Em 1486 foi instalado em Safim um local de acolhimento dos doentes enquanto não eram evacuados para Tavira. Acabou este local por desempenhar as funções de verdadeiro hospital pois chegou a ter físico, cirurgião e boticário. A terra era pobre naquelas paragens mas o mar, esse, era pródigo em pescarias e era nessa faina que os portugueses lá andavam por longos períodos. O pretexto para se instalar este hospital foi o do apoio aos nossos pescadores mas acabou por servir toda a população local que muito beneficiou com a situação. Datam de muito mais tarde, 1516, os hospitais de Tânger e Arzila e é incerta no tempo a fundação do Hospital de Santa Cruz do Cabo de Gué, hoje Agadir, que foi praça portuguesa entre 1505 e 1541.
Bab el-Mansour – português cujo nome cristão continua desconhecido, cativo dos mouros, arquitecto, converteu-se ao Islão para alcançar a liberdade. Uma vez livre não conseguiu evadir-se e regressar a Portugal ficando em Meknès. Mas será que terá mesmo querido regressar? Não se sabe e não é agora que descubro e desvendo o mistério.
O que se sabe é que a sua vida em Marrocos decorreu sob a égide do Sultão Moulay Ismail que reinou durante 55 anos entre 1672 e 1727 da nossa era.
Meknès era considerada o primor arquitectónico de Marrocos mas o grande projecto de cidade imperial nunca foi concluído.
Tirano, conta no seu currículo com 30 mil mortos ao longo do seu longo reinado tanto devido à justiça praticada como ao capricho de que nunca se privou mas os números crescem muito se se considerar os que morreram nas batalhas que travou.
O seu lema era: “Os meus súbditos são como ratos num cesto; se eu não sacudir o cesto, eles roem-no, fazem um buraco e fogem”.
As realizações arquitectónicas do Sultão nunca eram suficientemente do seu agrado e o grande palácio acabou por ser concluído apenas cinco anos após a sua morte. Mas a grande porta nas muralhas da cidade que encarregou El Mansour de desenhar e construir é o verdadeiro ex libris de Meknès.
Chamada Bab el Mansur, é a mais importante e mais monumental das 20 portas da cidade sendo constituída por um arco triunfal em forma de ferradura com 8 metros de abertura e 16 de altura. Ricamente decorada, foi terminada em 1732 e está classificada como património protegido desde 1914. Integrando uma grande sala com 6,2 por 17 metros, é actualmente uma galeria de arte.
Conta-se que aquando da sua conclusão, o Sultão foi inspecionar a obra e perguntou a El Mansour se seria capaz de fazer alguma obra ainda melhor do que aquela. O arquitecto respondeu afirmativamente e o Sultão enfureceu-se de tal modo que o fez passar pelas armas.
Mais uma vez o hediondo capricho do tirano a clamar uma vida. Parece hoje, nas securas do Médio Oriente.
As pessoas da elite espiritual são reconhecíveis até nos nossos dias. O viajante pode encontrá-las nas sociedades do Islão que conservam os traços da tradição, como em Marrocos. Aí, reconheci um deles, em Tameslohte, a meio caminho entre Marrakech e o Atlas, uma noite, sob os andrajos de um mendigo, nessa aldeola marcada pela santidade, sob a arcada do pórtico que precede a casbá dos chorfas. A atmosfera estava impregnada pelo odor acre do óleo que emana dos moinhos. Estávamos na época da apanha: a floresta de oliveiras que envolve o aglomerado oferecia uma rica colheita. Bela barba, aspecto robusto, o mendigo que vinha em minha direcção tinha como que escapado de A Morte da Virgem, pintado por Caravaggio; era tão humilde, tão robusto quanto uma das personagens que rodeiam os restos mortais da santa defunta, nesta obra que recentemente voltei a ver no Louvre.
Chegando perto de mim, procurou os meus olhos na penumbra e, tão singelo quanto solene, executou dois gestos que resumiam a sua condição, o seu empenho, o seu itinerário. Com a mão esquerda, indicou-me a terra e o desprezo que ela lhe suscitava e ergueu a mão direita num gesto que oferecia o seu assentimento ao céu; um concentrado de energia empertigava o corpo dele que repentinamente se encontrava como que pronto para a ascensão.
Com este encadeamento de mímicas teatrais, parecia querer dizer: nada existe aqui em baixo, lá em cima está o Ser. Tal é a eloquência muda do mendigo aristocrático marcado pela ignorância, pertencente à elite da elite que ilumina o não-saber, irmão e émulo tanto do mestre de Bistâm como do homem de Tabriz, sobrevivente no nosso século das preservadas terras dos petrodólares e do wahhabismo.
Foi esta distinção entre elite e vulgo que se manifestou sob a pressão de uma democratização sem democracia, generalizando, pelo seu populismo, o ensino, sem considerar a qualidade e sem readaptar o princípio hierárquico para constituir uma elite republicana ou democrática. É então que se dá o triunfo do vulgo o qual, ao adquirir o domínio de uma técnica, passa da alfabetização à especialidade sem se adestrar à experiência do antigo, relativamente ao saber a que noutros tempos se designava por humanidades e que nos nossos dias se associa à inutilidade.
Nesta forma de inculcar o ensino de uma especialização num espírito amnésico ou virgem, descubro um sinal suplementar que confirma a americanização do mundo. Deste modo, o vulgo, ainda que mestre de uma especialidade técnica, não se transformou em figura aristocrática pela simples razão de que é o produto de uma instrução sem cultura. São os instruídos incultos que mais arruínam os homens.
Sem hesitar, prefiro os iletrados de elevada cultura, à semelhança do mendigo de Tameslohte.
Abdelwahab Meddeb
BIBLIOGRAFIA:
A DOENÇA DO ISLÃO, Abdelwahab Meddeb, “Relógio d’Água Editores”, Março de 2005, pág. 148 e seg.
Passei o fim de semana em Ifrane, na Universidade Al Akhawayn, num seminário sobre geopolítica africana – Magrebe-África Subsaariana.
Olhamos pouco para este nosso vizinho antigo e estratégico, que é Marrocos. Com o euro centrismo presumido e arrogante que foi também herança de Abril, habituámo-nos a olhar só para Bruxelas, pátria dos subsídios e do seguro democrático. Agora, tristes com as consequências da revolução, há quem a veja com raiva, como pátria da troika e deste Governo que os democratas de Abril, perdida a compostura, querem derrubar de qualquer maneira.
Em Ifrane sopravam outros ventos: Marrocos é uma nação muito antiga, um reino milenar independente, ainda mais velho que o reino de Portugal.
As dinastias sucederam-se ao longo do milénio e as relações com a Hispânia e os seus Estados foram também variáveis e tumultuosas. De lá vieram, em 711, Musa e Tarik, que com um exército de sírios e berberes que, graças à cumplicidade do conde Juliano, governador de Ceuta, passaram o Estreito e dominaram a Península.
E foi em Ceuta, em 1415, que D. João I e os infantes de Aviz começaram a expansão portuguesa.
Mas deixemos a História para nos ocuparmos dela. Marrocos, neste momento, é um caso singular num Magrebe que vive as consequências da frustrada primavera árabe: na Argélia, um quase octogenário e doente Boutflika, acabou por ser eleito Presidente, numas eleições boicotadas pela oposição; a Tunísia é uma terra de incógnitas, depois de aprovada a Constituição de 2014, sob o Governo dos islamistas 'moderados' da Ennahdha; a Líbia segue fragmentada e caótica; o Egipto voltou ao regime militar.
Marrocos conseguiu escapar a esta má sorte regional: a monarquia neutralizou pacificamente a vaga islâmico-radical e manteve um equilíbrio entre estabilidade e liberdades. Apesar de persistir a questão do Sahara Ocidental, uma herança da Guerra-fria que a inércia e o lobby mantêm de pé, o país vira-se agora decisivamente para a África subsahariana e para o Atlântico. O rei Mohamed VI fez uma visita de três semanas a quatro países africanos – Mali, Costa do Marfim, Guiné-Conacri e Gabão – levando consigo uma comitiva de ministros e homens de negócios. Jogou também, estrategicamente, com o factor religioso. O soberano alauita é descendente do Profeta e 'comandante dos crentes'.
Com ele, vai o Islão ortodoxo mas moderado de Marrocos e a oferta aos clérigos dos países visitados de centenas de bolsas para estudarem no reino.
Marrocos tem a experiência e o músculo económico-financeiro – em áreas como a banca, a agricultura, a mineração, a construção civil – de que a África está carente.
A ofensiva marroquina ficou-se para já pela África francófona e próxima. Mas parece ser um começo. Por outro lado, há o Atlântico e as comunidades atlânticas da margem oeste africana e sul-americana, áreas que também têm, para nós, um apelo histórico-cultural muito importante. Faz sentido pensar nisto.
Por várias vezes me apeteceu tratar os condutores de carroças de Marraquexe por “Vossa Boçalidade” mas considerando a facilidade que aquela gente tem para as línguas, limitei-me a expressar visualmente a minha repugnância pela atitude de mão daqueles fulanos evitando arranjar algum sarilho de que só eu poderia sair a perder.
À perfeita maneira boçal, a ordem dada ao animal para que ande mais de pressa é um ou vários toques na boca que frequentemente correspondem a puxões ou, mais apropriadamente, a verdadeiros “socos nos queixos”. Os animais correspondem à ordem como o cão do Professor Pavlov que salivava cada vez que à sua frente acendia uma luz eléctrica por reflexo condicionado e, naquele caso, sem qualquer relação com a lógica equestre civilizada.
As vítimas mais vulgares são burricos – enfezados por gerações sucessivas de fome e sede – mas as mulas também são frequentes e não apresentam quaisquer melhorias de tratamento em relação aos seus parentes mais pequenos. Os cavalos são raros no comércio e exclusivos nos trens para transporte de turistas mas o estatuto de cada classe não distingue mordomias e os “socos nos queixos” distribuem-se uniformemente por todos esses dóceis trabalhadores herbívoros.
Para sorte dos boçais, já lá vai o tempo em que os animais falavam . . .
Numa cidade com tanto animal, não deixei de reparar na inexistência de locais de abeberamento e cheguei a imaginar que aquelas gentes confundem burros, mulas e cavalos com camelos que só bebem quando o rei faz anos. Por uma única vez reparei num homem a dar água ao seu cavalo e temo poder concluir que todos os outros passam muita sede, o que se vê claramente pelo aspecto desidratado de todos eles e se sente no estrume pestilento que vai ficando pelas ruas. Daqui sugiro à nossa Sociedade Protectora dos Animais que estabeleça um protocolo de cooperação com a cidade de Marraquexe instalando por lá alguns chafarizes com um letreiro escrito em árabe, francês e português de modo a que todos os alfabetizados possam saber que se trata de uma iniciativa portuguesa destinada aos animais que trabalham naquela cidade. Não custa nada fazermos um brilharete com dinheiros da UE e ainda pomos uns estudantes de arquitectura a ganhar nome junto da população asinina marroquina.
Um dos programas turísticos mais procurados chama-se “Fantasia” – exactamente assim, à portuguesa – e consta de um jantar e de um espectáculo folclórico de música, alguma dança e muita participação equestre. Para quem como eu gosta de cavalos e de equitação, tem interesse e é agradável.
As imponentes instalações de recente construção em que tudo se desenrola consistem num castelo devidamente amuralhado mas no enorme terreiro que lhe dá acesso pode estacionar à vontade uma centena autocarros e o dobro de automóveis ligeiros.
Cavalo "berbere", de certeza o antepassado do nosso "lusitano"
Fazemo-nos ao portão principal entre alas de cavalos berberes devidamente ajaezados e respectivos cavaleiros em traje a rigor e carabina em riste. Não resisti a posar junto de um deles, até para ficar com uma ideia mais nítida sobre o tamanho médio dos cavalos (pouco mais que 1,50 m ao garrote). Esperava ver freios de grandes alavancas e montadas pronunciadas mas apenas vi bridões sem história; as selas não estavam em exibição especial e para ver do que se tratava tive que vir aqui à Internet à procura de uma fotografia de “sela fantasia berbere”; as cabeçadas não tinham focinheira útil e por isso os cavalos – à semelhança de todos os burros e mulas que vi pela cidade – andam de boca aberta em atitude de esgar esteticamente desagradável e abominável na perspectiva equestre.
O imaginário marroquino da Caverna do Ali Bábá põe-lhe um recheio de despojos cristãos, quiçá os de D. Sebastião
Entrando para o castelo propriamente dito, logo se nos depara a gruta do Ali Bábá e uma galeria com as fotografias dos visitantes ilustres, nomeadamente Ronald Reagan. Não sei se fiquei no mesmo lugar nem sequer na mesma mesa do grande Presidente americano mas, apesar de sermos cerca de 1500 convivas, o jantar foi muito bom. E – por esta é que eu não esperava – muito bem acompanhado por um vinho tinto marroquino chardonais cuja marca “quelque chose” esqueci. Todos os grupos folclóricos em presença nos visitam na mesa e as meninas não sossegam enquanto não desinquietam os cavalheiros para um pésinho de dança e nos presenteiam com estridente trilo de língua bem junto ao nosso desprevenido ouvido.
As berberes não cobrem a cara e cantam e dançam com a alegria que as mulheres árabes podem não sentir
O recinto do espectáculo equestre deve ter uns 200 m de comprimento por uns 50 de largura e é nele que, vindos do breu, evoluem sob o foco dos holofotes em larguíssimo galope uns quantos ginastas saltando de um flanco para o outro do cavalo, fazendo o pino junto à espádua e outras tropelias que encantam a multidão expectante. Tudo acompanhado de música a condizer com o ritmo do espectáculo, o público marroquino conhecedor do seu folclore não deixa de nos contagiar com os cânticos que entoa e com as palmas com que tudo acompanha. Afinal, o espectáculo não é só no recinto equestre propriamente dito mas nas bancadas também.
O grande número é, no entanto, a “Fantasia” que consiste em duas equipas de 9 cavaleiros que vêm lá do escuro do fundo do recinto a correr lado a lado num galope muito forte e, imediatamente antes de pararem, devem dar um tiro de tal modo simultâneo que pareça um só. Cada equipa faz três exibições e são os aplausos das meninas dos grupos folclóricos que determinam qual das equipas é a vencedora.
Escusado será dizer que os cavalos pouco ou nada têm de árabe e são todos berberes pois caso contrário não conseguiriam passar do galope larguíssimo à paragem em menos de meia dúzia de metros. E, na verdade, sem que se trate de cavaleiros eruditos, não se vêem brutalidades chocantes para quem gosta de equitação fina. É claro que eles já nem sequer devem saber viver sem a boca escancarada mas, como era noite cerrada, não havia por ali moscas que os engasgassem e, com a repetição, todos aqueles cavalos sabem de cor onde acaba a pista e têm que parar mesmo sem acção especial da manápula do cavaleiro.
Música bem sonora, o público a cantar e a bater palmas, os cavalos quase à carga, os tiros e o fogo de artifício fazem da “Fantasia” um espectáculo a não perder por quem, como nós, decidira fazer uma viagem no tempo e ir até bem longe nos arquivos da História.
E, de facto, eu imaginara que esta viagem a Marrocos me levaria à Idade Média mas enganei-me claramente pois funcionam em paralelo dois estilos de vida que na boa verdade nada deveriam ter a ver um com o outro e, contudo, toleram-se sem que aparentemente existam conflitos: a vida dentro e fora do Souk; a avó de caftan e véu na companhia da filha de saia comprida e blusa com mangas mas de cara destapada e a neta de jeans e blusa de manga à cava; o velhote de caftan e cofió à conversa com outro fulano trajando completamente à ocidental; a maioria dos homens de cara completamente escanhoada e alguns barbudos à moda do Ben Laden (muito raros os bigodes, donde o meu “moustache” a dar-me a alcunha).
Mas – pese embora a dramática falta de água para a agricultura – vi os campos todos em produção a fazerem os mercados agrícolas portugueses enrubescerem de vergonha e imaginei o que aquele país poderá ser quando utilizar mais intensamente as águas provenientes do degelo do Atlas. Claro está que em Marrocos não existe por certo nenhuma política do estilo do “set aside” europeu e, pelo contrário, dá para acreditar que esteja em vigor algum mercantilismo e que a procura interna se vá satisfazendo sem interferências externas com objectivos paralisantes da produção nacional. Objectivos estes semelhantes ao que fazem os responsáveis pelo aprovisionamento das Grandes Superfícies portuguesas que tanto vibram quando a Selecção Nacional de futebol se classifica para as meias-finais do Mundial mas que profissionalmente não hesitam em sistematicamente beneficiar o adversário.
Lisboa, 5 de Julho de 2006, antes do jogo Portugal-França
Henrique Salles da Fonseca
Nota final:
No regresso a Portugal, demos uma volta por Casablanca em vez de desperdiçarmos 6 horas no aeroporto. O Guia que nos acompanhou disse-nos logo de início que íamos começar por visitar o que de mais importante existe em Casablanca, a Mesquita Hassan II. É de facto um monumento imponente mas eu continuo a acreditar que o que de mais importante existe em Casablanca são as pessoas.
Imagine-se o Parque Meyer com as suas pequenas casas de rés-do-chão e primeiro andar semelhantes às dos cenários das Revistas à Portuguesa, com recheio de comerciantes da Feira do Relógio em dia de S. Martinho na Feira da Golegã. Quem conseguir fundir estas imagens, percebe o que é o Souk de Marraquexe. Mais: a Praça Djemaa El-Fna pode fingir ser o Arneiro da nossa Feira do Cavalo pois é por lá que todos passam mesmo que lá não tenham nada que fazer.
Aportuguesado o cenário, passemos a coisas mais reais.
Marraquexe tem cerca de um milhão e meio de residentes e como o nome da cidade significa “passa depressa”, consta que há mais um milhão de passantes em permanente movimento. Pintada de ocre e de vários tons de rosa, a cidade nova tem um urbanismo de fazer inveja a quem não tenha tanto espaço mas em compensação a parte antiga assemelha-se a linha metida em bolso e é aconselhável fazermo-nos acompanhar de Guia que de preferência nos indique e explique os locais a visitar.
E se acerca da cidade nova nada de muito especial tenho para dizer, já da parte antiga me ocorre referir a opacidade do mercado que por ali se faz.
Recordemos o princípio fundamental: diz-se que um mercado é transparente quando todas as pessoas em qualquer lugar e em qualquer momento podem saber a cotação do produto em referência. Por exemplo, aqui em Lisboa, eu posso saber o preço do algodão hoje praticado em Nova Iorque porque o produto é standard e as cotações de Venda, Compra e Efectuada são publicitadas.
No Souk de Marraquexe temos que afinar o olhar para distinguir alguma coisa no meio da confusão
No Souk de Marraquexe e na sua “porta de entrada”, a Praça Djemaa El-Fna, transacciona-se uma infinidade de quinquilharia que nem os chineses das lojas dos 300 conseguem ultrapassar e, portanto, não há uma referência para qualquer hipótese de standardização. Mas o método de formação dos preços é típico e tudo se processa sensivelmente assim:
O eventual comprador sonhou olhar para um produto? Logo o comerciante o tenta cativar da forma mais exuberante que o decoro permite em público;
O candidato a comprador ousa perguntar quanto custa o produto e o comerciante avança com uma exorbitância que faria qualquer europeu no seu perfeito juízo seguir caminho para outras paragens. Mas não: o potencial cliente oferece metade (ou menos) do preço inicialmente pedido;
A partir daqui assiste-se a uma cena extremamente dramática que nos faz crer na desgraça que o comprador quer lançar sobre toda a família do infeliz comerciante . . .
. . . até que, depois do cliente ter simulado várias desistências esubido alguma coisa na oferta inicial, num repente, o comerciante faz um grande sorriso e se prontifica a fechar negócio;
Desaparecido num ápice o enredo dramático, faz-se a transacção e cada uma das partes passa para outra cena semelhante na mesma ou noutra banca.
Este método é válido para uma laranja amarga, para um pó contra o mau-olhado, um molho de coentros, um burro, uma lamparina ou para um camelo. Não andei nos transportes públicos pelo que não sei se o bilhete do autocarro tem preço negociável mas a visita à cidade numa das inúmeras caleches disponíveis dá para imaginar que de início nos querem vender a parelha de cavalos, a carripana e talvez mesmo o súbdito marroquino mão-de-rédea.
O raciocínio básico neste método deve ser sensivelmente assim:
Deixa cá ver se consigo enganar este “papalvo” que aqui anda às compras, pensará o vendedor;
Deixa cá ver se consigo “esmifrar” este especulador, pensará o comprador.
Aínda sopesei a "mercadoria" mas não cheguei a acordo no preço
Ou seja, se assim for, o método tem uma base de desconfiança mútua, de dupla venalidade e pura especulação e não é por se desenrolar no meio de uma multidão que faz com que o mercado funcione: no quiosque ao lado pode estar a decorrer uma negociação para um produto idêntico e o preço final fechar num nível diferente. Mais: o comprador não divulga o preço que pagou com receio de passar por ingénuo; o vendedor não revela o preço que recebeu para não correr o risco de a sua própria família o considerar um perdulário.
Ao contrário do que se passa na nossa Feira do Relógio, não há ninguém que anuncie os preços e as bonificações (leve 50 e pague 25) ao megafone pelo que tudo aquilo não passa de um amontoado de vendedores e compradores em vez de constituir um mercado. E como parece que é assim em todo o mundo muçulmano, então vamos ter que pensar um pouco antes de tentarmos vender-lhes nem que seja um alfinete de dama.
Mas não faltará quem me diga: «Oh fulano, aquilo é uma civilização diferente . . .» Ao que eu respondo: «Claro, é a civilização dos companheiros do Ali Baba ! ».
Junto a um "homem azul" do povo berbere que se arranjou para a fotografia ao modo como se defende do pó do deserto
Argânia foi nome que me fez imaginar tágides e outras ninfas lá do Pireu, de Creta, de algum recanto do Olimpo ou mesmo do Walhalla mas, pensando melhor, cheguei a admitir as brumas de Avalon como melhor morada para tanta puridade . . . até que cheguei aos arrabaldes do deserto do Sahara e me deparei com a científica “argania spinosa” militantemente mordiscada pelas cabras dos rebanhos berberes.
Quando a olhei pela primeira vez, vi claramente que não era uma oliveira mas deixei passar mais alguns quilómetros da estrada de Marrakesh para Mogador – para ter a certeza do que estava a ver – e só então perguntei ao motorista de que árvore se tratava. Fiquei na mesma com a resposta que obtive mas consegui recobrar o interesse quando parámos um pouco mais à frente numa casa à beira da estrada onde se podia ler que se tratava da sede de uma cooperativa feminina berbere destinada à transformação do fruto da argânia.
Já lá estava um autocarro de ruidosos turistas gregos pelo que a azáfama era grande em curto espaço mas logo uma jovem quase ocidentalizada se nos apresentou como guia e explicou que o objecto da cooperativa consistia na criação de um modo de vida para as cooperantes, divorciadas ou viúvas berberes, através da produção de inúmeros derivados da argânia, desde comestíveis líquidos, pastosos ou sólidos a cosméticos e unguentos medicamentosos úteis na cura de maleitas tão variadas como o acne, a impotência, a esterilidade, os calos ou a caspa. Não fiquei com grandes dúvidas de que se tratava de autêntica “banha da cobra” mas mantive o ar tão sério e respeitador quanto as circunstâncias aconselhavam e experimentei um delicioso mel, uma geleia e uma pasta amanteigada que me agradaram às papilas gustativas . . . e a outras glândulas não me refiro.
Argânia - "argania spinosa"
Foi já depois de deglutir tão refinados ágapes que ouvi a explicação do processo produtivo e fiquei a saber que a argânia é de facto espinhosa pelo que só as alimentarmente exigentes cabras se dão ao trabalho de lhes mordiscarem frutos e rebentos. Mas este simpático cornúpeto tem um agente gástrico que impede a digestão do caroço do fruto pelo que este é expelido pelo final do tubo digestivo já sem polpa e considerado em condições de recolha manual pelas cooperantes viúvas e divorciadas dentre as estrumeiras dos diferentes rebanhos das redondezas. Ou seja, em boa verdade, a matéria-prima de que tratamos é um subproduto do estrume caprino sub-sahariano e eu tinha acabado de comer daquilo . . .
Mas que povo tão diferente dos árabes, este verdadeiro mouro, o berbere. A começar por que as mulheres não tapam a cara - a não ser como defesa das tempestades de areia – passando pela palavra cujo conteúdo não se negoceia até à decisão de acabarem com o analfabetismo e passarem a escrever a sua língua em caracteres ocidentais. Dizem-me que a transposição desta língua para a escrita parte do zero pois o povo era todo analfabeto e, portanto, a escrita inexistente e a gramática completamente desregulada. Bastante mais épico do que com o galego amordaçado por Franco.
Mas a simples existência desta cooperativa – e de outras que vimos ao longo da estrada – mostra à saciedade o inconformismo feminino berbere de subjugação à arbitrariedade masculina. Não deu para averiguar se estas mulheres aceitam o fatalismo do destino como a generalidade da Fé muçulmana determina mas este exemplo cooperativo não deve dar muito conforto aos habituais ditames dos imãs.Dá para nos perguntarmos até que ponto não está aqui uma centelha de rebelião e se a futura ordem social não será finalmente menos misógina que a actual.
Foi com estas questões na ideia que me deixei guiar pela estrada fora e nos acercámos de Essauiria, a nossa antiga Mogador. Sim, fui lá à procura de portugueses abandonados . . .