Talvez agora em inglês se oiça...
v O Diário Económico, na edição de 29/03/06, deu especial destaque ao que um consultor da Comissão Europeia, irlandês por sinal (A. Ahearne, do Bruegel, um centro de estudos europeu), pensa sobre a camisa de onze varas onde nós, portugueses, nos metemos – e que, bem vistas as coisas, talhámos por nossas próprias mãos.
v Segundo o entrevistado: (i) existe demasiada dívida portuguesa na posse de investidores europeus (cerca de € 70 mil milhões); (ii) a entrada de Portugal na zona-euro deu lugar, internamente, a uma “bolha” de crédito bancário que as autoridades nacionais não souberam prever, muito menos conter e esvaziar a tempo; (iii) ajustar as contas públicas e o endividamento das famílias vai ser difícil e demorado; (iv) enquanto estes processos de ajustamento durarem, a economia portuguesa não terá condições para crescer significativamente; (v) na origem destes desequilíbrios, que ameaçam a estabilidade da própria zona-euro, estão aumentos de preços e salários excessivos e completamente desalinhados com o que se passa nas grandes economias europeias.
v Nem Ahearne, nem o estudo que o trouxe para a ribalta (“The Euro: only for the agile”), parecem identificar o fio condutor de tudo isto, dos aumentos de preços e salários à bolha de crédito, da dívida externa do país ao diferencial de inflação, do desequilíbrio interno (deficites primários no OE em crescendo) ao desequilíbrio externo (deficites na BTC ainda mais acentuados). E também lhes escapou que aqueles números correspondem, apenas, à dívida soberana, faltando somar ainda a dívida externa dos bancos nacionais (a dívida externa de empresas e famílias ainda tem pouca expressão).
v Apesar de assinalar evidentes falhas na regulação e supervisão do sistema bancário português, lê-se-lhe nas entrelinhas que Portugal, ao integrar a zona-euro, ficou despojado do instrumento cambial (o que é certo) e impedido de conduzir uma política monetária autónoma (o que está longe de ser verdadeiro). Sobre a causalidade, eminentemente bancária, da situação em que nos encontramos, só a tal referência à “bolha” de crédito, e nada mais. Muito custa a desenraizar o mito da neutralidade da moeda, et pour cause, da actividade bancária!
v São, porém, as declarações colhidas pelo jornal junto de Miguel Beleza (MB) e de João Ferreira do Amaral (JFA) que vêm lançar luz sobre o porquê deste nosso malfadado destino.
v No essencial, MB afirma que: (i) antes da adesão à moeda única já se sabia que o crédito bancário e endividamento das famílias iriam disparar; (ii) o BdP poderia ter aplicado regras mais apertadas, mas se os bancos nacionais não emprestassem, emprestariam os bancos estrangeiros; (iii) o mau desempenho da economia está directamente relacionado com erros na política económica, em geral, e da política orçamental, em particular.
v Mas, se se previa que as famílias iriam acorrer aos bancos para se endividarem, e se ninguém ignorava a apetência dos portugueses por bens importados, porque não se previram também os efeitos na BTC desse surto de procura interna que a previsível queda nas taxas de juro não deixaria de estimular?
v E que ideia fazia o BdP sobre a suficiência (ou insuficiência) dos capitais próprios da banca portuguesa perante esse surto na procura de crédito bancário que já então se dava por certo?
v E como pensavam as autoridades nacionais financiar os previstos deficites na BTC? Em particular, que programava o BdP para a Balança de Capitais Monetários (isto é, os movimentos puramente financeiros entre bancos residentes e não residentes), peça essencial no seio de uma união monetária?
v Por outro lado, é ingénuo presumir que aí estariam os bancos estrangeiros para aproveitarem o que os bancos portugueses, distraídos ou desinteressados, não pegassem. Por várias razões: (i) a barreira cambial (que está, por certo, no pensamento de MB) é, sem dúvida, um obstáculo de monta, mas não é o único a tolher os movimentos transfronteiriços de fundos, ou a actividade dos bancos fora dos seus países de origem; (ii) os bancos, em todas as latitudes, são extremamente sensíveis aos custos de transacção e, por isso, só se estabelecem num país estrangeiro quando estimam que a dimensão desse mercado, ou o diferencial de oportunidades que aí vão encontrar, compensam; (iii) cada vez mais os bancos sensatos são sensíveis ao risco (risco de crédito, risco de mercado e riscos operacionais) - e sabem bem que, seja por razões prudenciais, seja pela simples força da peers’ review, têm de manter os seus capitais próprios em linha com o perfil do risco a que se encontrem expostos.
v Ora: (i) no contexto da zona-euro, a dimensão do nosso mercado financeiro, seja ela medida em número de clientes, em valor ou em sofisticação, é insignificante; (ii) a partir do momento em passássemos a integrar uma união monetária, as taxas de juro aqui praticadas nunca se afastariam muito daquelas que prevalecessem nos restantes países membros, e se se afastassem, seria só para melhor reflectirem custos de transacção e/ou riscos - pelo que, por aqui, oportunidades, oportunidades, muitas não haveria; (iii) sabe-se ainda pouco sobre os efeitos que a adesão a uma união monetária induz no risco de crédito do país aderente, mas estou certo que, já em 1999, ninguém lá fora tinha dúvidas de que nós, por cá, que nunca fomos de pagar bem, íamos mal, e logo chegariam os dias em que pagaríamos pior.
v Aos bancos estrangeiros ofereciam-se, então, cinco alternativas: (i) abrir por aqui filiais, correndo por inteiro o risco da economia portuguesa; (ii) pescar à linha na nata das empresas portuguesas, ou em algum nicho do mercado; (iii) acompanhar por cá empresas que eram já suas clientes noutras paragens; (iv) expor-se ao risco médio do nosso país por via indirecta, investindo na dívida pública portuguesa ou nas operações de titularização de activos financeiros domiciliados em Portugal; (v) prestar serviços vários directamente aos bancos nacionais. Excepção feita a alguns bancos espanhóis, que adoptaram claramente aquela primeira alternativa por razões óbvias, poucos têm sido os bancos estrangeiros a demonstrar interesse no nosso mercado, e os que o fazem tendem a seguir as duas últimas vias. A possibilidade de o nosso mercado ser invadido nunca existiu, dado serem fracas as perspectivas de benefício/custo e ser relativamente elevado o risco.
v Diz MB que o que falhou foi a política económica, designadamente a política orçamental. Sem dúvida que a governação do país falhou a partir do momento em que aderimos à CEE. Mas, desde 1997 (quando a entrada de Portugal na zona-euro era um dado adquirido), a execução orçamental tem sido favorecida precisamente por aquilo que nos ia arrastando para o desastre. Refiro-me á “bolha” do crédito bancário que, ao tornar possível a expansão acelerada da procura interna, aumentava simultaneamente as receitas fiscais – já que, entre nós, uma larga fatia da base tributável está intimamente ligada à despesa. Como nos habituámos a olhar para o deficit do OE e não para o peso das despesas públicas, essa foi (e é), na verdade, a falha da política orçamental.
v Pior ainda. A “bolha” do crédito bancário, quando não se convertia em deficites da BTC, encaminhava-se, quase integralmente, para o sector dos bens não transaccionáveis (construção, serviços de vizinhança, distribuição de bens importados, funcionalismo público). Acontece que, entre nós, é este o sector dominante no mercado do trabalho, pelo que tem sido ele, sobreaquecido pelo crédito bancário, a marcar o aumento dos Custos Unitários do Trabalho, do diferencial da inflação e do câmbio real. Com o aplauso de todos, este anel vicioso tem vindo a asfixiar o sector dos bens transaccionáveis, à medida que os bancos nacionais se endividam mais e mais no exterior (mas sobre isto, já escrevi).
v JFA, por seu turno, defende a saída de Portugal da zona-euro, porque, para ele, a adesão foi prematura e precipitada. Insiste também em diversos aspectos teóricos, muito interessantes mas que não vêm ao caso (como sejam as condições necessária a uma zona monetária óptima à Mundell). Agora dar como prova do insucesso do euro a volatilidade da taxa de câmbio €/USD é que não lembra ao diabo (tal como nos matrimónios, também no mercado cambial, quando as coisas não correm bem, as culpas raramente cabem a um só).
v Certamente JFA (tal como Ahearne) desconhece o nível do endividamento monetário externo (isto é, junto de bancos não residentes) da banca nacional, e ainda não interiorizou que já está em vigor o Novo Acordo de Basileia, com as suas regras em matéria de gestão do risco e adequação de capital.
v Nem deverá ter reflectido bem nas crises bancárias do Chile (1980), dos Tigres Asiáticos (1997/1998) ou da Argentina (2001/2002) – e nas convulsões sociais que as acompanharam.
v Porque se tivesse, veria que Portugal está maduro para uma crise semelhante, e só a pertença à zona-euro (que, é certo, tornou possível a “bolha” de crédito bancário) tem impedido que tal suceda.
v Do BdP, durante o processo de integração numa união monetária, esperava-se: (i) que controlasse o endividamento monetário externo dos bancos nacionais; (ii) que não tolerasse baixos níveis de capitalização, agindo de imediato e com firmeza; (iii) que vigiasse para que os bancos reflectissem no pricing das suas operações de crédito bancário o risco a que ficavam expostos, penalizando os que não o fizessem com maiores exigências de capital. Não o fez. Vamos perder todos.
v Foi isto que faltou dizer ao Prof. Ahearne.