A Lusofonia é um território de tal modo vasto que alguns do seus recantos mais esconsos ficam por vezes esquecidos sob o manto da distância geográfica e política apesar da proximidade linguística. O Papiamento é um dos casos que notoriamente necessita ser divulgado. Trata-se de uma língua crioula que é o principal idioma falado em Aruba, Curaçao e Bonaire.
O papiamento tem a sua origem no pidgin (ou crioulo) português falado pelos judeus sefarditas fugidos do Brasil e pelos seus escravos e também do crioulo de Cabo Verde que alcançou as Antilhas acompanhando os escravos trazidos pelos holandeses, que, no início do séc. XVII, se apossaram do dito arquipélago juntamente com o nordeste do Brasil, onde implantaram a Nova Holanda sob o comando de Maurício de Nassau.
Após a retoma portuguesa de Cabo Verde e da Nova Holanda, alguns judeus sefarditas portugueses daquelas ilhas e quase todos os do nordeste brasileiro, temendo o regresso da Inquisição, foram para as Antilhas Holandesas, levando consigo respectivamente o português e o ladino que é a língua falada pelos judeus expulsos da Península Ibérica em finais do séc. XV. Com a administração do império colonial holandês nas ilhas, a influência holandesa legou também muitas palavras do seu idioma ao Papiamento. Por fim, a influência do espanhol ocorre com o contacto com os países vizinhos, especialmente a Venezuela.
O nome procede da palavra papiá, que significa “conversar”, originada da palavra portuguesa papear. Origina igualmente deste verbo coloquial o nome do crioulo de base lusófona de Malaca, na actual Malásia, o Papiá. O verbo papiâ ainda existe no crioulo cabo-verdiano, significando “falar”.
Existem jornais e revistas em Papiamento bem como dicionários bilingues. Embora alguns intelectuais portugueses se tenham interessado pela criação de uma rede de pesquisadores de crioulística que envolva todos os pesquisadores destas manifestações linguísticas mestiças de raiz lusófona, incluindo o papiamento, ainda há muito para descobrir e aprofundar.
Frank Martinus Arion (1936 - 2015) foi um dos maiores poetas das Antilhas Holandesas e foi pioneiro na promoção da literatura e poesia em papiamento. Foi também grande investigador das suas origens. Martinus conta mesmo que “'à época, não poderia ir às ilhas do Cabo Verde por causa de Salazar; então, visitei a Costa do Marfim, Gana e Nigéria. Fui com a minha mulher, Trudi Guda, que realizou uma pesquisa antropológica sobre a literatura oral dos Sranan, Tongo e dos Saramaccaans.” Segundo Martinus, o primeiro papiamento era uma mistura de um crioulo de Mina (derivado do crioulo de Cabo Verde adicionado ao twi) e dos crioulos angolares. O guene vem das colónias de Angola/Congo, da Guiné-Bissau e de São Tomé. Depois os falantes do Papiamentse krioyo (crioulo) sobrepuseram-se aos demais. Mais tarde, com a chegada dos judeus de Cabo Verde em 1674, coincidindo com a importação dos escravos, o guene e o papiamento adquiriram maior importância. Os judeus, por sua vez, falavam um crioulo português um pouco diferente do crioulo urbano. Martinus tornar-se-ia mais tarde Presidente de uma Comissão Governamental para a introdução da sua língua materna (Papiamento) nas escolas das Antilhas Holandesas, existindo vários livros dele à venda na Internet.
Nascido em Curaçao, mudou-se para a Holanda em 1955 donde regressou em 1981.
Viajar com crianças barulhentas é incomodativo, sobretudo para quem não é da família mas se elas se portam bem, então até pode ser agradável.
A criança que ia no banco à nossa frente no voo de Amesterdão para Curaçao dormiu quase toda a viagem ao colo da mãe ou do pai e nem sequer choramingou nas descolagens ou aterragens, o que é frequente por causa das diferenças de pressão e incómodo nos ouvidos. Nos poucos tempos em que esteve desperta, quis naturalmente brincar e os pais deixavam-na pôr-se de pé no banco e fazer brincadeiras com os passageiros de trás, a minha mulher e eu. Especialmente simpática, a criança deixava, contudo, muito a dever à beleza e nós achámos que os orangotangos provavam ali mesmo que somos de espécies muito chagadas.
E a minha mulher e eu comentávamos em voz baixa mas não em surdina que os orangotangos para a direita e os orangotangos para a esquerda e que as espécies eram muito mais próximas do que até então imagináramos... e assim falávamos porque ninguém nos percebia.
Fizemos uma escala em Aruba e mais de metade dos passageiros saiu pelo que fomos apenas alguns a ficar sentados enquanto o pessoal da limpeza rápida fazia o seu trabalho e os novos passageiros para um voo de 18 minutos entravam e completavam novamente o avião.
Mas quando uns que saíam passaram pelos que estavam à nossa frente e se despediram, os nossos vizinhos responderam em papiamento com toda a clareza da origem portuguesa da sua fala «Vai trankilo, amigo!».
Estarrecidos com a hipótese de eles nos terem ouvido (muito improvavelmente) e compreendido (muito provavelmente), a minha mulher e eu descarregámos o peso das nossas consciências com a alegria de descobrirmos uma fala quase igual à nossa numa terra que nunca foi nossa mas que se é hoje uma região autónoma da Holanda, aos nossos o deve.
Sim, foi um judeu de origem portuguesa de seu nome Moisés Frumêncio da Costa Gomes que na primeira metade do séc. XX conseguiu fazer com que Curaçao deixasse de ser uma colónia holandesa para passar a ser uma região autónoma e que a Holanda tivesse que mudar de nome oficial para Reino Unido dos Países Baixos e Curaçao.
Também por lá era feriado naquele 25 de Abril quando tentei visitar a sinagoga de Wilhelmsatdt, a capital, sede da colónia dos judeus portugueses, mas estava fechada e só falei com o porteiro que se lastimou por não me poder ser de alguma utilidade. Que o Senhor Maduro, o chefe da comunidade e principal banqueiro local, não ia lá naquele dia; que passasse lá no dia seguinte e seria por certo recebido por alguém. O dia seguinte era o do regresso a Portugal, não falei com ninguém daquela comunidade. Mas tudo começou com o Padre António Vieira...
Desta minha viagem a Curaçao restam-me várias recordações agradáveis sendo que a mais importante é a de que se falarmos português pausadamente e em frases simples, eles fazem um esforço e compreendem respondendo no seu papiamento que, se falado também pausadamente e em frases curtas, nós também acabamos por perceber. Não dará para dissertarmos sobre a filosofia kantiana ou sobre o papel do FMI na crise do Bangladesh mas dará por certo para pedirmos um café ou um bolo e sabermos quanto temos que pagar.
Moisés Frumêncio da Costa Gomes, o judeu de origem portuguesa que conseguiu integrar Curaçao na Holanda com o estatuto de Região Autónoma assim deixando de ser colónia
Dando muito trabalho duvidar do que nos dizem os guias turísticos, façamos de conta que aceitamos a ideia de que Curaçao vive exclusivamente do turismo e importa tudo o que consome. O nosso «faz de conta» é tão maior quanto o país nem sequer é paraíso fiscal para ninguém.
Mas é claro que tem uma comunidade emigrante relativamente grande cujas poupanças ajudam a equilibrar a balança de pagamentos e a economia paralela também lá deve ir fazer turismo gozando as delícias tropicais. Disso desconfiei quando certa vez estávamos a jantar por cima da praia do hotel e começámos a ver um avião com um enorme holofote a percorrer a zona costeira desde a capital até ao extremo oeste da ilha, ponto em que nos encontrávamos. Passou por nós umas 3 ou 4 vezes e... não li as notícias no dia seguinte e o pessoal do hotel não me soube esclarecer do que se tinha ou não passado. Continuo a acreditar que também ali não se pesque ao candeio usando aviões.
A pesca é artesanal e não vi nenhum barco com mais de 4 metros de comprimento. Mas vi atuns à caça de peixes voadores. Para quem nunca tinha visto um atum fora da lata, achei muito interessante. E vi outra coisa que nunca pensei que existisse. Um barquito com 3 homens andou a pôr uma rede de emalhar mesmo por baixo da arriba em que o meu apartamento estava alcandorado. Um dos tripulantes estava equipado com óculos e respirador para snorkling (nadar à superfície com a cara dentro de água para ver os peixes, os corais ou o mais que lá estiver), outro era o remador e o terceiro devia ser o patrão pois vi-o dar ordens. O nadador desceu calmamente do barco e pôs-se a snorklar junto da rede e a certa altura começou a bater fortemente com os braços na água. E eis que o patrão se chega junto da rede, a começa a puxar à mão para fora de água e a apanhar os peixes que acabavam de ficar presos. Foi num instante que o fundo do barquito ficou cheio de peixes aos saltos. Entretanto caiu a noite e creio que a pescaria se ficou por ali. Mais artesanal do que isto nem talvez os indígenas da Papua Nova Guiné...
À boa maneira lusa, os nossos compatriotas estão sobretudo estabelecidos com supermercados pelo que ficamos muitas vezes sem saber se os escritos estão em papiamento ou em português. «Entrada», «Fruta barata», etc. dão para que fiquemos sem saber em que língua escrevia o autor. Na certeza, porém, de que todos esses comerciantes têm hortas onde produzem uma parte dos frescos que vendem nas suas lojas. Mas devem ser mesmo hortas de pequena dimensão pois não vi nada que se pudesse assemelhar a empresas agrícolas de dimensão sequer mediana. Parece que essas hortas são a única agricultura que actualmente existe em Curaçao. O que os portugueses não produzem e querem vender, importam. Sim, parece que o comércio de víveres é quase todo nosso. Quase todo mas não todo pois há o mercado flutuante em Wllemstad, a capital, constituído por venezuelanos que produzem (ou compram) no continente os frescos que a ilha não produz. E é curioso saber que esses comerciantes-mareantes fazem a viagem pelo menos uma vez por semana num percurso que pode demorar entre 6 a 12 horas conforme o ponto da costa venezuelana a que aportam. Fiquei com motivos suficientes para desconfiar que o avião do holofote andaria à coca dum ou de vários destes venezuelanos. À conversa em surdina que um desses mareantes me fez respondi apenas «no entiendo» e pisguei-me antes que ele me quisesse explicar aquilo que eu não queria entender.
Do outro lado do estreito que acede à baía, estava impante o paquete “Europa” que despejara um milhar de turistas na cidade cujo comércio abriu apesar de nesse dia, 25 de Abril, ser feriado.
Angola, país rico, transfere o Domingo de Páscoa para a 2ª feira imediata pois é um sacrilégio fazer feriado em fim-de-semana; Curaçao, a ilha inútil que os espanhóis desprezaram, faz feriado na 2ª feira imediata à Páscoa para celebrar em estilo carnavalesco o que no Domingo celebrou canonicamente.
João Calvino ficaria muito triste e o Padre António Vieira muito contente se soubessem que 85% da população de Curaçao é católica.
E quem ensina português aos filhos dos donos dos supermercados?
Por mera curiosidade, recordo que Peter Stuyvesant saiu de Curaçao em 1643 porque numa tentativa da conquista de St. Maartens aos espanhóis levou um tiro de canhão numa perna tendo que ir a tratamento à Holanda. Puseram-lhe uma perna de pau que ele fez revestir com placas de prata e foi já recuperado que o nomearam para a conquista de uma ilha lá mais a norte. Conquistada, chamou-lhe Nieuw Amsterdam. Nós hoje chamamos-lhe New York e à ilha propriamente dita chamamos Manhattan.
E seguiram-se outros Governadores à frente dos destinos de Curaçao até que o Padre António Vieira proferiu na Igreja da Ajuda, em Salvador da Bahia, o sermão “Polas armas de Portugal contra as de Holanda” assim provocando a Revolta Pernambucana que expulsou definitivamente os holandeses do Brasil. O Governador do Brasil Holandês, Maurício de Nassau, apanhou uma depressão de tal modo profunda que nunca dela voltou a recuperar acabando por morrer muito transtornado na sua Alemanha natal.
Por deturpação histórica, o Príncipe alemão Maurício de Nassau é por vezes apresentado como um pirata enquanto o inspirador do «pirata da perna de pau, olho de vidro e cara de mau» passa por um grande e nobre Senhor. Tresler é mais fácil do que contar a verdade. A questão está em que o Príncipe perdeu a causa por que pugnava e o coxo, perdendo uma ou outra batalha, ganhou as guerras em que se meteu.
Mas o Brasil Holandês era refúgio de muitos judeus portugueses que temeram o regresso da Inquisição pelo que decidiram acompanhar os holandeses na fuga. Rumaram a norte e se os houve que chegaram a Nieuw Amsterdam, outros houve que optaram por outra possessão holandesa, bem tropical, Curaçao. Chegaram em 1703 e ainda hoje são uma comunidade da maior relevância local. Basta referir que o banco mais conhecido se chama «Maduro and Curiel’s Bank». O apelido Maduro inspira o maior respeito e é um dos seus membros que preside à comunidade frequentadora da Sinagoga “Mikvé Israel-Emanuel” que, consagrada em 1732, é hoje a mais antiga em funcionamento ininterrupto nas Américas.
Sinagoga “Mikvé Israel-Emanuel”
Logicamente, com a chegada dos judeus portugueses, o papiamento levou um importante refrescamento da nossa língua.
E se a importância da comunidade judia tem muitos exemplos que vão neste breve texto ter que ficar no tinteiro, um há que não pode ser omitido: Moisés Frumêncio da Costa Gomes.
Moisés Frumêncio da Costa Gomes
De facto, foi este ilustre descendente de lusa gente que nos finais da década de 40 do século passado negociou com a Holanda a nova relação constitucional entre a metrópole e as chamadas Antilhas Holandesas tendo Curaçao deixado de ser uma colónia para passar a constituir uma região autónoma holandesa.
A autonomia significou que Curaçao assumiu a sua própria governação mantendo a Holanda a liderança das políticas monetária e da Justiça. Daí que a moeda seja o Florim com um câmbio que revela muita prudência.
É perante este câmbio que o visitante rapidamente se habitua a tomar em grande respeito este pequeno país.
Apeteceu-me dizer aos judeus de Curaçao que em Portugal já extinguimos a Inquisição em 1821 e que assim já podem regressar em paz. Só que quando os procurei a Sinagoga estava fechada pois no dia 25 de Abril também lá é feriado e no dia seguinte eu voaria para outras latitudes.
A cerca de 40 quilómetros ao largo da Venezuela, Curaçao parece uma banana com um pouco mais de 60 kms de comprimento, uma largura que varia entre os 3 e os 14 kms e é habitada por cerca de 100 mil pessoas. O respeito que inspira não resulta, pois, da dimensão física.
A tez popular varia entre o negro mais negro que os trópicos alguma vez imaginaram e o café com leite claro. Totalmente escolarizados, os naturais (curacenses?) falam e escrevem quatro línguas (papiamento, holandês, inglês e espanhol) mas têm o papiamento como língua materna. E o que é esta língua? É um crioulo de português salpicado de espanhol e de outras influências nem sempre bem identificadas mas que se diz serem africanas. Nós, portugueses, percebemos praticamente metade das frases e o resto lá vamos tirando pelo sentido da conversa. O facto de a dicção ser especialmente meticulosa facilita a compreensão. Quando não percebemos, lá vem o inglês ou o espanhol. Holandês, vou aprender na próxima encarnação.
Como é que tal realidade acontece num país que nunca foi colónia portuguesa?
A História de Curaçao começa no ano de 1499 com a chegada dos espanhóis; antes disso era a pré-história pois os habitantes que lá existiam – índios oriundos do continente ali mesmo em frente – não deviam conhecer a escrita. Ou seja, não tendo até hoje sido identificados traços desse povo que pudessem ser assemelhados a escrita, presumimos que a não conhecessem e, portanto, apelidamos a sua como sendo pré-história.
Chegados os espanhóis, logo começaram à procura de oiro mas...
O domínio espanhol manteve-se durante todo o século XVI, período durante o qual os indígenas foram transferidos para a ilha Hispaniola (actual Ilha de S. Domingos onde se localizam a República Dominicana e o Haiti) ficando Curaçao a servir de ponte para a exploração e conquista dos territórios no norte da América do Sul.
Mas como não foi encontrado oiro e a água potável era quase inexistente, à medida que avançava a colonização do continente a ilha foi perdendo importância para os interesses espanhóis, foi considerada inútil e abandonada progressivamente.
Foi com a saída dos espanhóis que começaram a aparecer outros cobiçosos e não tardou muito para que os piratas franceses, ingleses e holandeses começassem a defrontar-se para se servirem das diversas baías que a ilha tem para refúgio nos intervalos das intensas actividades que já então desenvolviam em todo o Mar das Caraíbas. E dos confrontos entre piratas foi rápida a passagem para o confronto entre as Armadas dessas três potências o que, diga-se em abono da verdade, pouca diferença fazia. Na realidade, o que distinguia os piratas dos almirantes era que estes custavam dinheiro às respectivas Coroas enquanto que os bucaneiros se auto financiavam e lá iam dando parte dos lucros apurados aos seus Senhores para lhes ganharem as graças. Apesar desta diferença não despicienda, entraram as Armadas em acção e acabou vitorioso em 1621 o almirante holandês Johan van Walbeeck que em 1634 formalizou a entrada da ilha na posse da Companhia Neerlandesa das Índias Ocidentais, o mesmo é dizer na posse do Príncipe de Orange, ou seja, o Rei da Holanda.
Em 1642, Peter Stuyvesant foi nomeado governador e Curaçao tornou-se num verdadeiro centro comercial holandês desenvolvendo intensas actividades esclavagistas sobretudo na extracção de sal.
Salinas em Curaçao
A mão-de-obra escrava foi abundantemente fornecida por comerciantes portugueses os quais recrutavam também os capatazes que administravam o trabalho desenvolvido nas salinas. Ou seja, eram portugueses que lidavam com os escravos e era em português que as ordens eram dadas.
Eis como um território que nunca foi português, tem uma língua oficial que nós entendemos com alguma facilidade. Mais: os próprios curacenses (será assim que se diz?) entendem português desde que falemos pausadamente, sem erudições pretensiosas e, sobretudo, com dicção clara.
Como havemos de fazer para lhes darmos algum enquadramento lusíada?