Lá compareci na Faculdade de Letras da UL - estupendo edifício escolar salazarino (o tal período em que "nada de bom aconteceu ") que eu não conhecia - em obediência ao convite para participar na sessão comemorativa do 150 anos do TRATADO DOS LIMITES ENTRE PORTUGAL E ESPANHA DE 1864. Ouvi vários oradores que relataram as suas descobertas históricas em matéria fronteiriça, entre eles, o Prof. Doutor Hermenegildo Fernandes, Director do Centro de História da dita Faculdade, o qual, embora falando sobre um período histórico anterior ao Tratado, disse algo que me pareceu altamente esclarecedor. Segundo ele, um dos critérios a que obedeceu o traçado da fronteira estabelecido no Tratado de Badajoz de 16 de Fevereiro de 1267, celebrado pelos Reis de Portugal e de Leão (Espanha ainda não tinha sido inventada), e que definiu quase toda a fronteira como ele se encontra hoje, foi o respeito pelos marcos dos castelos dos senhores feudais suseranos de um e outro Rei e os termos das dioceses criadas pela Igreja, ou seja, o respeito pela autoridade estabelecida. Aqui temos o uti possidetis característico da ordem pontifícia, a Pax Christiana, na sua pura forma. (Em termos correntes, o princípio estabelecia que "já que conseguiste estabelecer aí o teu domínio, fica teu e a ti cabe manter aí a ordem").
E isto ajuda a compreender mais um dilema histórico do tipo ovo/galinha. No caso, trata-se de saber se foi a nação que fez a fronteira ou foi a fronteira que fez a nação.
Temos vários exemplos históricos. A nação judaica sobreviveu apesar da perda do território e suas fronteiras (a religião unia-os); os Vikings escandinavos já eram nação muito antes de fixarem fronteiras (o frio e o sangue unia-os), mas na Península ibérica (mais ainda do que no resto da Europa) antes da fronteira de Badajoz, a população compunha-se de uma salada de etnias e religiões. O que aqui fez a nação, o que nos deu homogeneidade e nos fez diferente dos espanhóis foi a fronteira, ou seja, o rei, seus suseranos e bispos e a religião destes. Antecipamos de quatro séculos o princípio Cujus regio, ejus religio, que viria a ser adoptado em Westefália, (início da paz laica) e isso permitiu-nos sossego interno enquanto os outros entre si se digladiavam.
Somos pois o produto de um processo top-down, (imposto de cima para baixo). E nos processos top-down, quando o topo fraqueja fica tudo estragado.
Lá compareci na Faculdade de Letras da UL - estupendo edifício escolar salazarino (o tal período em que "nada de bom aconteceu ") que eu não conhecia - em obediência ao convite para participar na sessão comemorativa do 150 anos do TRATADO DOS LIMITES ENTRE PORTUGAL E ESPANHA DE 1864. Ouvi vários oradores que relataram as suas descobertas históricas em matéria fronteiriça, entre eles, o Prof. Doutor Hermenegildo Fernandes, Director do Centro de História da dita Faculdade, o qual, embora falando sobre um período histórico anterior ao Tratado, disse algo que me pareceu altamente esclarecedor. Segundo ele, um dos critérios a que obedeceu o traçado da fronteira estabelecido no Tratado de Badajoz de 16 de Fevereiro de 1267, celebrado pelos Reis de Portugal e de Leão (Espanha ainda não tinha sido inventada), e que definiu quase toda a fronteira como ele se encontra hoje, foi o respeito pelos marcos dos castelos dos senhores feudais suseranos de um e outro Rei e os termos das dioceses criadas pela Igreja, ou seja, o respeito pela autoridade estabelecida. Aqui temos o uti possidetis característico da ordem pontifícia, a Pax Christiana, na sua pura forma. (Em termos correntes, o princípio estabelecia que "já que conseguiste estabelecer aí o teu domínio, fica teu e a ti cabe manter aí a ordem").
E isto ajuda a compreender mais um dilema histórico do tipo ovo/galinha. No caso, trata-se de saber se foi a nação que fez a fronteira ou foi a fronteira que fez a nação.
Temos vários exemplos históricos. A nação judaica sobreviveu apesar da perda do território e suas fronteiras (a religião unia-os); os Vikings escandinavos já eram nação muito antes de fixarem fronteiras (o frio e o sangue unia-os), mas na Península ibérica (mais ainda do que no resto da Europa) antes da fronteira de Badajoz, a população compunha-se de uma salada de etnias e religiões. O que aqui fez a nação, o que nos deu homogeneidade e nos fez diferente dos espanhóis foi a fronteira, ou seja, o rei, seus suseranos e bispos e a religião destes. Antecipamos de quatro séculos o princípio Cujus regio, ejus religio, que viria a ser adoptado em Westefália, (início da paz laica) e isso permitiu-nos sossego interno enquanto os outros entre si se digladiavam.
Somos pois o produto de um processo top-down, (imposto de cima para baixo). E nos processos top-down, quando o topo fraqueja fica tudo estragado.
O Concílio Ecuménico Vaticano II foi – reconhece-se hoje – o magnum opus da Igreja católica, no século XX. Ao tempo (1963-5), porém, muitos não compreenderam o empenho de actualizar uma Igreja multissecular.
Indiferente ao espanto, o concílio aconteceu tendo por objectivo, universalizar a mensagem de Cristo. O inspirador, Angelo Roncali, (1881- 1963), eleito Papa João XXIII - o "Papa da bondade" - em 1958, tinha larga vivência sacerdotal nos países balcânicos, na Turquia e na Grécia. Era um homem especial. Na abertura do Concílio fez uma evocação à Lua: "Poderíamos dizer que até mesmo a Lua está com pressa esta noite... Observem-na, lá no alto, está a olhar para este espectáculo...".
Lunático, terão pensado muitos. Assim podia parecer alguém que, no momento em que as nações cristãs ocidentais tinham resolvido as contendas entre si, trocado as guerras pela integração e concordado que o mal maior a combater era a combinação do comunismo e do expansionismo soviético, viesse proclamar, do cimo da tribuna mais respeitada do Mundo, a necessidade e urgência de lançar mãos à obra de rever os conceitos e os valores até aí tidos por certos. Se corria tudo tão bem, para quê alterar?
Dos católicos portugueses, incluindo a hierarquia, nem falar. Eles tinham passado 4 décadas a combater o laicismo jacobino e a doutrina marxista que fez razias entre os crentes e, com ajuda de Fátima e Salazar, tinham conseguido repor a Igreja no lugar central que sempre ocupara na sociedade portuguesa. Já para o Governo, a ideia de Roncali apresentou-se inoportuna e de má catadura. Portugal - anteriormente ostracizado - tinha sido admitido (1949) como membro fundador da mais poderosa aliança jamais concebida para defesa da ordem estabelecida - a NATO - e passara a ser considerado elegível para receber ajuda externa da potência hegemónica; integrava agora um zona ampla de comércio livre e a Economia crescia à razão de 7 %, circunstâncias que permitiram elaborar planos de desenvolvimento (fomento, como então se dizia) e preparar um futuro melhor. O Governo acreditava então que tinha reconquistado a confiança da Nação com a sua pronta resposta aos incidentes no Norte de Angola. Entendia-se pois que o tempo não pedia revisão das posições assumidas e reorientação dos caminhos traçados mas tão somente pedia continuidade.
Frei Bento Domingues, Pregador diz-nos1 que, "o Vaticano II, em Portugal, não foi nem preparado, nem acompanhado, nem bem recebido pelas instâncias oficiais. Os Bispos do tempo ter-se-iam refugiado na receita "demasiado ocupados com o pastoreio diário para nos ocuparmos com profundidade de assuntos de tal natureza."
Não terá sido bem assim. Mas a reacção oficial está bem descrita. Nalguns sectores - MNE entre eles - intuiu-se que a iniciativa do Vaticano II poderia representar um desafio grave ao sistema sociopolítico português do tempo.
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O Papa João XXIII esclareceu, logo na sua fala inicial, o sentido político do Concílio. Declarou:
"Os Concílios Ecuménicos (anteriores), cujas vicissitudes constituíram uma sucessão de verdadeiras glórias para a Igreja Católica, foram muitas vezes celebrados com alternativas de dificuldades gravíssimas e de tristezas, por causa da intromissão indevida das autoridades civis. Elas, é certo, propunham-se, às vezes, proteger com toda a sinceridade a Igreja; mas, as mais das vezes, isto não se dava sem dano e perigo espiritual, porque procediam segundo as conveniências da sua política interesseira e perigosa.
A Igreja decidia pois libertar-se de peias e compromissos para crescer no domínio espiritual e realizar a sua missão à escala mundial. Este sentido foi claramente confirmado quando a assembleia dos Bispos rejeitou in limine todas as propostas que cheiravam a dogmatismo e autoritarismo2. Apelava-se agora mais para a consciência do que para a obediência. Condenado estava pois o apoio ao nacionalismo que caracterizara o posicionamento político da Santa Sé no pontificado de Pio XII. A Concordata3 estabelecida em 1940 com o Governo Português estava em perigo.
Salazar colocou no Vaticano o seu melhor diplomata, Faria4. A diplomacia da Secretaria de Estado da Santa Sé estava confiada a outro "mestre" da diplomacia, Monsenhor Samoré. Logo nos primeiros contactos, os contornos da divergência tornaram-se claros. Monsenhor Samoré sugeriu ao embaixador português maior autonomia para as nossas colónias, enquanto Faria notou a Samoré que a delicada temática política incluída no chamado "Esquema 13" do Concílio poderia dar azo a problemas no relacionamento com os governos nacionais. Lançadas estavam pois as sementes do conflito.
Quem quiser acompanhar as várias fases da luta diplomática entre as chancelarias de Lisboa e da Santa Sé que se seguiu ao Vaticano II encontrará ampla documentação em dois livros recentes: - Salazar de Francisco Ribeiro de Meneses (pgs. 566 e seguintes, edição inglesa) e António Augusto de Faria, de António Telo, edição Cosmos (Capítulo VI), sobretudo no último. Aí estão descritos os sucessivos braços de ferro suscitados pelo caso do bispo da Beira, D. Sebastião Resende (1963); pela visita de Paulo VI a Bombaim, anunciada em Dezembro de 1963, dois anos depois da anexação de Goa, Damão e Diu; pela posterior visita de Paulo VI às Nações Unidas, em plena sessão da Assembleia Geral (1965); pela proposta do Vaticano de nomear padres nativos africanos para preencher dioceses em Angola; etc...
Da leitura, nota-se, da parte de Lisboa, um manifesto erro na avaliação da relação de forças. Os responsáveis pelo regime deram a entender no Vaticano e ao Patriarcado que a Igreja teria mais a perder junto do público português se hostilizasse o governo do que o governo perderia no caso de conflito ostensivo com o Vaticano.
A resposta de Paulo VI a esta jactância está na Encíclica Populorum Progressio, de 1967. Ali se afirma " É natural que uma nação com largo passado cultural tenha orgulho na sua tradição. Mas esta louvável atitude deve ser sempre condicionada e reforçada pelo amor a toda a família humana. O orgulho arrogante de uma nação desune a humanidade e cria obstáculos nocivos à sua prosperidade".
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Cedo se tornou claro, mesmo aos olhos de Lisboa, que o regime tinha condições para responder a qualquer tipo de ameaça externa mas não podia enfrentar a oposição interna da Igreja. A ameaça externa conferia-lhe legitimidade; o conflito com a Igreja retirava-lha. A querela contudo continuou até que, graças ao talento diplomático do Embaixador Faria, o Papa visitou Fátima - "a convite dos Bispos portugueses" - onde teve curto encontro com o Chefe do Governo português. Claro que, nem Paulo VI renunciou à sua óptica global, nem Salazar abandonou a sua estrita visão imediatista. Se o tivesse feito, não seria político. O estilo do relacionamento melhorou temporariamente. A retomada do ataque ostensivo de formas múltiplas só viria acontecer, já com Marcello Caetano no poder.
Curiosamente, este não se deu conta de que os interesses de Vaticano estavam em conflito com os do seu governo. Nas suas Memórias, diz que foi traído pela Igreja!
3 As Concordatas já eram usadas na Idade Média para regulamentar a questão da investidura do poder temporal. As Concordatas modernas, diferentemente das medievais, visam estabelecer a supremacia do Bispo de Roma como autoridade moral da catolicidade e a função centralizadora transnacional do governo da Igreja. Era o instrumento diplomático favorito de Pacelli (mais tarde, Pio XII) para fomentar relações com os regimes autoritários europeus.
José Cutileiro e Ricardo Alexandre, no recente livro Visão Global ([1]), escrito em estilo descontraído, tipo "parada-resposta", fazem o ponto das relações internacionais e levantam questões de grande interesse das quais refiro algumas escolhidas a esmo.
A páginas 122, JC indaga o significado da expressão "comunidade internacional" usada pelo jornalista. "É uma expressão que acho sempre curiosa", observa. Constata que o significado que lhe é atribuído varia em função da situação geográfica do observador e conclui que por tal se designa efectivamente os EUA e mais uma ou outra potência com condições de – e disposição para - intervir em determinadas ocorrências na área geográfica em que se situa o observador, o que acontece cada vez com menos frequência. Nenhuma referência às Nações Unidas e outros areópagos onde fala toda a gente ([2]).
E tem razão. Não se pode com rigor chamar comunidade a uma colecção de estados e nações que prezam mais as suas diferenças do que qualquer eventual semelhança. A comunidade tem cultura própria que inspira aos seus membros a prática da solidariedade entre os vivos e entre estes e os mortos (respeito pela história). Ora, os estados nacionais que têm passado comum são excepção e mesmo esses lêem a história de modos diferentes. O sentimento que se reflecte no comportamento dos estados – com excepção dos europeus e só há alguns anos a esta parte – é o medo que inspiram uns aos outros. Nada menos comunitário. Tão pouco se pode falar de "sistema internacional" pois não se trata - nem se aproxima - de um corpo organizado em função de uma finalidade geral. Poderíamos talvez falar de sociedade dos estados uma vez que, a partir do iluminismo, os estados se tem esforçado por submeter o relacionamento entre si a regras de direito. O direito internacional porém, é facultativo e, raras vezes prevê meios de execução.
A UE tende a omitir-se em questões de segurança. A segurança fundada no MAD extinguiu-se com o muro de Berlim. O caso da Coreia do Norte mostra uma vez mais que os "regionais" não conseguem impedir a proliferação. A consciência de interdependência resultante da globalização da economia é ainda mais recente e não inspirou modelos de gestão integrada. O atraso é ainda maior no que toca ao ambiente, como infelizmente a Conferência de Copenhaga demonstrou agora mesmo.
A predominância persistente de situações reguladas pela relação de forças leva a admitir que os estados nacionais formam um agregado próximo de um modelo social graduado e hierarquizado em termos de poderio (capacidade de controlo) e influência (talento comunicador) dos seus membros. Ou seja, a realidade do universo das relações internacionais é a hegemonia e esta continua a ser o sustentáculo da ordem e a única forma de chegar ao direito.
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A problemática da hegemonia é conhecida. Assim:
- A hegemonia só subsiste se eliminar rivais mesmo os de dimensão meramente regional. Por isso, numa sociedade hegemónica, o relacionamento entre o primeiro e os seus imediatos domina todos os quadrantes, deixando pouco ou nulo espaço para exercício de autonomia por parte dos restantes membros.
- A hegemonia exige agentes obedientes nos vários estados subordinados. Daqui resultam dois tipos de situações: (1) o chefe local fiel à lógica hegemónica desentende-se com os seus e, se persiste, descamba em tirano sem escrúpulos e o seu regime torna-se "cleptocrático" ou (2) o "chefe" trai o seu protector hegemónico e identifica-se com a lógica local, caso em que a hegemonia se vê forçada a intervir para o corrigir, afastar ou eliminar. Estes dilemas nunca foram resolvidos.
- O problema vital das hegemonias é contudo o seu custo. O sacrifício que impõe é pesadíssimo, tanto em termos humanos como físicos. As mudanças hegemónicas deram-se mais vezes por cansaço do hegemónico do que por obra de émulos portadores de energias novas. A hegemonia americana, no que toca aos sacrifícios humanos, ainda não encontrou os seus mamelucos; no que toca aos custos financeiros, distribui o mal pelas aldeias e pelas gerações mediante inflação e desvalorização do dólar, prática que tem limites. George W Bush e os seus apoiantes não pareciam conscientes de tais limites e favoreceram uma hegemonia intervencionista; já a eleição de Obama – opção pelo estilo conciliador – denota cansaço.
Quanto ao destino político de Obama, admite Cutileiro que ainda não chegaram os dias dos testes cruciais e decisivos. Teremos que aguardar.
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O papel dos BRIC, sobretudo a China e o Brasil de Lula – a grande novidade do dia – é tema que os autores tratam em profundidade. E justificadamente o fazem. No Brasil prevalece o "bom senso" – de resto, sempre prevaleceu ou não fosse povo de extracto cultural lusitano. A relação Brasil--EUA resultará naturalmente em apoio da democracia – mais humana, sem dúvida. Já a relação China-EUA encerra problemas potenciais que poderão afectar o futuro da humanidade.
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No último capítulo os autores fazem uma avaliação da posição de Portugal no mundo. Reconhecem que o país, por força da sua história, dispõe de uma gama de trunfos mais vasta do que a que se oferece a quase todos os outros países; admitem também que a visibilidade portuguesa teria aumentado como resultado de ocuparmos agora lugar na carruagem da UE. JC manifesta contudo a opinião de que no quadro europeu, os pequenos são irrelevantes – a Europa a doze ou a vinte e sete será sempre a Europa dos três e meio (agora com mais um meio que é a Polónia).
JC aprova o uso que demos à ajuda recebida da UE, afirmação que não deixará de constituir surpresa para alguns dos meus colegas economistas com os quais me solidarizo neste particular. Por fim, reconhece que estamos fortemente condicionados pela nossa posição ibérica ([3]).
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Vale sempre a pena ler um livro que nos ensina muito sobre o mundo em que vivemos, sobretudo quando os autores se mostram conscientes da enorme complexidade dos fenómenos internacionais e cientes da insuficiência própria do espírito humano para abarcar e relacionar coerentemente todos os dados inerentes à fenomenologia sociopolítica mundial. Para os que pensam que os problemas do mundo se resolvem pelo pacifismo, pela aposta nos direitos do homem e pelas manifestações explosivas em prol da conservação da natureza – as "almas piedosas", com lhes chama J. C. - o livro constituirá desapontamento. Porém, para os queapreciam um pensamento escorreito, isento de historicismo oco e de construtivismos perniciosos, a leitura do "Visão Global" é altamente recomendável. Além do mais, mostra-nos que a consciência dos limites do nosso conhecimento é ainda a melhor esperança de um progresso científico e social saudável.
Estoril 23 de Dezembro de 2009
Luís Soares de Oliveira
[1] José Cutileiro e Ricardo Alexandre, Visão Global, Prime Books, Lisboa, Novembro 2009
[2] Página 167. Cutileiro afirma que o que sai (resoluções) das NU "revela grande falta de noção de como é que o mundo funciona e .. poderia ter sido enunciado por um grupo de senhoras vicentinas durante um chá em Alcobaça"
Numa pequena povoação, mesmo junto à fronteira entrePortugal e Espanha, a Igreja fica cheia para a missa das 10h: portugueses, espanhóis, o Presidente da Junta, etc.
O Padre começa o sermão:
- Irmãos estamos hoje aqui reunidos para falar dos Fariseus... Aquele povo desgraçado como esses espanhóis que estão aqui...
–Ohhhhhhh!!!!
O maior tumulto tomou conta da igreja. Os espanhóis ofenderam o padre, houve porrada na porta da igreja. O Presidente da Junta levou as mãos à cabeça, indignado.
Acabada a confusão, o Presidente da Junta foi falar com o padre na sacristia:
- Sr. Padre, vá devagar, os espanhóis vêm para este lado, gastam nas lojas, nos restaurantes, trazem divisas para Portugal. Não faça mais provocações.
Durante a semana a conversa entre todos era a mesma: o Padre e o sermão de Domingo. Aquele zum-zum-zum todo foi fazendo com que as pessoas ficassem curiosas e a querer saber mais sobre o que tinha acontecido.
Finalmente, chega o Domingo. O Presidente da Junta chega à sacristia e fala com o Padre:
- Padre, o Senhor lembra-se da nossa conversa, não? Por favor, não arranje nenhum problema hoje, ok?
Vem a missa e o Padre começa o sermão:
- Irmãos . . . Estamos aqui reunidos hoje para falar de uma pessoa da Bíblia: Maria Madalena. Aquela mulher, a prostituta que tentou Jesus, como essas espanholas que estão aqui . . .
Caldeirada geral: pancadaria na igreja, partiram velas nos corredores, chapadas, socos e alguns internamentos no SAP da povoação. O Presidente da Junta foi novamente ter com o Padre:
- Padre, o senhor não me disse que iria com mais calma? ... Se o senhor não amansar, vou escrever uma carta ao Bispo e pedir a sua retirada imediata !
Naquela semana, o tumulto era maior ainda. As conversas eram maiores ainda.Ninguém iria perder a missa do Domingo seguinte nem que a vaca tossisse. Na manhã de Domingo, o Presidente da Junta entra na sacristia com a Polícia e adverte o Padre:
- Sr. Padre, não provoque desta vez, senão acuso-o de provocação de tumulto e vai dentro!! A igreja estava abarrotada. Quase não se conseguia respirar de tanta gente. Começa o sermão:
- Irmãos . . . Estamos aqui reunidos hoje, para falar do momento mais importante da vida de Cristo: a Santa Ceia O Presidente da Junta respirou aliviado . . .
- Jesus, naquele momento, disse aos apóstolos:" Esta noite, um de vocês trair-me-á.”Então João pergunta: “Mestre, sou eu?” E Jesus responde:“Não, João, não serás tu”. Pedro pergunta:“Mestre, sou eu?” E Cristo responde:“Não, Pedro, não serás tu.” Então Judas pergunta:“Mestre, soy Yo? . . .” A PORRADA FOI GERAL !!!!!
Os pássaros não respeitam as fronteiras
- * - * - * -
Esta anedota foi-me enviada por um diplomata amigo que, sem pedir o anonimato nem me dizendo fosse o que fosse nesse sentido, me deixou a liberdade de interpretar o seu silêncio como melhor me parecesse. Pareceu-me conveniente optar pela actual solução em que sou eu a assumir integralmente esta perspectiva de que as relações transfronteiriças sempre foram matéria de alguma subtileza.
Se a evidente crispação transfronteiriça não fosse uma realidade um pouco "urbi et orbi" onde duas culturas geograficamente se tocam, poderiamos tomar esta peça como uma simples anedota. Não creio que o devamos fazer com tão grande simplicidade.
Novo livro do Seixas da Costa: “Uma segunda opinião”.
Seixas da Costa escreve muito bem e é um bem intencionado. A sua ideia é que o multilateralismo é uma espécie de panaceia diplomática: aplica-se a todas as situações, resolve todos os problemas. Esquece-se porém que, no caso do Iraque, o multilateralismo tornou o problema diplomaticamente insolúvel. O multilateralismo deu à França o veto e esta não teve pejo de o negociar por debaixo da mesa com Saddam Hussein. A partir desse momento, o ataque americano tornou-se inevitável.
Ideia louvável parece-me a sua de criar os Institutos regionais. Ele só fala no Europeu; eu falaria do Africano. Importante corrigir o erro que está na origem do ISCSP: - destruiu-se um Instituto com vocação para os estudos africanos do melhor que havia na Europa no género para dar lugar a um Instituto de Ciências Políticas como muitos outros que há por essa Europa. O mais curioso é que esta transformação foi operada em plena ditadura colonialista!
Eu gosto de ler Pulido Valente que considero um dos mais lúcidos observadores da política nacional e que muito nos tem ajudado a compreender a sua especificidade fenomenológica. Mas, desta vez Pulido Valente induziu os seus leitores em erro.
A propósito da situação criada pela aposta atómica iraniana, VPV discute a pertinência como paralelo histórico da tristemente famosa Conferência de Munique 29 de Setembro 1938, [PUBLICO 21/01/06] e diz : O apaziguamento tinha uma lógica que o fracasso fez esquecer. O tratado de Versailles impusera à Alemanha uma paz cartaginesa, universalmente condenada e que a própria Inglaterra estava pronta a corrigir. Até certo ponto [difícil de estabelecer], não era extravagante pensar que a reafirmação nacional da Alemanha a pudesse trazer a posições mais moderadas.Só agora sabemos (!) que Hitler queria a guerra desde o princípio, os contemporâneos não sabiam.
A lógica do apaziguamento (appeasement) não pode ter sido, como diz VPV, a vontade britânica de corrigir o erro de tratado de Versalhes e muito menos, como infere, a ingenuidade da diplomacia britânica.
Ao tempo de Munique, a Paz cartaginesa já estava morta e até enterrada. O seu funeral foi a ocupação militar da Renânia [Março, 1936]. Munique só se explica à luz do entendimento tácito que, por mor da eclosão da Guerra Civil em Espanha [Julho, 1936], se estabeleceu entre as burguesias democráticas [e não tão democráticas] ocidentais no sentido de consentir a Hitler mãos livres para neutralizar a URSS de Estaline.
Salvo por este entendimento, a mudança de atitude da Grã Bretanha em relação à Guerra Civil espanhola e outros factos então ocorridos no domínio diplomático quedariam falhos de sentido. Nesta matéria, Hitler a ninguém enganou. Aliás, será difícil acusar Hitler de duplicidade, pelo menos neste assunto. Ele declarou no Mein Kampf que era seu objectivo atacar a URSS e logo que chegou ao poder passou a preparar o ataque. Para o efeito, celebrou o Pacto com o Japão e a Itália de Mussolini. Internamente, obrigou o povo alemão a passar fome, com a célebre política mais canhões menos manteiga. Os contemporâneos estavam cientes destes propósitos e progressos. Uns gostavam, outros não. Em Munique, Chamberlain deixou à disposição de Hitler um milhão de operários e toda a indústria de armamentos checoslovaca [mais avançada ao tempo do que a alemã], elementos indispensáveis para acelerar a montagem da máquina de guerra do III Reich.
Factos desta magnitude e natureza não resultam de acasos, falta de informação, ou pura ingenuidade. Temos que admitir que os participantes na Conferência estavam unidos por um sentimento que [mantiveram oculto] inspirado pelo receio causado pelo expansionismo ideológico-territorial soviético. Chamberlain ter-se-á enganado não foi em relação às intenções de Hitler, mas talvez na avaliação da receptividade da opinião pública britânica à belicosidade anti germânica da oratória de Churchill. O erro de avaliação não foi externo [intenções hitlerianas] mas sim interno [o sentimento atlanticista britânico]. Nesta matéria, Churchill foi mais perspicaz.
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O hábito de explicar a história diplomática à base da ingenuidade dos estadistas e diplomatas é muito próprio de académicos - gente sabida - mas nunca satisfaz os profissionais do ramo. Estes sabem que ingenuidade dos outros é exactamente o factor com que nunca devem contar. E isto foi exactamente o que aconteceu. Com efeito, Veiga Simões, então Ministro de Portugal em Berlim já vinha avisando o governo português, desde o Congresso de Nuremberga, de 1937, que «Quando se forja um exército poderoso sem que um inimigo próximo ou remoto ameace os horizontes e que, para o forjar, se força um povo que ama a mesa em quantidade a dispensar essa quantidade, só se pode ter uma finalidade a GUERRA, A GUERRA OFENSIVA. Poderão os seus dirigentes clamar meios roucos que o seu propósito é a construção da paz. O que eles pensam construir é o Sacro Império e, através dele, ocupar pontos estratégicos que sejam canais de matérias prima e de riquezas, mercados que sejam verdadeiras colónias, aliados que sejam verdadeiros servos»[1].
Estou certo que os diplomatas portugueses continuam a manter o espírito crítico e a não confiar na "ingenuidade dos outros".
Estoril, Janeiro de 2006
Luís Soares de Oliveira
[1] Citado em Correspondência de um diplomata no III Reich, compilada por Lina Alves de Almeida; Mar da Palavra, 2005.
DIPLOMACIA ECONÓMICA CASO ESTUDO N.º 1 UMA INICIATIVA BEM SUCEDIDA Em 1968, exercia eu o cargo de Cônsul Geral em São Paulo quando, por ocasião de uma passagem por Lisboa, fui convocado ao gabinete do então Secretário de Estado do Comércio, Dr. Valentim Xavier Pintado, o qual me explicou que um dos mais graves gargalos da economia portuguesa do tempo se situava ao nível da distribuição dos produtos agrícolas, campo infestado de intermediários cuja acção tinha por resultado o encarecimento do produto no consumidor e o barateamento do mesmo no produtor. Só via uma solução: a instalação das grandes redes de supermercados. Sabendo que os supermercados do Brasil eram controlados por portugueses radicados em São Paulo, pedia-me que os incitasse a montar redes similares em Portugal. Encontrei imediatamente boa recepção junto de Valentim Santos Diniz, Presidente da cadeia Jumbo-Pão de Açúcar. Porém, seu filho Abílio, enviado a Portugal, concluiu que os hábitos de consumo dos portugueses não eram de molde a vaticinar a viabilidade do empreendimento. O abastecimento caseiro era feito por empregadas domésticas, com instruções específicas. Também encontrara resistência por parte do Presidente de CML, General França Borges, o qual considerava o supermercado uma instituição anti-social, pois era uma forma de levar as pessoas a comprarem o que não precisam. A negociação entrou assim num impasse. Não deixei contudo que o assunto ficasse esquecido, mantendo vivo o interesse do Sr. Valentim Santos Diniz com quem conversava frequentemente, graças sobretudo ao facto de frequentarmos o mesmo clube a Sociedade Hípica de São Paulo. Valentim considerava o projecto sob um ponto de vista emocional fazer algo por Portugal mas não queria contrariar o filho. O acaso veio ajudar a desencalhar o assunto. E isto aconteceu quando se deu a visita dos finalistas do ISCEF, entre os quais figurava. João Flores. Embora estudante, Flores geria já um negócio de instalação de balcões frigoríficos. Dispunha por isso de dados reais sobre as práticas e virtualidades do consumidor português, que projectavam um quadro mais animador do que o desenhado inicialmente por Abílio. João Flores e Abílio Santos Diniz entenderam-se rapidamente. Falavam a mesma linguagem. Faltava o espaço físico. O problema resolveu-se durante a visita a São Paulo do Sr. José Manuel de Melo. O Grupo CUF formou uma joint-venture com o grupo Pão de Açúcar e cedeu os armazéns de que dispunha em Alcântara, para instalação da primeira loja. Flores ficou com o quinhão de desempate. Este entendimento nasceu durante uma recepção que ofereci em minha casa aos empresários dos dois grupos e foi ali apadrinhado pelo Governador do Estado de São Paulo, Dr. Roberto de Abreu Sodré, também presente. Xavier Pintado encarregou-se de contornar a resistência do Presidente da CML e a do pequeno comércio. No fim, a CML proporcionou novos arruamentos e alterou o trânsito no local por forma a facilitar cargas e descargas e o acesso do público pagante. O empreendimento foi um êxito, embora os sócios se tenham posteriormente desavindo. [O grupo CUF retirou-se]. Lisboa habituou-se rapidamente a comprar em Alcântara. A visita ao Pão de Açúcar converteu-se em passatempo familiar. Gradualmente, o Jumbo estendeu a sua rede em Portugal e Angola. A economia [e a sociedade] portuguesa conheceu como consequência um grande surto de modernização. O Embaixador Calvet de Magalhães, atento observador da fenomenologia económica, diz, na sua contribuição para o livro Depois das Caravelas, [página 246] que a instalação do Pão de Açúcar em Lisboa constituiu um começo da concretização da nova política económica luso-brasileira e provocou uma verdadeira revolução no sistema tradicional do consumo de produtos domésticos em Portugal. Eu diria mais: na mentalidade dos portugueses. Mas Calvet diz bem, pois foi de facto a primeira cousa concreta que saiu de um relacionamento até então votado ao verbalismo. Apenas um pequeno reparo: a génese do fenómeno descrita no livro não traduz a verdade histórica. A AIP e a FIESP nada tiveram a ver com o assunto, nem me parece que sejam entidades que possam tomar iniciativas ou prestar grande cooperação em matéria de atracção do investimento estrangeiro. É matéria que escapa [e até contraria] a sua lógica existencial. No meu entender, a cousa resultou porque 1. Correspondeu a virtualidades até aí não concretizadas da economia portuguesa, na fase de desenvolvimento em que sem encontrava; 2. A estratégia foi definida a um nível suficientemente alto para reduzir resistências burocráticas e políticas; 3. Houve acompanhamento por um número suficientemente numeroso e influente de participantes e 4. A intervenção da diplomacia limitou-se aos aspectos subliminares, estabelecimento de contactos potencialmente interessantes, selecção dos participantes, motivação dos mesmos, acompanhamento no âmbito oficial deixando à iniciativa privada o desenvolvimento do processo. CASO ESTUDO N.º 2 UMA INICIATIVA NÃO TÃO BEM SUCEDIDA Logo que cheguei a Seúl [1988-1991], como embaixador, procurei estabelecer relações com Kang Jin Gu, presidente da Samsung Electronics. Levava uma apresentação do seu amigo Lun Yoo, embaixador coreano em Lisboa. A Samsung é o grupo económico coreano com maior volume de vendas. O Sr. Kang tinha tido uma boa experiência com a instalação em Alcoitão de uma montadora de televisores, um investimento pequeno, na ordem do milhão de dólares, feito no início dos anos 80. Era então considerado, em termos de retorno de capital, o melhor investimento feito pela Samsung no estrangeiro. O Grupo projectava no final da década de 80 estabelecer na Europa uma fábrica de electromecânica, investimento de grande porte que acarretaria transferência de alta tecnologia. Candidatavam-se a anfitriões da nova fábrica vários países e regiões, sendo os principais concorrentes a Irlanda e a Catalunha. Graças ao golfe consegui multiplicar os encontros com o Sr. Kang e ouvir as suas opiniões sobre as potencialidades dos vários destinos alternativos do investimento da Samsung. Na passagem por Seúl, em 1988, o então Ministro do Comércio, Eng.º Ferreira do Amaral, manifestou grande interesse em captar para Portugal este investimento. Proporcionei o encontro entre os dois, após o que, Portugal passou a figurar na lista dos destinos possíveis, contando à partida com a simpatia do Sr. Kang. Porém, Kang encontrou uma forte corrente interna contrária à escolha de Portugal. Fundamentavam-se os opositores na escassez local de técnicos recrutáveis e no maior afastamento em relação aos centros de consumo situados no centro-norte europeu. Além disso, Dublin e Barcelona ofereciam incentivos financeiros e fiscais que Portugal não poderia igualar. Outro aspecto, e talvez o mais importante, era o instinto gregário dos coreanos. Para qualquer empresa coreana, o destino mais favorável para o seu investimento externo é aquele que reúne condições para atrair maior número de outras empresas coreanas, mesmo que concorrentes entre si. A montadora de televisores em Portugal fora uma história de sucesso, sem dúvida, mas uma árvore sobretudo quando pequena não faz a floresta. Dava-se a circunstância de Kang ser o único Presidente de uma empresa do grupo Samsung e logo uma das maiores que não era membro da família do fundador, Lee Byung Chull. Daqui derivava o seu grande prestígio, mas também a sua vulnerabilidade. Procurei multiplicar os motivos para manter o interesse do Chairman Kang, propondo-lhe alguns exercícios. Kang promoveu a constituição do comité luso-coreano na Federação das Indústrias da Coreia e assumiu a sua presidência. O comité promoveu um seminário sobre investimentos em Portugal, no qual Kang expôs aos seus confrades presidentes de empresas as virtudes e potencialidades do nosso país como ponto fulcral do investimento coreano na Europa. Procurava-se dilatar a visibilidade portuguesa aos olhos dos responsáveis pelo investimento coreano na Europa. O exercício resultou na medida em que o Ministro do Comércio coreano decidiu incluir Portugal na lista dos países onde o investimento coreano poderia beneficiar de créditos bonificados da banca coreana. Entretanto Kang visitou a Europa: em Portugal, foi condecorado pelo Primeiro Ministro. O Prof. Cavaco Silva lembrou a propósito que a Samsung tinha sido a primeira grande empresa que decidira investir em Portugal, quando ninguém acreditava na nossa capacidade económica. As negociações para o estabelecimento da fábrica entraram então numa fase mais concreta. Os incentivos fiscais e financeiros portugueses foram sucessivamente dilatados, até se aproximarem do nível da concorrência. Finalmente, Kang conseguiu ultrapassar as resistências dentro do seu grupo e Portugal foi a escolha. A Samsung Electro-Mecânica Portuguesa foi instalada em Ranholas, [Sintra], onde passou a produzir de raiz componentes electrónicos. Este investimento arrastou posteriormente novo investimento da Samsung, em joint-venture com a Texas Instruments, numa fábrica de microchips, instalada na Maia. Nos anos seguintes, a nossa exportação beneficiou largamente destes dois empreendimentos. Os quadros portugueses também: a gestão intermédia da fábrica de Ranholas foi assumida por portugueses treinados na Coreia. Nenhum destes empreendimentos estava porém fadado para longa vida. O mercado mundial de microchips caiu nos finais da década de 90, o que levou ao encerramento da fábrica da Maia. Pior porém, actos de má gestão financeira relacionados talvez com a crise cambial asiática dos anos de 97/98 provocaram a falência da Samsung Electro-Mecânica Portuguesa, que foi encerrada. O abastecimento do mercado europeu deste tipo de produtos passou a ser feito pela Samsung-Hungria. Entretanto, Kang terminou a sua carreira ao serviço da Samsung e foi reformado. O efeito demonstrativo foi negativo. No meu entender o caso apresenta alguns aspectos significantes 1. A estratégia inicial, embora definida ao mais alto nível, foi abandonada quando se deu a mudança de Governo, em 1995. Os novos detentores do poder entendiam que Portugal não reúne condições para atrair IDE e não se interessaram por programas deste tipo. O projecto deixou de ser acarinhado. 2. Falta em Portugal um Código de Investimento que dê um mínimo de garantias, tanto ao investidor nacional como ao estrangeiro. Pior ainda, a lentidão das decisões judiciárias agrava consideravelmente o grau de incerteza e risco próprio do ambiente económico. Em tais condições, o IDE só pode sobreviver quando as autoridades se dispõem a apoiá-lo de forma continuada e empenhada. Tal não aconteceu. Em vez disso, as condições logísticas, laborais e burocráticas portuguesas mantiveram-se rígidas e desfavoráveis ao projecto. 3. A iniciativa não ganhou número suficiente de adeptos. Nasceu e cresceu baseada na vontade de poucos indivíduos. Afastados estes dos seus cargos, a iniciativa não resistiu às vicissitudes do mercado e ao ataque dos que a ela se opunham. 4. Tratava-se talvez de um investimento tecnologicamente muito avançado para a economia portuguesa. No momento em que o gestor estrangeiro saiu, não havia localmente quem fosse capaz de aproveitar as instalações e a tecnologia parcialmente transferida. O avanço tecnológico, tal como a evolução na Natureza, não se faz aos saltos. ESTORIL, JANEIRO DE 2006 Luís Soares de Oliveira