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A bem da Nação

A MORTE DE FIDEL CASTRO

HSF-Fidel e o seu Cohiba.jpg

 

O mundo acordou dia 26/Nov. com a notícia da morte de Fidel Castro. Era de se esperar uma grande repercussão, afinal, a história do ditador, além de estar ligada à história dos movimentos revolucionários latino-americanos, está fortemente imbricada com a história da maior potência do ocidente, os EUA (Estados Unidos da América).

 

O pequeno parágrafo que acabei de escrever acima já seria suficiente para suscitar uma discussão interminável sobre duas palavras: ditador e revolucionário. A maioria das pessoas verá nelas uma contradição, pois "ditador" é algo tido unanimemente como ruim (ao menos supostamente) enquanto que "revolucionário" é tido pela maioria das pessoas como algo bom. Isso porque o mundo ocidental vive uma revolução cultural promovida pelos agentes do marxismo cultural que já dominam quase que totalmente as instituições de ensino, os meios de comunicação social e a Igreja Católica. Por conta disso, as pessoas têm, já naturalizados, concepções impostas sobre determinadas palavras. Revolução é uma delas. No universo da lusofonia, Bluteau regista a palavra na primeira quadra do século XVIII ainda com um possível significado de volta a uma situação anterior, no sentido de recompor um ordenamento, baseado na ideia de revolução dos corpos celestes e na tradição. Mas também regista o significado de mudança. Se entendermos que uma volta ao passado, nesses termos, estará marcada por uma mentalidade presente que pode corromper o modelo original e que a mudança pela mudança, em si, leva ao vazio do relativismo, verificaremos que revolução é, aprioristicamente, algo ruim. Se entendermos revolução com o significado que a palavra tem na actualidade, já bosquejado por Bluteau, mas acrescentada e associada à ideia marxista de ruptura total com as estruturas existentes para a construção duma sociedade baseada em novos alicerces, é algo pior ainda, pois quando as estruturas anteriores são totalmente destruídas, perde-se, sob qualquer ponto de vista, tudo que vem de antes, seja bom ou ruim. Mas nenhuma dessas considerações muda a percepção que a maioria esmagadora das pessoas no mundo hodierno tem acerca da palavra "revolução", que é entendida sempre como algo bom. Assim é, infelizmente, queiramos ou não. É um dado da realidade. Pois bem, Fidel foi um revolucionário, no conceito moderno da palavra. E, como tal, deixou um rastro de destruição.

 

Então, deixemos de lado os prolegómenos e vamos directamente tratar daquilo que o título sugere.

 

Fidel Castro nasceu numa Cuba ainda vivamente marcada pela derrota de 1898 onde os EUA, ao vencerem a Espanha, ficaram com uma influência maior sobre Cuba, além de terem ficado com o domínio de Porto Rico, Ilhas Guam e Filipinas, enfim, uma verdadeira tragédia para o mundo hispânico. Esse cenário fez com que Fidel trouxesse, "do ventre", uma mentalidade anti-americana (no sentido de anti-estadunidense) ainda que mesclada com uma grande admiração, haja vista que independentistas cubanos contavam com a simpatia dos Estados Unidos para sua causa. Sucede que o processo de independência de Cuba aconteceu concomitante com a guerra hispano-americana. O resultado é que Cuba nasceu sob o jugo dos EUA. Ressalve-se que, apesar de, originalmente, Hispânia poder ser afecto também à Portugal, faço uso do termo de forma alusiva tão-somente à Espanha moderna na sua territorialidade e zona de influência política, cultural e linguística, em todo mundo, termo cunhado historicamente e devidamente aceito como demonstra o uso corrente da palavra, e que não inclui o mundo português.

 

A partir da independência, Cuba passa a ser governada por representantes das oligarquias locais, aliadas aos interesses dos EUA. A vitória do liberalismo em Espanha, consequência do iluminismo e da Revolução Francesa, de há muito tinha moldado governos com a ideia distorcida do que era monarquia. Governos centralizados num ambiente cultural como o espanhol produziram, na América Hispânica, caudilhos e chefetes que conduziram processos políticos autoritários rumo à independência onde as elites decaídas estavam descoladas da sociedade tal como um corpo estranho, inorgânico. Ainda assim as instituições ocidentais continuaram, em essência, preservadas.

 

Fidel Castro cresceu num ambiente de grande desconfiança em relação "grande irmão" do norte e, educado por jesuítas, assimilou todo o sentimento de revanche presente entre os inacianos, ordem que, embora tenha religiosos de várias origens, sempre foi alinhada com os interesses castelhanos desde sua fundação. Com efeito, os loyolistas viram a Grande Armada ser derrota pela velha Albion em 1588, viram os estadunidenses tomarem mais da metade do território do México em meados do século XIX e, outro grande desastre, a derrota de Espanha para os EUA em 1898, como já referimos acima, derrota que abalou e feriu de morte o orgulho hispânico e, mais uma vez, para o inimigo de sempre, os ingleses e seus descendentes no novo mundo. Está nesse sentimento de recalque dos hispânicos o alimento para o que viria a ser o movimento "anti-imperialista". Os jesuítas trataram de manter esse sentimento vivo através de todas as suas instituições de ensino na América Latina. Pouco antes do nascimento de Fidel, resulta vitoriosa a Revolução Russa. As ideias socialistas influenciarão fortemente a formação dele.

 

A revolução que levou Fidel ao poder teve, de início, o apoio de toda a sociedade. Havia uma grande insatisfação com o regime de Fulgêncio Baptista. As classes médias e a burguesia cubanas apoiaram, maioritariamente, Fidel. Mas esse cenário não daria a ele o embate que queria com os EUA. Nesse sentido, a ideologia marxista-leninista foi o meio que ele teve ao seu alcance para expressar esse antagonismo. Fidel já vinha de uma militância em partidos de esquerda e sua radicalização seria algo natural, principalmente quando um potencial grande aliado se aproximou: a URSS (União das Repúblicas Socialistas Soviéticas).

 

Fidel costumava dizer que a Cuba de Baptista era uma ditadura, um bordel dos EUA, tinha uma economia baseada no mercado negro e o povo na miséria. Na verdade, Cuba tinha vários aspectos de subdesenvolvimento mas era, no contexto latino-americano, um país com indicadores sociais acima da média e que, desde que superasse um sistema político que negava a participação à maioria da população e contasse com instituições mais fortalecidas, tenderia a ter um futuro com muito progresso aproveitando-se das parcerias comerciais com os EUA e com a Espanha. Implantada a revolução, começa um período de repressão com a eliminação física dos opositores mas também de aliados que ousassem divergir do rumo que Fidel dava ao processo político. Fidel instaura um regime comunista totalitário a passa a seguir as determinações de Moscovo que tinha dois objectivos prioritários: estabelecer uma cunha em território próximo aos EUA e exportar a revolução para o resto do continente.

 

O comunismo é um regime totalitário e, como tal, destrói o estado de direito para impor-se. A tentativa da exportação da revolução trouxe consequências para todo o continente. Uma das características da acção dos comunistas é que ela aproveita-se da democracia para corrompê-la e levar o processo político na direcção por eles desejada, infiltrando-se nas instituições e em todos os sectores da vida nacional. Nesse sentido, vale dizer que Gramsci, com sua tese de hegemonização, é o campeão do leninismo pois aperfeiçoou o que Lenine planejara de forma mais rude e tosca. Para o comunista, a democracia é mero expediente táctico para alcançar a estratégia que é a implantação do regime totalitário outrora chamado "ditadura do proletariado". O que Lenine elaborou propondo a infiltração nas fábricas e no exército, Gramsci elaborou com muito mais sofisticação propondo o domínio de todos os segmentos da cultura, meio académico e comunicações. Algumas expressões mais visíveis da praxis Gramsciana são o politicamente correcto, a ideologia de género e o multiculturalismo. Esse processo pressupõe um quadro revolucionário que culmina com a ruptura de todo o quadro político institucional. Ou seja, o estado de direito e as instituições ocidentais, base da democracia, deixam de existir.

 

 

Cabe aqui uma pequena digressão sobre a diferença entre totalitarismo e regimes autoritários do tipo que tivemos na América Latina, antes e depois da Revolução Cubana. A diferença é muito clara. Esses regimes autoritários, alguns deles ditaduras militares, não destruíram o Estado de Direito nem as instituições ocidentais. Em muitos casos, como no Brasil, eles surgiram para impedir um golpe comunista e salvaram a democracia restringindo algumas liberdades para que fossem preservados os direitos mais importantes pois não há democracia sem Estado de Direito ou instituições fortes. Já num regime totalitário, como o cubano, as pessoas perdem seus direitos primevos: o direito de ir e vir, o direito à propriedade, o direito a professar sua religião qualquer que seja ela, o direito de educar seu filho sem a interferência do estado, o direito à inviolabilidade de correspondência e esses direitos nunca foram suprimidos na América Latina à excepção de Cuba. Actos institucionais de excepção nesses regimes autoritários estavam claramente definidos como tal, ou seja, não foram considerados como dentro da normalidade de um arcabouço jurídico. Num regime totalitário, TODAS as instâncias da vida nacional funcionam sob a directriz do governo e do partido único. Os actos de força que restringem as liberdades não são considerados actos de excepção mas, sim, da normalidade do sistema. Os juízes são do partido que governa. Não há independência do judiciário. O parlamento, quando existe, é composto exclusivamente por membros do partido. E o pior de tudo, no regime totalitário não basta não se meter em política para não ser importunado, há que manifestar seu apoio ao governo e denunciar quem não estiver apoiando. Quem não lembra do menino que ganhou uma medalha do Estaline por denunciar seu pai que não entregou a cota de produção agrícola ao Estado? Nos regimes autoritários que tivemos, houve, sim, a supressão da liberdade de expressão e de organização partidária. No mais, tudo diferente. Tomando outra vez o Brasil como exemplo, durante a ditadura militar: os direitos básicos foram mantidos, o judiciário manteve o acesso por concurso e os juízes mantiveram sua independência e autonomia. O judiciário nunca foi aparelhado e tampouco ideologizado. Foram muitas as pessoas acusadas de subversão que foram absolvidas até mesmo por tribunais militares. O judiciário continuou a funcionar normalmente e protegeu sempre os direitos fundamentais dos brasileiros. O parlamento continuou a funcionar e uma oposição continuou a existir. Nunca alguém foi seriamente importunado por ter um parente envolvido em subversão. Nunca algum inocente foi instado a denunciar outra pessoa por crimes políticos. E quem não quis se meter em política, pôde levar sua vida sem sobressaltos ou constrangimentos e prosperar.

 

Cuba tem até hoje um estado policial. Sem instituições que funcionem, porque foram destruídas, os cubanos não vislumbram uma saída que não passe pela intermediação de seus algozes, pois toda e qualquer oposição foi eliminada fisicamente.

 

Enquanto contou com o dinheiro vindo da URSS Cuba manteve-se relativamente estável. Durante esse período de estabilidade, contou também com recursos vindos de Angola, país entregue à URSS pelos comunistas infiltrados no Exército Português que fizeram a quartelada de 25 de Abril. Com a "débâcle" da URSS, Cuba entra em colapso. O país não estava preparado para viver sem essa ajuda e tem uma economia totalmente desestruturada, incapaz de produzir os géneros mais básicos para a população.

 

Qual foi o legado de Fidel Castro para Cuba? Subdesenvolvimento e pobreza à beira da miséria. Tudo aquilo que Castro falava sobre a Cuba de Baptista manteve-se apenas com a troca de "americanos" para "europeus", mormente espanhóis. Cuba é hoje uma ditadura muito pior porque totalitária, é um bordel dos espanhóis, tem uma economia baseada no mercado negro e um povo muito pobre e sem perspectivas pois não houve desenvolvimento económico na ilha durante esses mais de 50 anos. Além disso, existe a exploração de trabalhadores em condições que os esquerdistas taxariam de análogas à escravidão se ocorressem em países capitalistas. Cito apenas um exemplo: empresas europeias contratam engenheiros cubanos para obras na ilha pelos quais pagam, por exemplo, 2 mil euros por mês. Esse contrato é intermediado pelo governo cubano que recebe os 2 mil euros mas só repassa 200 euros aos engenheiros contratados. Cito só esse dado porque é reconhecido pelo próprio governo cubano, não podendo ser contestado. Fora da ilha, o governo cubano procede da mesma forma como quando, por exemplo, mandou médicos para o Brasil num trato com o governo comuno petista de Dilma Rousseff.

 

E as tais conquistas na saúde e educação? Tudo balela. A educação em Cuba contempla somente o lado do adestramento para servir ao regime e preencher algumas funções pré determinadas. Não pode haver um bom sistema de ensino no seu sentido mais amplo pelo simples motivo de que não há pluralidade de ideias e os alunos nos seus diversos níveis só lêem o que o regime permite além de não poderem escolher a sua profissão. A saúde teve progressos no que tange à medicina social e regista algumas ilhas de excelência mas muito abaixo do nível da medicina de outros países latino-americanos e a saúde do povo é agravada pela falta de comida.

 

No Brasil a repercussão da morte de Fidel foi imensa e assistimos dois dias seguidos de propaganda comunista nas estações de TV só interrompida pelo trágico acidente aéreo na Colômbia com os atletas do clube Chapecoense. O avanço da revolução cultural no Brasil com os agentes do marxismo cultural actuando em todas as instituições e frentes possíveis criou uma mentalidade de esquerda principalmente nas classes médias e na burguesia, segmentos mais permeáveis à acção desses celerados. Falaram muito da preocupação de Fidel com os mais pobres e muito "en passant" sobre o regime político. A palavra ditador só usaram quando falaram de Fulgêncio Baptista. Em nenhum momento foi usada para definir Fidel que, para eles, foi um revolucionário preocupado com os mais pobres que cometeu alguns pequenos erros. Pelo que se pôde ver em canais internacionais, foi um pouco assim por toda a parte.

 

A morte de Fidel também expôs tragicamente para o ocidente, de forma definitiva, que Bergoglio tem um projecto político que passa pelo apoio ao comunismo e à tal "Pátria Grande" à qual ele aludiu logo nos primeiros dias como Papa. É a ideia de hegemonização, bem ao estilo gramsciano, de todo o continente baixo influência da Teologia da Libertação, tentativa impossível de conciliar cristianismo com marxismo, em aliança com os comunistas, para melhor fazer vingar o plano de contrapor-se ao bloco capitalista e às nações do hemisfério norte, que Bergoglio julga culpadas por todas as mazelas do mundo subdesenvolvido. Mas essa já é outra história...

 

Às margens da Lagoa Rodrigo de Freitas, da Mui Leal e Heróica Cidade de São Sebastião do Rio de Janeiro, em o dia dois de Dezembro de 2016

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Marcos Levy Pina Gouvêa Crespo

EL PURO D’EL COMANDANTE

 

 

 

Voltando a Fidel Castro, reconheço que se tratava de personagem carismática. Mas não me restam grandes dúvidas de que era um verdadeiro malandro que parece ter mandado matar mais gente do que a ditadura militar do seu antecessor, o boçal sargento Fulgêncio Batista (auto-arvorado em Coronel e em Comandante Chefe das Forças Armadas do seu país) e muitíssimo mais do que a ditadura militar no Brasil. Na ausência de estatísticas fiáveis, fiquemo-nos pelo que se diz.

 

Como já contei noutra crónica (http://abemdanacao.blogs.sapo.pt/na-morte-de-fidel-castro-1747911), a minha tia Amélia Teixeira casou nova com o tio Pairó[1], cubano de origem galega, advogado e que viria a ser professor catedrático de Direito Civil na Universidade da sua Havana natal. E foi por ela que eu soube que a vida em Cuba não era fácil.

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Durante o período de Fulgêncio Batista, a boçalidade reinava e Cuba pouco mais seria do que um parque de diversões – eufemismo de prostíbulo – ao largo da Flórida para americanos à busca de diversão mas gerido com grande intervenção da Máfia. Mas os cubanos viviam. Diga-se em abono da verdade que viviam com as dificuldades típicas de um país gerido por gente iletrada, boçal, complexada e, portanto, tendencialmente violenta.

 

Letrado, Fidel pôs um ponto final nesse cenário.

 

O tio Pairó tinha sido professor de Fidel e, conhecendo-o relativamente bem, atribuía aos americanos a culpa da viragem que ele fez para o comunismo. Lembro-me perfeitamente de ouvir a tia Amélia dizer «o Manolo diz que o Fidel não era comunista e que só se virou para a Rússia quando os americanos lhe fizeram a vida negra». E nós, conhecendo o tipo de raciocínio hermético do americano vulgar para quem o mundo é a América e tudo o mais não passa de arrabaldes desprezíveis, estamos mesmo a ver como o caldo se entornou: Fidel fez um Inferno aos negócios da Máfia em Cuba, a Máfia queixou-se ao Governo Americano e este fez um Inferno a Fidel. Não era que a Máfia mandasse no Governo Americano; este apenas pensou que os interesses americanos estavam a ser prejudicados em Cuba e não quis saber de mais nada. A partir daí, todos conhecemos a História...

 

E o que foi a revolução cubana? Muito simplesmente, o alastramento do Inferno a toda a sociedade. Os adeptos do comunismo tecem loas à educação e à saúde mas esquecem-se do pequeno-almoço, do almoço e do jantar; a louvável expulsão dos americanos mafiosos não foi acompanhada da instauração de uma economia virtuosa que criasse níveis mínimos de bem-estar; pelo contrário, o dogma tomou conta de tudo e a economia colapsou. E como a «pureza» da tirania já perdura há quase 58 anos[2], são várias as gerações de cubanos que não sabem viver se não na miséria. E a alta instrução que obtiveram, aplicam-na gerindo stocks de senhas de racionamento e mantendo relações públicas (vulgo, prostituição) com quem lhes acene com moeda forte já que o ordenado médio mensal equivale (em moeda não transaccionável) a € 5,00 e um engenheiro ganha cerca de € 8,00.

 

E não me venham, comunistas, com a conversa mais do que estafada dos malefícios do bloqueio americano. Esse bloqueio não passou de um bluff infantil só «para inglês ver» pois estava super furado pelos próprios americanos disfarçados de canadianos e os outros países cooperaram sempre com Fidel. O problema tem sido um e um só: o modelo económico comunista não funciona e, portanto, não presta. Vi com os meus próprios olhos, não emprenhei de ouvido.

 

E foi por causa do desastre do modelo que muitos cubanos optaram por mandar a «pureza» às urtigas e fugiram em botes, jangadas e câmaras-de-ar devidamente insufladas; os outros, esperaram pelo fim do puro d’el Comandante, esse que não precisava de esperar pelo fim do mês para fumar charutos.

 

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 El Comandante y su puro

E agora?

 

Agora, a ver vamos como dizia o ceguinho. Como assim? Quem é que já viu um comunista abandonar o poder voluntariamente ou em resultado de eleições livres?

 

Não tenho uma bola de cristal que me informe dos passos seguintes em Cuba (nem fora de Cuba) mas creio que tudo terá que ser construído a partir do zero pois o comunismo destruiu completamente a sociedade civil, assim destroçando a Nação cubana que, das duas, uma: ou vive no Partido em obediência cega ou fora dele, numa clandestinidade mais ou menos literal e rigorosa.

 

O sucessor do «tio Manolo» na cátedra de Direito Civil (será que ainda existe?) na Faculdade de Direito da Universidade de Havana vai ter muito trabalho a descodificar as normas partidárias para que, um dia no futuro, Cuba discuta democraticamente um renovado quadro legal e possa finalmente ser aquilo que nunca foi verdadeiramente: um Estado de Direito. Um dia...

 

E que os mafiosos se mantenham à distância.

 

Novembro de 2016

 

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Henrique Salles da Fonseca

 

[1] Manuel Diaz Pairó - Universidad de La Havana, Facultad de Derecho

[2] - Fidel Castro chegou ao poder no dia 1 de Janeiro de 1959

NA MORTE DE FIDEL CASTRO

 

 

Gulag castrista.jpg

 

CUBA, HASTA LUEGO!

 

 

Manuel (Manolo) Pairó era um jovem advogado cubano de origem galega. Casou com uma portuguesa cuja família era proprietária de uma famosa livraria de Lisboa e assim se manteve por cá até que foi convidado para leccionar na Universidade de Havana.

 

Zarpou do Tejo e saltitou de porto em porto até chegar ao destino. Instalou-se, começou a dar aulas e chamou a mulher. Tiveram dois filhos e a vida correu com tanta normalidade que se perderam histórias que nunca entraram na História... até que alguém por aquelas paragens decidiu fazer História e o “Tio Manolo” se ia vendo metido em sarilhos.

 

Fidel Castro tinha sido seu aluno e quando a revolução triunfou, o “Tio Manolo” não foi obrigado a fazer juras, não foi saneado da Faculdade de Direito onde manteve a cátedra de Direito Civil e foi-lhe permitido continuar a viver na casa que em tempos comprara mas que acabava de lhe ser expropriada. Conseguiu autorização para que a filha viesse definitivamente viver para Portugal e que a mulher cá viesse de vez em quando passar umas temporadas mas ele e o filho ficavam lá (como reféns?).

 

E que perspectivas podia haver para um jovem talentoso para o mundo empresarial num país que banira a actividade privada e expurgara o lucro dos objectivos? Tinham que tirar o filho daquela frustração: simularam-lhe uma doença e passado o prazo conveniente encenaram-lhe um enterro; o destino do féretro foi um cemitério ermo algures próximo de uma praia e na primeira noite o “morto” ressuscitou e como que por acaso ou mera coincidência pairava por ali uma traineira que o transportou para o «Inferno» do capitalismo abandonando o «Paraíso» socialista. Até hoje.

 

Os meus tios morreram mesmo de morte natural e sem simulações e quando fui a Cuba pensei neles mas não lhes procurei as campas não arranjasse algum sarilho com que um turista não sabe lidar.

 

Vim a saber mais tarde que o comandante do avião português que nos levou de Lisboa a Varadero era um comunista convicto que juntava a pensão de reforma da nossa companhia de Bandeira ao ordenado da “charter” em que entretanto transportava “gado pagador” ao regime da sua predilecção.

 

A chegada a Cuba foi semelhante à partida de qualquer outro aeroporto num país democrático: “o que trazem?” em vez de “o que levam?”. As máquinas de filmar pouco interesse despertaram à Alfândega; os filmes, esses, foram todos visionados não fosse alguém tentar introduzir no país qualquer veneno poluidor das puras mentes revolucionárias. À minha volta não houve problemas pois os filmes estavam todos como era previsível: como a flor da laranjeira, virgens e em branco.

 

Apanhámos um transporte com uma “guia turística” que nos levou a Havana. Com as dimensões de uma guarda prisional, a fulana falava português com fluência e teve muita oportunidade de o evidenciar pois não se calou um momento durante as duas horas de viagem. A certo momento convenci-me de que o objectivo consistia precisamente em monopolizar a nossa atenção de modo a que não reparássemos em qualquer coisa que o Governo considerasse menos apropriado para ser visto por um estrangeiro, capitalista nojento para cúmulo. Liguei à terra e passei a olhar para tudo quanto era exterior.

 

Não vi nada que me chocasse e confesso que esperava ter um espectáculo semelhante ao que tive em 1961 quando percorri o corredor entre Braunschweig e Berlim com os campos a serem trabalhados à mão por gente demonstrando pouca ou nenhuma motivação. Não, em Cuba não vi nada disso. No que se refere à agricultura, não vi mesmo absolutamente nada. Depois lembrei-me de que a monocultura da cana-de-açúcar devia estar numa época intercalar entre a ceifa e a lavra e por isso o vazio completo a perder de vista até ao horizonte. Portanto, vi campos vazios com edifícios paralelipipédicos com dois ou três pisos e janelas corridas de uma ponta à outra no meio do nada que – vim a saber por outro “guia turístico” – eram escolas. Pode ser que um dia eu venha a perceber a razão pela qual se instala uma escola a quilómetros de distância do povoado mais próximo. Por agora, mantenho a incógnita.

 

Chegámos a Havana e a sensação que tive foi a de que chegáramos logo depois de um grande bombardeamento aéreo, de tão degradado o parque imobiliário. Pudera, as casas tinham sido entregues à ocupação popular a título quase gracioso e deixaram de gerar os rendimentos necessários à imprescindível conservação. Estas concepções políticas poderão ter grandes fundamentos filosóficos de justiça social mas a verdade é que conduzem a uma flagrante degradação da qualidade de vida e com isso se esvaem as lógicas engendradas em gabinetes de professores de filosofia política que nunca pensaram ganhar a vida em função do seu real contributo para o Produto Nacional Bruto. É claro que bastaria pouco tempo para reabilitar Havana mas duvido que isso fosse compatível com a manutenção do actual regime de propriedade. Aliás, nós em Portugal, tivemos um regime de arrendamento urbano tão especial que não podemos ainda hoje cantar de coxixo a plenos pulmões.

 

Mas há edifícios em bom estado de conservação, nomeadamente os que têm vocação turística pois aí estamos nós, os turistas, a pagar para que isso seja possível.

 

Ficámos no “Hotel Nacional”, os nossos quartos tinham acabado de ser renovados, tudo cheirava a novo e a qualidade era o timbre predominante. O que não cheirava a novo era o “botones” que nos ajudou a levar as malas para os quartos pois em qualquer outro país já estaria reformado há uns anos. É claro que não o deixei pegar nas malas mais pesadas e deixei-o com a carga leve para ter a certeza de que o velhote não caía para o lado com um enfarte do miocárdio. Mas quando chegámos ao quarto, a minha mulher constatou que não tinha moedas e que a nota mais pequena era de dez dólares americanos. Foi aí que o velhote ia tendo um ataque de coração pois com essa gorjeta recebeu o equivalente a dois vencimentos mensais. É claro que nunca mais nos largou durante a nossa estadia no hotel e deve ter sido ele – e não o Comité Central do Partido Comunista Cubano – que espalhou a notícia de que éramos os maiores do mundo pois todo o pessoal se desfazia em sorrisos e mesuras.

 

O jardim do hotel dá para cima do Malecón, a marginal mais badalada de Havana que passa por ser a montra das “relações públicas” da cidade. Este, o eufemismo para prostituição, expressão a que não deixo de reconhecer uma certa lógica semântica. Nesse mesmo jardim estão os canhões que em 1898 defenderam a cidade da invasão durante a Guerra hispano-americana e para ele dão as galerias envidraçadas que em tempos foram assiduamente frequentadas por Ernest Hemingway, Pablo Casals e várias estrelas do music-hall que ali têm fotografias dedicadas ao hotel. Nada lá consta quanto à presença ou ausência de Guilhermina Suggia então casada com Casals. Mas é sabido que por lá passou.

 

Sublime, o aspecto da alimentação mas alguns produtos totalmente sensaborões a dizerem-nos que tinham mais congelamento do que o previsto inicialmente. A pianista que acompanhava o jantar era da mesma geração do “botones” das malas, tocava muito bem, interpretava uma música a condizer com a nacionalidade dos turistas presentes mas, disseram as Senhoras que são disso observadoras, tinha as meias rotas. Não fora o grupo etário da artista e quem repararia nas meias seríamos nós, os homens.

 

Um dia, Havana voltará a ser uma cidade linda...

 

Voltámos para Varadero e instalámo-nos num hotel espanhol com tudo incluído e de fita verde no pulso a significar que éramos gado daquele curral e não de outro.

 

Varadero é uma península na costa norte de Cuba, está completamente lotada com hotéis e nela se passeia com total à-vontade. Só que no istmo há uma fronteira e só lá entra quem tem autorização para tal. Não é qualquer um que lá entra: ou se é turista encartado ou, sendo cubano, tendo um contrato específico de trabalho num dos hotéis. Chocante, esta separação. É nestas situações que me lembro de que os comunistas, quando cantam hinos à liberdade o fazem como um louvor à liberdade de nos mandarem prender, aos outros que não somos comunistas.

 

Nunca vimos tantos canadianos. Aliás, um pouco por toda a parte em que se via alguma cooperação externa, já tínhamos reparado numa profusão enorme de bandeiras canadianas. Foi aqui que começámos a admitir que estes deviam ser...  “canadianos do sul” ou, por outras palavras, gente natural de algures a sul do Canadá. «A bon entendeur...». E houve uma banhista dessas que achou conveniente falar comigo em francês para me convencer de que era canadiana. Só que os canadianos francófonos têm um sotaque inconfundível e então é que eu fiquei mesmo com a certeza de que todos aqueles «canadianos» eram mesmo desses, dos do sul.

 

Já em Havana tinha olhado para os cavalos dos trens dos circuitos turísticos e reparado nos pescoços formidáveis que todos tinham. O resto poderia ser um monte de ossos e peles mas os pescoços eram notáveis. E quem sabe alguma coisa de cavalos, sabe que o pescoço é uma parte fundamental da anatomia equestre não só na perspectiva estética mas principalmente na funcional. Em Varadero, confirmei que as pilecas de aluguer tinham pescoços muito bons mas abstive-me de as alugar ou sequer de lhes tocar pois vi que tinham umas peladas muito pouco convidativas à vista e por certo contagiosas ao tacto. Bastava olhar para os cães completamente carecas com que nos cruzávamos na rua para sabermos que se tratava de tinha. Já não fui a tempo de impedir no hotel uma criancinha turista de afagar um cachorro adorável cheio dessas peladas e não consigo imaginar quantos turistas alugaram cavalos e ficaram com o rabo tinhoso. Pelos exemplos que ostenta, o regime cubano pode não propagandear muito bem o comunismo mas propaga por certo a tinha com grande eficácia.

 

Foi de Varadero que partimos para duas itinerâncias bem interessantes.

 

De autocarro fomos à Baía dos Porcos. Lembram-se da tentativa de invasão americana nos idos de 60 do século passado? Tomámos banho nessa baía, desistimos de perder o pé e ficámo-nos com água pelo meio do peito à conversa com os vendedores ambulantes que estão proibidos de fazer o seu comércio em terra mas que aproveitam uma lacuna da Lei que não os impede de o fazer dentro de água. E eu que julgava que nós, os portugueses, é que éramos os grandes mestres na descoberta das lacunas legais... Água excessivamente quente para conseguir ser agradável. Foi no regresso que passámos por uma “finca” modelo sem nada de assinalável a não ser um sumo não alcoólico da cana-de-açúcar exprimido à nossa frente e a possibilidade que se me ofereceu de escarranchar um enorme boi zebu ali posto para a fotografia. Não posei mas, em compensação, pedi ao fulano que me deixasse dar uma volta à guia. O movimento é muito diferente do do cavalo. No cavalo nós montamos em cima dum arco côncavo; no boi não cheguei a perceber como era o movimento e nem sequer tive prazer.

 

De avião fomos a Caio Largo – ao largo (passe o pleonasmo) da costa sul de Cuba quase a meio caminho da República Dominicana – num trireactor «Yak 40» de fabrico russo com capacidade para uma trintena de passageiros. O catering servido a bordo consistia num copo de água e num rebuçado; a camarada hospedeira deve ter engraçado com o meu bigode e tive direito a dois rebuçados e um segundo copo de água pelo que desse modo tive catering duplo. O avião é bem giro mas vim a saber mais tarde que aqueles aviões foram pensados para voar sobre as nórdicas estepes russas e que as adaptações aos trópicos não foram muito bem sucedidas pelo que de vez em quando há um que vem cá parar a baixo mais depressa do que o previsto. Não foi o que aconteceu nesta viagem e até tivemos oportunidade de bordejar dois cúmulos, coisa que nunca tinha feito com tanta emoção. No destino navegámos num catamaran de grande luxo nada tendo a ver com qualquer regime socialista, almoçámos num restaurante sobre uma praia de coral que nos espantou porque achámos que a “areia” era fria e comemos lagostas acabadas de pescar que não se justifica repetir de tão sensaboronas.

 

Finalmente – até porque o relato já vai longo e não gosto de extensões narrativas – notei uma clara diferença entre os cubanos que trabalham na hotelaria e os outros pois vê-se que os primeiros almoçam e jantam todos os dias e os outros... comem as senhas de racionamento.

 

Ah “Tio Manolo”! Bem fez em salvar os seus filhos de tanta miséria. Infelizes aqueles que não tiveram um pai que visse à distância nem se deixasse embarcar em aventuras revolucionárias. Nada disto aconteceu por sua causa mas apesar de si.

 

“Hasta luego, tovarichtch Comandante...“ enquanto isso for dessa maneira, não conte comigo.

 

Henrique Salles da Fonseca

Henrique Salles da Fonseca

 

Nota: tudo isto e muito mais se passou em Abril de 2000

CUBA LIBRE ?

HASTA LUEGO !

 

 

Manuel Pairó era um jovem advogado galego. Seria mais um destinado a perder-se na concorrência do mesquinho provincianismo ou trespassado por alguma bala na iminente guerra civil espanhola. Tentou a sorte em Portugal mas as coisas não lhe saíram famosas pois ser advogado espanhol não era recomendável na nossa ordem quer esta se escrevesse ou não com maiúscula. Casou com uma portuguesa cuja família era proprietária de uma famosa livraria de Lisboa e assim se manteve por cá como consultor editorial de matérias jurídicas e de temas espanhóis. Mas esta não era função que lhe agradasse e eis que lhe aparece um convite para leccionar na Universidade de Havana.

 

Zarpou do Tejo e saltitou de porto em porto até chegar ao destino. Instalou-se, começou a dar aulas e chamou a mulher. Tiveram dois filhos e a vida correu com tanta normalidade que se perderam histórias que nunca entraram na História . . . até que alguém por aquelas paragens decidiu fazer História e o “Tio Manolo” se ia vendo metido em sarilhos.

 

Fidel Castro tinha sido seu aluno e quando a revolução triunfou, o “Tio Manolo” não foi obrigado a fazer juras, não foi saneado da Faculdade de Direito onde manteve a cátedra de Direito Civil e foi-lhe permitido continuar a viver na casa que em tempos comprara mas que acabava de lhe ser expropriada. Conseguiu autorização para que a filha viesse definitivamente viver para Portugal e que a mulher cá viesse de vez em quando passar umas temporadas mas ele e o filho ficavam lá como reféns.

 

E que perspectivas podia haver para um jovem talentoso para o mundo empresarial num país que banira a actividade privada e expurgara o lucro dos objectivos? Tinham que tirar o filho daquela frustração: simularam-lhe uma doença e passado o prazo conveniente encenaram-lhe um enterro; o destino do féretro foi um cemitério ermo algures próximo de uma praia e na primeira noite o “morto” ressuscitou e como que por acaso ou mera coincidência pairava por ali uma traineira que o transportou para o Inferno do capitalismo abandonando o Paraíso socialista. Até hoje.

 

Os meus tios morreram mesmo de morte natural e sem simulações e quando fui a Cuba pensei neles mas não lhes procurei as campas não arranjasse algum sarilho com que um turista não sabe lidar.

 

Vim a saber mais tarde que o comandante do avião português que nos levou de Lisboa a Varadero era – e ainda hoje é – um comunista convicto que juntava a pensão de reforma da nossa companhia de Bandeira ao ordenado da “charter” em que entretanto pilotava e à solidariedade com o regime da sua predilecção para lá transportando “gado pagador”.

 

A chegada a Cuba foi semelhante à partida de qualquer outro aeroporto num país democrático: “o que trazem?” em vez de “o que levam?”. As máquinas de filmar pouco interesse despertaram à Alfândega; os filmes, esses, foram todos visionados não fosse alguém tentar introduzir no país qualquer veneno poluidor das puras mentes revolucionárias. À minha volta não houve problemas pois os filmes estavam todos como era previsível: virgens e em branco (o que é parecido com “virgens e de branco”, como a flor da laranjeira).

 

Apanhámos um transporte com uma “guia turística” que nos levou a Havana. Com as dimensões de uma guarda prisional, a fulana falava português com fluência e teve muita oportunidade de o evidenciar pois não se calou um momento durante as duas horas de viagem. A certo momento convenci-me de que o objectivo consistia precisamente em monopolizar a nossa atenção de modo a que não reparássemos em qualquer coisa que o Governo considerasse menos apropriado para ser visto por um estrangeiro, capitalista nojento para cúmulo. Liguei à terra e passei a olhar para tudo quanto era exterior.

 

Não vi nada que me chocasse e confesso que esperava ter um espectáculo semelhante ao que tive em 1961 quando percorri o corredor entre Braunschweig e Berlim com os campos a serem trabalhados à mão por gente demonstrando pouca ou nenhuma motivação. Não, em Cuba não vi nada disso. No que se refere à agricultura, não vi mesmo absolutamente nada. Depois lembrei-me de que a monocultura da cana-de-açúcar devia estar numa época intercalar entre a ceifa e a lavra e por isso o vazio completo a perder de vista até ao horizonte. Portanto, vi campos vazios com edifícios paralelipipédicos com dois ou três pisos e janelas corridas de uma ponta à outra no meio do nada que – vim a saber por outro “guia turístico” – eram escolas. Pode ser que um dia eu venha a perceber a razão pela qual se instala uma escola a quilómetros de distância do povoado mais próximo. Por agora, mantenho a incógnita.

 

Chegámos a Havana e a sensação que tive foi a de que chegáramos logo depois de um grande bombardeamento aéreo, de tão degradado o parque imobiliário. Pudera, as casas tinham sido entregues à ocupação popular a título quase gracioso e deixaram de gerar os rendimentos necessários à imprescindível conservação. Estas concepções políticas poderão ter grandes fundamentos filosóficos de justiça social mas a verdade é que conduzem a uma flagrante degradação da qualidade de vida e com isso se esvaem as lógicas engendradas em gabinetes de professores de filosofia política que nunca pensaram ganhar a vida em função do seu real contributo para o Produto Nacional Bruto. É claro que bastaria pouco tempo para reabilitar Havana mas duvido que isso fosse compatível com a manutenção do actual regime de propriedade. Aliás, nós em Portugal, temos um regime de arrendamento urbano tão especial que não podemos obviamente cantar de coxixo.

 

Mas há edifícios em bom estado de conservação, nomeadamente os que têm vocação turística pois aí estamos nós, os turistas, a pagar para que isso seja possível.

 

Ficámos no “Hotel Nacional”, os nossos quartos tinham acabado de ser renovados, tudo cheirava a novo e a qualidade era o timbre predominante. O que não cheirava a novo era o “botones” que nos ajudou a levar as malas para os quartos pois em qualquer outro país já estaria reformado há uns anos. É claro que não o deixei pegar nas malas mais pesadas e deixei-o com a carga leve para ter a certeza de que o velhote não caía para o lado com um enfarte do miocárdio. Mas quando chegámos ao quarto a minha mulher constatou que não tinha moedas e que a nota mais pequena era de dez dólares americanos. Foi aí que o velhote ia tendo um ataque de coração pois com essa gorjeta recebeu o equivalente a dois vencimentos mensais. É claro que nunca mais nos largou durante a nossa estadia no hotel e deve ter sido ele – e não o Comité Central do Partido Comunista Cubano – que espalhou a notícia de que éramos os maiores do mundo pois todo o pessoal se desfazia em sorrisos e mesuras.

 Hotel Nacional - Havana 

                    "Hotel Nacional" - Havana

O jardim do hotel dá para cima do Malecón, a marginal mais badalada de Havana que passa por ser a montra das “relações públicas” da cidade. Este, o eufemismo para prostituição, expressão a que não deixo de reconhecer uma certa lógica semântica. Nesse mesmo jardim estão os canhões que em 1898 defenderam a cidade da invasão durante a Guerra hispano-americana e para ele dão as galerias envidraçadas que em tempos foram assiduamente frequentadas por Ernest Hemingway, Pablo Casals e várias estrelas do music-hall que ali têm fotografias dedicadas ao hotel. Nada lá consta quanto à presença ou ausência de Guilhermina Suggia assim como também nada se diz quanto à marca do chá preferido pelo célebre autor de “O velho e o mar”.

 

Sublime, o aspecto da alimentação mas alguns produtos totalmente sensaborões a dizerem-nos que tinham mais congelamento do que o previsto inicialmente. A pianista que acompanhava o jantar era da mesma geração do “botones” das malas, tocava muito bem, interpretava uma música a condizer com a nacionalidade dos turistas presentes mas, disseram as Senhoras que são disso observadoras, tinha as meias rotas. Não fora o grupo etário da artista e quem repararia nas meias seríamos nós, os homens.

 

Um dia, Havana voltará a ser uma cidade linda . . .

 

Voltámos para Varadero e instalámo-nos num hotel espanhol com tudo incluído e de fita verde no pulso a significar que éramos gado daquele curral e não de outro.

 

Varadero é uma península na costa norte de Cuba, está completamente lotada com hotéis e nela se passeia com total à-vontade. Só que no istmo há uma fronteira e só entra quem tem autorização para tal. Não é qualquer um que lá entra: ou se é turista encartado ou, sendo cubano, tendo um contrato específico de trabalho. Chocante, esta separação. É nestas situações que me lembro de que os comunistas quando cantam hinos à liberdade o fazem como um louvor à liberdade de nos mandarem prender, aos outros que não somos comunistas.

 

Nunca vimos tantos canadianos. Aliás, um pouco por toda a parte em que se via alguma cooperação externa, já tínhamos reparado numa profusão enorme de bandeiras canadianas. Foi aqui que começámos a admitir que estes deviam ser . . .  “canadianos do sul” ou, por outras palavras, gente natural de algures a sul do Canadá. «A bon entendeur . . . ». E houve uma banhista dessas que achou conveniente falar comigo em francês para me convencer de que era canadiana. Só que os canadianos francófonos têm um sotaque inconfundível e então é que eu fiquei mesmo com a certeza de que todos aqueles canadianos eram mesmo desses, dos do sul.

 

Já em Havana tinha olhado para os cavalos dos trens dos circuitos turísticos e reparado nos pescoços formidáveis que todos tinham. O resto poderia ser um monte de ossos e peles mas os pescoços eram notáveis. E quem sabe alguma coisa de cavalos, sabe que o pescoço é uma parte fundamental da anatomia equestre não só na perspectiva estética mas principalmente na funcional. Em Varadero confirmei que as pilecas de aluguer tinham pescoços muito bons mas abstive-me de os alugar ou sequer de lhes tocar pois vi que tinham umas peladas muito pouco convidativas ao tacto. Bastava olhar para os cães completamente carecas com que nos cruzávamos na rua para sabermos que se tratava de tinha. Já não fui a tempo de impedir no hotel uma criancinha de afagar um cachorro adorável cheio dessas peladas e não consigo imaginar quantos turistas alugaram cavalos e ficaram com o rabo tinhoso. Pelos exemplos que ostenta, o regime cubano pode não propagandear muito bem o comunismo mas propaga por certo a tinha com grande eficácia.

 

Foi de Varadero que partimos para duas itinerâncias bem interessantes.

 

De autocarro fomos à Baía dos Porcos. Lembram-se da tentativa de invasão americana nos idos de 60 do século passado? Tomámos banho nessa baía, desistimos de perder o pé e ficámo-nos com água pelo meio do peito à conversa com os vendedores ambulantes que estão proibidos de fazer o seu comércio em terra mas que aproveitam uma lacuna da Lei que não os impede de o fazer dentro de água. E eu que julgava que nós, os portugueses, é que éramos os grandes mestres na descoberta das lacunas legais . . .  Água excessivamente quente para conseguir ser agradável. Foi no regresso que passámos por uma “finca” modelo sem nada de assinalável a não ser um sumo não alcoólico da cana-de-açúcar exprimido à nossa frente e a possibilidade que se me ofereceu de escarranchar um boi zebu ali posto para a fotografia. Não posei mas, em compensação, pedi ao fulano que me deixasse dar uma volta à guia. O movimento é muito diferente do do cavalo. No cavalo nós montamos em cima dum arco côncavo; no boi não cheguei a perceber como era o movimento e nem sequer tive prazer.

 

De avião fomos a Caio Largo – ao largo (passe o pleonasmo) da costa sul de Cuba quase a meio caminho da República Dominicana – num trireactor «Yak 40» de fabrico russo com capacidade para uma trintena de passageiros. O catering servido a bordo consistia num copo de água e num rebuçado; como tive dois rebuçados e acabei por pedir segundo copo de água, tive catering duplo. O avião é bem giro mas vim a saber mais tarde que aqueles aviões foram pensados para voar sobre as nórdicas estepes russas e que as adaptações aos trópicos não foram muito bem sucedidas pelo que de vez em quando há um que vem cá parar a baixo mais depressa do que o previsto. Não foi o que aconteceu nesta viagem e até tivemos oportunidade de bordejar dois cúmulos, coisa que nunca tinha feito com tanta emoção. No destino navegámos num catamaran de grande luxo nada tendo a ver com qualquer regime socialista, almoçámos num restaurante sobre uma praia de coral que nos espantou porque achámos que a “areia” era fria e comemos lagostas acabadas de pescar que não vale a pena repetir.

 

Finalmente – até porque o relato já vai longo e não gosto de extensões narrativas – notei uma clara diferença entre os cubanos que trabalham na hotelaria e os outros pois vê-se que os primeiros almoçam e jantam todos os dias e os outros . . .  comem as senhas de racionamento.

 

Ah “Tio Manolo”! Bem fez em salvar os seus filhos de tanta miséria. Infelizes aqueles que não tiveram um pai que visse à distância nem se deixasse embarcar em aventuras revolucionárias.

 

Nada disto aconteceu por sua causa mas apesar de si.

 

“Hasta luego, tovarichtch Comandante . . .“ enquanto isso for dessa maneira, não conte comigo.

 

Henrique Salles da Fonseca

 

Nota: tudo isto e muito mais se passou em Abril de 2000

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