determinadas doenças eram causadas pelos distúrbios psíquicos, a sociedade médica em geral se rebelou. E como tudo na medicina é uma meia verdade, mais tarde esse conceito foi contestado por novos estudos que davam um outro enfoque mais subtil à questão. Concluíram que o que existe é um doente com alterações psicossomáticas, respostas individuais psíquicas e orgânicas, aos estresses físicos ou mentais,  às doenças. Essa constatação cientifica ensina que se deve priorizar o doente no tratamento da doença, coisa que a sensibilidade humana leiga já entendeu e faz há muito tempo.
 
Combater a tendência moderna, mais ágil, fria e técnica, a preparar os novos profissionais nesse sentido é um desafio para o qual poucos professores estão preparados. A interacção médico-paciente resulta da resposta ao perfil de cada um deles e da empatia que os envolve. A visão e a função psicossocial que o profissional exerce sobre o paciente determinam 50% do sucesso nesse relacionamento. O médico não pode perder o foco. Como profissional, ele é o primeiro remédio para o seu paciente. A linguagem e a postura psicossomática dele devem deixar o doente mais tranquilo e confiante. Por outro lado, o médico deve ter a sensibilidade para ver o paciente como um indivíduo, naquele momento mais fragilizado e por isso mais vulnerável, com maneira própria de enfrentar a doença. A função do profissional é dar-lhe  condições para retornar ao equilíbrio bio-psicossocial, factor responsável pela saúde integral do paciente.
 
 Maria Eduarda Fagundes
Uberaba, 24/12/08

As doenças, os doentes e o médico...

 

... nas épocas das civilizações antigas.
 
 
 
 
Os povos mesopotâmios e egípcios fundaram as cidades-estado, introduziram a irrigação, inventaram a escrita, dividiram o circulo em 360 graus, fizeram o primeiro calendário solar, redigiram os primeiros códigos legais. Com eles nasceu a medicina.
 
Era uma medicina arcaica calcada na observação da natureza, cheia de rituais e magia, exercida com arte, por sacerdotes, simbolizada por uma cobra enrolada numa vara, representação da renovação da vida sobre a árvore da sabedoria.
 
Essas áreas mediterrâneas, muito quentes durante o dia e frias à noite, situadas na rota das caravanas, sofrendo inundações periódicas, eram regiões expostas com freqüência a doenças e pragas trazidas pelo homem e animais. Problemas infecciosos, gastrintestinais, respiratórios, oculares, eram comuns. Cuspir ou urinar em canais de irrigação, comer em prato de doentes, molhar os pés em água suja, eram pecados. Para os mesopotamios, adoecer era sinal que haviam transgredido esses conceitos.
 
O médico, em geral um sacerdote, era um homem erudito que conhecia literatura e astrologia, as receitas antigas, os rituais mágicos, as águas, e que fazia adivinhações. Os tratamentos eram feitos com fórmulas, drogas e operações de menor porte. Os honorários e penalidades eram estipulados por lei.
 
O centro da vida era o fígado para os mesopotâmios, para os egípcios, os sistemas respiratório e circulatório. O coração era onde habitava a inteligência. Tratavam as doenças respiratórias peitorais com fumigação, espalhando pó de alcatrão numa fogueira feita com espinheiros e deixando a fumaça penetrar no nariz, boca e ânus. Todo o corpo era coberto com coalhada e envolto em linhaça, pulverizada por três dias. A fumigação podia ser feita de esterco de porco, cão, chacal, raposa ou gazela. Ou ainda de chifre de veado, enxofre, betume e ossos humanos. Para a tosse faziam joio rasteiro com rosas trituradas regadas com sal e azeite A cebola, alho, feijão, cereais, especiarias, condimentos, folhas de louro e tamareira, cipreste e pinheiro, e outras plantas, eram usadas nos alimentos e como medicamentos. Os egípcios tinham hábito de dar aos seus escravos alho para fortalecê-los.  
Os remédios eram ministrados em supositórios ou via uretral, por um tubo. As poções orais eram preparadas à noite e tomadas antes do nascer do sol, com o estomago vazio. Procedimentos como flebotomias (cortes nas veias, sangrias), aplicação de ventosas, operações oculares, eram também executados. Se acaso algum paciente ficasse cego, devido algum erro cirúrgico, o médico era castigado com o decepamento das mãos. Em caso de morte de nobre, o médico que o tratou também perdia a vida. Leis draconianas que resultaram nos primórdios da legislação sobre a imperícia médica.
 
O médico do antigo Egito, como o da Mesopotâmia, era muito conceituado e admirado. Possuía o que se dizia um julgamento empírico, destreza manual, formação e treinamento sob a orientação de médicos mais velhos e experimentados. Aprendia nos textos dos papiros, livros da sabedoria, os conhecimentos adquiridos e registrados ao longo dos tempos. Se no inicio da civilização o médico fazia parte da classe sacerdotal, com a evolução dos anos passou a ter uma posição independente, autônoma. Apareceram os primeiros especialistas, aqueles que tratavam dos olhos, do ventre, dos dentes, e o guardião do ânus, o futuro proctologista.  Havia também aqueles sem títulos, os denominados chefes dos médicos, inspetores, ou superintendentes. Muito provavelmente os protótipos dos atuais Conselhos de Medicina. Com freqüência eram remunerados por presentes. Os médicos da nobreza eram sustentados por ela, e os empregados nos templos eram pagos pelo orçamento do templo, ao qual estavam ligadas também as escolas médicas que davam formação e treinamento, à semelhança da medicina contemporânea.
 
 Inhotep, um dos mais notáveis médicos da antiguidade, foi responsável pela saúde do rei ZOZER, 3500 a .C. Era arquiteto, sacerdote, escriba, astrônomo e grão-vizir. Construiu a pirâmide de SAKKARA, a mais antiga estrutura de pedra dessa categoria, onde se via a base da arte egípcia, rica em trabalhos de baixo-relevo e colunas.
 
Para os egípcios antigos o corpo humano era constituído de canais que faziam o transporte do ar, do sangue, do alimento e do esperma. As doenças eram interpretadas como uma obstrução ou inundação deles. A anticoncepção era conhecida e feita colocando-se tampões vaginais com plantas, tecido de linho e até excrementos de animais (crocodilo). Enquanto os romanos usavam uma espécie de preservativo feito à base de tecido fino, víscera de animais (bexiga), para se protegerem das doenças sexualmente transmissíveis e para evitar filhos. Cada órgão tinha um deus particular para regê-lo, que podia desfazer feitiços, provocadores de doenças, com preces, embrião da nossa futura psicologia. Os egípcios entendiam que havia uma interdependência entre o sistema vascular e a região anal. Por isso eram freqüentes as prescrições de lavagens e enemas para refrescar o ânus e o coração.  Nota interessante, pois a medicina moderna usa a terapêutica retal para baixar a febre.
 
 A medicina popular era basicamente mágico-ritualista, mais barata e acessível aos pobres. A medicina empírica, reservada aos ricos e nobres, dava diagnósticos levando em consideração também a observação e o exame de apalpação do doente. Usava medicações à base de mel, cerveja, frutas, especiarias, ópio, sal, pó de pedras, antimônio, partes de animais (gordura, sangue, excrementos,...). A purgação era um tratamento rotineiro, assim como as lavagens vaginais e o uso de supositórios. Pequenas cirurgias eram feitas como a lancetação de furúnculos, abscessos, extirpação de tumores, e a circuncisão em meninos. A idéia de putrefação estava relacionada ao processo de biológico de deterioração. Para eles a matéria pecaminosa estava no material fecal, cuja absorção conduzia à destruição do corpo. Devido a isso a preocupação constante com a limpeza dos intestinos. Este conceito se refletia não só na medicina, mas também na religião. A função do médico era preservar o corpo para a vida terrena. Após a morte, o embalsamamento seria o meio de evitar a deterioração do corpo, com a ablação das partes pútridas, preservando-o para a outra vida.
 
 
Maria Eduarda Fagundes
Uberaba, 07/09/09
 
Referência: A Medicina Arcaica
JBM. Cultural (Jornal Brasileiro de Medicina- vol. 48 n.o4)
 
 

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