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A bem da Nação

INDOCHINA – 12

 

 

O voo de Ho Chi Minh para o norte do Camboja (Kampuchia, em cambojano) foi como os outros: sem história. A única particularidade esteve em experimentarmos mais uma empresa aérea, desta vez a Angkor Air. Mais um Airbus A 321, serviço perfeitamente razoável, igual aos demais. E assim passámos de uma República socialista de Partido único para um Reino pluripartidário. Passávamos assim da autocracia para a democracia mas...

 

O actual Rei tem 61 anos de idade, é solteiro e foi bailarino. Não o vi nem sequer na televisão mas admito que não se imponha muito ao respeito dos súbditos mais viris. Aliás, já o pai dele era fraca figura e quem sai aos seus não regenera. Bem sei que a actual Constituição cambojana atribui ao Rei um papel meramente simbólico mas não é saudável para qualquer regime político ter um Chefe de Estado que não se dá muito ao respeito. Apesar da autocracia vietnamita e da democracia cambojana, vejo o futuro político do Camboja muito mais complicado do que o do Vietname. Porquê? Porque...

 

...o regime vietnamita não é risível. Aliás, um pouco à semelhança da Suiça, nem sei quem são os chefes máximos no Vietname. Sei que o Presidente é um homem, que a Assembleia Nacional é presidida por uma Senhora e que o Governo tem várias Ministras. No Camboja sei quem são os chefes máximos mas sei-o por razões menos do que simpáticas.

 

Sei que os guias turísticos no Vietname – podendo ser ou não membros do Partido único e desempenharem ou não funções de segurança policial perante os turistas – falam abertamente proferindo louvores e críticas políticas por vezes acérrimas enquanto no Camboja os guias disseram que diziam o que diziam porque estávamos no autocarro num ambiente recatado e não na via pública onde poderiam ser escutados por alguém que viesse a causar-lhes problemas.

 

E a culpa disto tudo é de Suzanne Humbert, Madame Decoux. Como assim?

 

l-amiral-et-son-epouse-suzanne.jpg

 L'Amiral et Mme Decoux

O Vice-Almirante Jean Decoux (1884 – 1963) desempenhou o cargo de Governador Geral da Indochina de Junho de 1940 a Março de 1945 e cumpriu-lhe preparar a próxima independência do Camboja escolhendo um Rei que pudesse ser confortável para os futuros interesses franceses. Conta-se que a esse propósito Madame Decoux terá dito ao marido em conversa amena que, no leque de candidatos dentre as várias «casas» de tradição real, Norodom Sihanouk era o mais «mignon», o que o Almirante terá gostado de ouvir pois que se tratava precisamente do que ele considerava mais imbecil.

 norodom-sihanouk-at-the-time-he-was-crown-in-1941.

 Le plus mignon

O Conselho do Trono foi induzido a concordar com a preferência do Almirante e eis que Norodom Sihanouk foi rei do Camboja de 1941 a 1955 e, após longo interregno, de 1993 a 2004.

A seguir à Segunda Guerra Mundial, Sihanouk pediu formalmente que a França reconhecesse a independência do país e, perante as reticências francesas, em Maio de 1953 exilou-se na Tailândia. Em 9 de Novembro do mesmo ano a independência foi formalmente reconhecida e Sihanouk reassumiu o cargo.

Já então a Constituição cambojana estipulava que ao Rei cabia uma função apenas simbólica mas isso não se enquadrava nos desígnios de Sihanouk que em 2 de Março de 1955 abdicou a favor do seu próprio pai, Norodom Suramarit, reservando para si o cargo de Primeiro Ministro e assim passando a controlar a política do país.

Quando em 1960 o pai morreu, Sihanouk tornou-se de novo Rei (adoptando apenas o título de Príncipe) e em 1963 forçou uma emenda constitucional obtendo os poderes políticos que até então estavam vedados ao Chefe do Estado.

Durante a Guerra do Vietname contra os americanos, Sihanouk procurou preservar a neutralidade do Camboja praticando uma política de corda bamba (ou seria no fio da navalha?) entre políticas pró-vietnamitas e outras apoiando os americanos. Mas o que prevaleceu foram as autorizações para que o Vietname do Norte construísse bases permanentes na fronteira e para que a China passasse fornecimentos aos vietcongs. Para neutralidade, «vou ali e já venho».

Contudo, em 1966-67 sentiu que os comunistas estavam a ganhar muito peso e desencadeou uma onda de repressão contra os khmers vermelhos, o então Partido Comunista do Kampuchia. A China congelou as relações diplomáticas com o Camboja e a situação interna complicou-se. Na noite de 17 de Março de 1970, enquanto Sihanouk se encontrava em França, o primeiro-ministro Lon Nol fez um golpe de Estado e alguns dias mais tarde convocou a Assembleia Nacional que destituiu o Rei e concedeu poderes especiais ao Primeiro Ministro.

Refugiado em Pequim, Sihanouk começou a sustentar publicamente o khmer vermelho Pol Pot, o que levou milhares de admiradores do soberano a entrar no Exército Revolucionário, controlado pelo Partido Comunista do Kampuchia, pró-chinês.

Quando, em Abril de 1975, os khmers vermelhos derrubaram Lon Nol, Sihanouk regressou a Phnom Penh e seguiu a linha maoísta. O grupo guerrilheiro permitiu-lhe que se tornasse novamente Chefe de Estado mas quando formaram um Conselho de Estado, o Presidente ficou com todos os poderes e Sihanouk perdeu toda a influência. Permaneceu no palácio real praticamente em prisão domiciliária até 1979 mas, com a invasão vietnamita que se propunha afastar os khmers vermelhos do poder e libertar o Rei, foi à ONU discursar contra o Vietname. Deixou-se, entretanto, ficar no exílio em Pequim. Foi nessa altura que, aproveitando a queda dos Khmers Vermelhos, Sihanouk fundou o seu partido, o Funcinpec, para tentar retomar algum poder mas passou a apoiar Pol Pot no combate aos ocupantes vietnamitas que tinham vindo para o libertar... de Pol Pot. Dá para entender?

Em 14 de Novembro de 1991 voltou ao Camboja após 12 anos de exílio (mas os seus antigos aliados, os Khmers Vermelhos, continuaram os combates na selva) e em 1993 foi novamente coroado Rei.

Em 7 de Outubro 2004 abdicou e o Conselho do Trono nomeou Norodom Sihamoni, seu filho, novo Rei.

Depois de tanta embrulhada, corda bamba e fio de navalha, Sihanouk morreu em 15 de Outubro de 2012.

Fica a dúvida sobre como teria sido a História cambojana se Madame Decoux não tivesse dito que achava Sihanouk o mais «mignon» dentre todos os putativos Reis.

«L’imbecil», diria o Almirante.

 

(continua)

 

Lisboa, 12 de Dezembro de 2014

 

Henrique em Phnom Penh.jpg

Henrique Salles da Fonseca

(decorativamente acompanhado em Phnom Penh)

 

BIBLIOGRAFIA:

Jean-Michel Filippi, www.kampotmuseum.wordpress.com

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