POR QUE RAZÃO CAMILO CASTELO BRANCO DETESTAVA OS BRAGANÇA?
Subsídios para a históriadaSereníssima casa de Bragança
D. António, Prior do Crato
PEDRO DE ALPOEM
Sempre que encontrei este nome ligado à vida aventureira de D. António, prior do Crato, me detive a cismar no honrado homem que se chamou assim.
Pedro de Alpoem era português de rija têmpera. Seguira o pequeno bando de D. António, quando o duque de Bragança, D. João, primeiro de nome, transigiu com Filipe II, por preço que adiante se dirá. Aclamou-o em Santarém; fê-lo benquisto da mocidade académica de Coimbra; seguiu-o na fuga, depois da derrota de Alcântara, até Viana do Minho; e, daí, como o infante se agasalhasse em seguro abrigo, voltou a Lisboa a negociar-lhe a emigração em navio estrangeiro. Colhido de sobressalto nesta diligência, foi posto a tormento. Confessou que viera a Lisboa a fim de arranjar a passagem do príncipe; não lhe arrancaram, porém, as torturas o segredo do esconderijo de D. António. Ameaçaram-no com a decapitação. Pedro de Alpoem subpôs o pescoço ao cutelo do verdugo e pereceu com o segredo do asilo do seu rei. Estremada probidade, que só por si nobilita o seu nome português, aviltado pelo máximo da fidalguia bandeada com o usurpador!
Entristecia-me a minguada notícia que os historiadores nos transmitiram de tão memorável sujeito. E esse pouco foi dádiva de Herrera (Cinco libros de la historia de Portugal, liv. III), de Faria e Sousa (Europa portuguesa, tom. III, part.1, cap. IV), e do opúsculo francês intitulado Brieve et sommaire description de la vie et mort de D. Antoine, premier du nom e dix-huitième roy de Portugal, impresso em Paris, no ano 1629.
Uma vez, folheando a Bibliotheca lusitana, vi o nome e apelido do leal amigo de D. António.
Senti uma dessas raras alegrias que só entendem os que andam a joeirar o lixo dos séculos por ver se acham um certo diamante que a maior parte da gente não trocaria por missangas.
A notícia que Barbosa Machado me deu, rezava assim: Pedro de Alpoem Contador, natural de Coimbra, doutor em direito cesáreo, colegial do colégio de S. Pedro, aonde foi admitido no 1º de Janeiro de 1578. Na universidade pátria regentou a cadeira de Instituta, que levou por oposição a 18 de Outubro de 1572, donde passou à do Código em 2 de Janeiro de 1579. Foi um dos célebres defensores da sucessão da côrte portuguesa a favor da senhora D. Catarina, como também do direito que tinha à mesma coroa o snr. D. António, prior do Crato, por cuja causa morreu degolado. Escreveu: 'Carta ao Duque de Bragança D. João, o primeiro de nome, quando Filipe Prudente entrou em Portugal'. A data é do Seio de Abrahão a 20 de Julho de 1581. Começa: "Obriga-me a escrever a v.exc.ª cá destoutro mundo de verdades e desenganos." Acaba: "Conforme a santa lei deste reino ao qual Deus eternamente tem prometido conservar." É larga, muito judiciosa, e consta de uma forte invectiva contra o cardeal D. Henrique, por dispor que os castelhanos se assenhoreassem de Portugal, e juntamente contra o mesmo duque de Bragança por seguir o cardeal. (Tom. III, pag.553).
Persisti, assim mesmo, na indagação da linhagem de Pedro Alpoem, esperançado em descobrir miudezas que realçassem as feições principais, já de si bastantes proeminentes a caracterizá-lo. Pouco mais esquadrinhei, senão que foi filho de António de Alpoem, e neto de Pedro de Alpoem, e de uma senhora de apelido Caldeira, filha de Afonso Domingos de Aveiro, instituidor da capela de Santo Ildefonso, na igreja de S. Tiago em Coimbra, da qual o justiçado amigo de D. António era administrador [Nota de roda-pé: Nesta capela ainda existe a sepultura com epitáfio dos ascendentes de Pedro de Alpoem, mandada construir por seu avô do mesmo nome em 1514 -- a capela; a igreja é do século X ]; e, como não deixasse descendência, o morgadio passou a seus parentes, filhos deIsabel Caldeira, irmã de seu avô, casada com Estêvão Barradas.
No fim do século XVIII, o possuidor do morgadio de Pedro de Alpoem era Lopo Cabral da Silveira, bisneto de D.Isabel Caldeira. Estas impertinências genealógicas pouco montam na história de um homem que se dispensava de avós ilustres, bastando-lhe a proeza individual e sua de dar a cabeça ao algoz e legar o nome sem mancha ao coração do príncipe homiziado; mas seria hoje em dia brasão aos que procedessem desse egrégio sangue.
D. António cativou na desgraça amigos que lhe sacrificaram haveres, liberdade, honras e vida. Sobrelevam entre outros o conde de Vimioso, o bispo da Guarda, D. Diogo de Meneses, – que o duque d'Ávila mandou enforcar em Cascais, juntamente com Henrique Pereira, alcaide do castelo, – Duarte de Lemos, senhor da Trofa, D. João de Azevedo, António de Brito Pimentel, Diogo Botelho, D. Duarte de Castro, D. Manuel de Portugal, Manuel da Fonseca da Nóbrega, e D. João de Castro, o visionário, que, morta a esperança no filho de Violante Gomes, ressuscitou D. Sebastião na pessoa do calabrês Marco Túlio.
As histórias antigas e também as modernamente escritas pelos snrs. Rebello da Silva e Pinheiro Chagas não mencionam um amigo estrénuo do prior do Crato. Era Martim Lopes de Azevedo, 10º Senhor da casa de Azevedo, hoje representado pelo snr. visconde daquele título, cavalheiro em quem se aliam as altas qualidades do coração com superiores dotes de provada inteligência.
Da inflexível dedicação de Martim Lopes de Azevedo se lembra o príncipe desterrado na Carta latina que escreveu ao papa Gregório XIII, e outrossim no seu testamento impresso nas Provas da historia genealógica da casa real, tom. II, pag. 556.
Era, ao tempo, aquele fidalgo Senhor da vila de Souto de Riba-Homem, e outros senhorios e padroados de igrejas. Bandeou-se com o filho do infante D. Luís, logo que o duque de Bragança ofereceu a sua casa como velhacouto seguro aos embaixadores espanhóis, a quem os partidários do rei português ameaçavam, depois da morte do cardeal-rei.
Perdidas as esperanças, Martim Lopes de Azevedo provou as angústias do cárcere e desterro, até que, volvidos anos, conseguiu perdão de Filipe II, mediante o patrocínio de sua tia D. Leonor de Mascarenhas, que havia sido dama da imperatriz D. Isabel, mãe do rei que lhe perdoou [a mãe de Filipe II foi a princesa portuguesa D. Isabel, filha de D. Manuel I]. Todavia, o mais grosso dos seus haveres em comendas e senhorios nunca mais voltou à casa de Azevedo. Todos os conjurados contra a usurpação, cedo ou tarde, se recobraram, e houveram generosas indemnizações dos reis brigantinos; não assim os descendentes de Martim Lopes, cujo representante em 1874, dos bens dos seus avoengos possui apenas o que a rapacíssima vingança de Filipe II lhe deixou. Entre os netos de D. Arnaldo Boião e os do bastardo de Ignês Pereira não tem havido no decurso de três séculos humilhações de vassalos nem magnanimidade de reis.
Volvendo à supositícia carta de Pedro de Alpoem, aceitemos de seu autor, quem quer que fosse, o bosquejo do duque de Bragança, auxiliar, senão causa primaz, da escravidão de Portugal, da degradação da nobreza, da miséria do povo, do perdimento das colónias e dos atrozes flagelos que se contam pelos dias de sessenta anos.
Sirva este papel de vestíbulo por onde depois entraremos ao arquivo secreto da veniaga que manietou o duque de Bragança aos calcanhares de Filipe II.
Camilo Castelo Branco
Compilado de NOITES DE INSÓNIA, 3º número e 1º volume, de CCB
Por que razão Camilo Castelo Branco não gostava dos Braganças?
Não sei, e agora tento descobri-la.
Manuel Joaquim Pinheiro Chagas
Na "História de Portugal" de Pinheiro Chagas, que foi contemporâneo e amigo – suponho – de CCB, lê-se no volume V, 3ª Ed., 1901, o seguinte (pág. 406):
"A paz de Westphalia (fim da guerra dos 30 anos na Europa central) assustara muito D. João IV; viu-se a braços com o imenso poder da Espanha e desconfiou da fortuna; mas no seu tranquilo egoísmo, D. João IV entendeu de si para si que a revolução de 1 de Dezembro se fizera unicamente para se lhe dar um trono a ele, e para se vindicarem os direitos da sua casa; a questão da independência do reino, da sua autonomia, era uma cousa perfeitamente secundária, que podia pôr-se de parte, logo que se conseguisse o principal, que era reinarem os Braganças, e quanto mais largo fosse o trono melhor.
António Vieira devia por conseguinte tratar do casamento de D. Teodósio com a infanta de Espanha, fazendo sentir aos diplomatas espanhóis que esse era o único modo de reconstituírem a tão apetecida união ibérica, pois que pela força das armas nada fariam.
As condições do casamento seriam que, não tendo el-rei de Espanha filho varão, como nessa época não tinha, lhe sucedessem D. Teodósio e a infanta no trono de Portugal e Castela, mas que, se houvesse filho varão, reinariam os dois em Portugal, separado politicamente, mas estreitamente unido à Espanha por uma aliança ofensiva e defensiva. Se Filipe IV insistisse em não reconhecer a realeza de D. João IV, D. João IV abdicaria logo em seu filho e na infanta.
O padre António Vieira desempenhou-se com grande zelo da sua missão, tratando o negócio com uns jesuítas espanhóis que encontrou em Roma, muito influentes na
côrte do seu país. Depois de lhes encarecer todas as vantagens dessa solução, depois de lhes pintar quão dificilmente conseguiria a Espanha domar-nos, António Vieira mostrava-lhes que esse casamento faria com que a Espanha recobrasse num só dia, e sem derramar uma gota de sangue, o que num só dia perdera, e que cobraria melhor ainda do que o tivera antes de 1 de Dezembro, pois que, por meio deste casamento, Portugal se fundiria completamente com a Espanha, formando deveras um corpo compacto, e a condição única posta por António Vieira a essa união era que fosse Lisboa a capital dessa vasta monarquia!
(Isto parece, ou é, conversa de traidores. Desculpemos António Vieira, que estava num período muito turbado da história de Portugal, quando seria fácil surgirem ideias muito tolas na cabeça dos responsáveis com carácter vacilante. Como sucede hoje em dias, em que tolas ideias surgem na inteligentzia, como "união ibérica", "união europeia", etc.)
(Seguem-se mais duas páginas em que se transcrevem as palavras escritas sobre o assunto por um brasileiro, João Francisco Lisboa, "reflexões" - diz Pinheiro Chagas - "de tal forma acertadas e eloquentes, que estando com ele plenamente de acordo, não hesitamos em substituir a sua prosa à nossa" [Trata-se de "Vida do padre António Vieira", de J. F. Lisboa]).
E depois da transcrição, que não copio, escreveu Pinheiro Chagas o seguinte:
"Nada acrescentaremos às nobres reflexões do escritor maranhense; apenas lembraremos ao leitor que nisto se prova que se, depois da restauração de Portugal, houve algum traidor, que, por interesses pessoais ou de família, projectasse vender à Espanha a independência da pátria, esse traidor não foi Francisco de Lucena, foi D. João IV."
(Ver no Google: Francisco de Lucena e João Francisco Lisboa)
(Nota: É sabido que CCB não gramava os Braganças por uma razão que ainda não percebi bem. Vou transcrever de CCB uma história que acredito se tenha realmente passado e é, de qualquer maneira, suficientemente curiosa para ser conhecida.)
D. Gonçalo Pereira, trigésimo-quarto arcebispo de Braga (de 1326 a 1348), quando estudava as santas teologias em Salamanca, achou compatível a ciência de Deus com as curiosidades filogínicas, gregamente falando.
Desta compatibilidade, em que foi parte integrante e constituinte, quimicamente falando, D. Teresa Peres Vilarinho, resultou nascer um menino robusto, como os recém-nascidos do high-life, o qual se chamou Antoninho (ler Álvaro).
Este D. Antoninho (ler D. Álvaro) Gonçalves Pereira ordenou-se, foi prior do Crato, e pai de 32 filhos, compatíveis com o priorado. Uma das mães deste rapazio todo chamou-se Eiria de Carvalhal, e das predestinadas entranhas desta menina apojou D. Nuno Álvares Pereira, pai da primeira duquesa de Bragança, casada com o bastardo de D. João I.
Desta estirpe, bastantemente gafa de couto danado e bastardias, nos veio a redenção em 1640.
Benvindos e louvados sejam aqueles padres arcebispos e priores! Se eles fossem castos ou infecundos, não teríamos Braganças e gemeríamos ainda hoje cativos de Espanha.
O arcebispo descansa há 526 anos, em uma capela contígua à porta travessa da sé de Braga. Lá lhe vi, um destes dias, a figura esculpida no mausoléu. Português de lei era aquele padre, posto que se apaixonasse por espanholas. O coração não tem ubi. O escolar de Salamanca lera talvez o filósofo grego que dissera serem todas as mulheres uma. Se a natureza não as discriminara, como estremá-las por fronteiras?
Mas tão português era que articulou em seu testamento que, se um dia a mitra primacial cingisse a fronte de prelado castelhano, fosse arrasada sobre suas cinzas a capela em que ia esperar o clangor da trombeta!
Ainda não vi impressa a notícia do desastre extraordinário que motivou a morte de D. Gonçalo. Nem D. Rodrigo da Cunha nem o padre José Correia, biógrafos dos arcebispos bracarenses a souberam ou quiseram divulgar. Parece-me, todavia, que o primeiro, tanto por haver sido prelado como por génio investigador, não ignoraria o que era constante de um processo existente no arquivo da mitra.
Eis o caso:
Em 1347 foi D. Gonçalo visitar a província transmontana. Chegando a Vila Flor com grande séquito, travaram-se ali os seus criados com os moradores da terra, e de ambas as partes beligerantes morreram quatro homens, e saíram doze mal-feridos. Tangeram os sinos a rebate. Levantou-se a povoação armada. Cercaram a residência do arcebispo, mataram-lhe seis homens, e matariam o próprio prelado, se não fugisse, pendurando-se de uma corda, que lhe não evitou cair de costas no terreiro e contundir-se gravemente. Não contentes os de Vila Flor com a fuga do seu arcebispo, tomaram-lhe as mulas, de envolta com parte dos capelães, e seis criados. Protegido por atalhos, o contuso prelado chegou a Carrazeda de Anciães, povoação importante naquele tempo, fortificou-se no castelo, fez lavrar instrumento público, e enviou-o a D. Afonso IV.
O rei, poucos dias depois, mandou a Vila Flor uma alçada com dous algozes bem escoltados e fez enforcar os sacrílegos que pôde colher na devassa. Esta vingança nem por isso aliviou os incómodos do arcebispo descadeirado na queda. Transferido a Braga, deitou-se para nunca mais se erguer. Quatro meses depois adormeceu no Senhor.
E assim morreu, por efeito de tão misérrimo lance, aquele valente do Salado, que deu o exemplo da bravura e legou a espada ao seu quarto sucessor D. Lourenço, o raio de Aljubarrota. (D. Lourenço Vicente, 4ª arcebispo de Braga depois de D. Gonçalo, tomou parte na Batalha de Aljubarrota ao lado de Nun'Álvares, ganhando muita proeminência como defensor do Mestre de Avis).
Fora ele o defensor da cidade do Porto, quando o enfurecido amante de Ignez levava na sua vanguarda o incêndio e a devastação. Fora ele ainda quem acaudilhara a hoste de portugueses, quando uma invasão de espanhóis, em desapoderada fuga, deixou o sangue de trezentas vidas nas lanças dos alabardeiros do arcebispo.
Santo Deus! Um herói desta polpa chega a Vila Flor, amotina-se a raia-miúda, foge de escorregão por uma corda, cai de cangalhas, amolga o osso sacro, e morre!
Mas enfim, maior seria a desgraça de Portugal se ele, antes de lesar as vértebras lombares e regiões vizinhas, nos não tivesse deixado os embriões da casa de Bragança na pessoa do seu filho prior!
Joaquim Reis
(Compilado de "Noites de Insónia" nº 5, Maio de 1878 - pode encontrar-se este volume no Google)