(…) Vem isto a propósito da Banca portuguesa - e dos efeitos que nela, previsívelmente, terá este novo quadro de relações interbancárias que o processo negocial em Basileia começou a desenhar.
Portugal integra, desde 1999, uma união monetária onde o seu sistema financeiro pouco pesa - e não são muitos os Bancos de raíz portuguesa com dimensão suficiente para acederem directamente às operações de "open market" que o Banco Central Europeu leva a efeito. Por isso, as linhas interbancárias concedidas por Bancos estrangeiros têm vindo a ganhar uma importância cada vez maior no “funding” dos Bancos portugueses.
Sendo o mercado de capitais português, como é, incipiente, não surpreende que as carteiras dos Bancos sejam constituídas, maioritáriamente, por aplicações financeiras sem natureza mobiliária, cujos devedores não têm visibilidade nos mercadores financeiros. Em quase todos os sectores da economia portuguesa, as empresas não dispõem de outras fontes de financiamento que não sejam o crédito bancário e o crédito dos fornecedores - este, em grande parte, financiado também pela Banca. Por força disto, o sistema bancário português retém, quase por inteiro, e em muito maior proporção do que se verifica em economias financeiramente mais evoluídas, os riscos inerentes ao ciclo económico - riscos estes que são não-seguráveis, pouco diversificáveis e insusceptíveis de cobertura. Acresce que a qualidade das demonstrações financeiras divulgadas pelas empresas portuguesas, e que vão instruir as decisões quanto ao crédito bancário, é, regra geral, fraca - e raras serão aquelas que passariam no crivo dos Princípios Contabilísticos Geralmente Aceites pelo IASC (International Accounting Standards Committee). Em resumo, a parcela maior das carteiras dos Bancos portugueses: (i) é constituída por instrumentos financeiros cujo risco de crédito não se encontra ainda estatísticamente medido; (ii) tem por contraparte entidades com reduzida expressão financeira, que não foram, nem virão a ser jamais, objecto de notação por agências de “rating” independentes; (iii) está alicerçada em informações financeiras cuja qualidade é difícil de comprovar; e (iv) concentra uma fracção desproporcionadamente grande dos riscos decorrentes da actividade económica. Neste contexto, não vai ser tarefa fácil, para os Bancos portugueses, demonstrar que possuem um capital adequado - que dispõem do capital que baste para atender às perdas prováveis a que o risco implícito nas suas carteiras os expõe.
Com a adesão à UME (União Monetária Europeia), o encargo de financiar o saldo da Balança de Transacções Correntes passou do Banco Central para os Bancos. Ora, como os deficites das transacções correntes têm vindo a situar-se, ano após ano, em níveis preocupantes, o endividamento líquido dos Bancos portugueses junto do exterior não podia deixar de crescer - e é já enorme, qualquer que seja o termo de comparação que se utilize: PIB, Activo Líquido Total do sistema bancário (com exclusão do Banco Central), etc. Forçoso é concluir, portanto, que esta dependência do sistema bancário português, face aos mercados financeiros internacionais, designadamente o mercado interbancário secundário da zona-euro, tenderá a aumentar. A ritmo mais lento, dado que a sua evolução no passado recente parece ser insustentável - mas a aumentar. O que é dizer que a Dívida Bancária ao exterior, medida no PIB, não deverá baixar nos próximos anos, muito pelo contrário - ainda que a economia portuguesa entre em recessão. Consequentemente, o sistema bancário português, no futuro previsível, será, não menos, mas ainda mais vulnerável aos critérios de decisão, e às idiossincrasias, da Banca estrangeira - e, em especial, daqueles Bancos que, pela sua projecção nos mercados financeiros internacionais, terão toda a vantagem em passar a determinar o capital em risco através do método IRB avançado.
Parece prudente admitir, portanto, que os Bancos estrangeiros, afinal os verdadeiros financiadores de uma fracção importante da economia portuguesa, irão avaliar com crescente cuidado o risco de liquidez a que as suas linhas interbancárias os expõem - tornando, assim, o 3º pilar do Acordo Basileia 2 (a disciplina de mercado) numa realidade onde os Bancos portugueses terão de aprender a viver. Para tal, é de esperar que os grandes Bancos estrangeiros, muito proximamente, venham a recorrer a modelos IRB avançados, mesmo que esses modelos não tenham sido ainda reconhecidos pelas respectivas autoridades de supervisão. E, tal como aconteceu com os princípios que inspiraram o Acordo de 1988, é razoável esperar que este paradigma da "medição sistemática do risco de crédito e das perdas prováveis, através de modelos estatísticamente aferíveis" venha a ser progressivamente adoptado pela generalidade dos Bancos, como prova provada - perante as suas autoridades de supervisão, seguramente; mas, acima de tudo, perante os seus pares e perante os mercados financeiros - de prudente e sã gestão. A prevalência deste paradigma como prova da qualidade da gestão, parece, pois, inevitável, ainda que o Acordo Basileia-2 nunca venha a ter lugar - e vem estabelecer, sem dúvida, um ponto de viragem na própria concepção da actividade bancária e, em particular, do relacionamento interbancário.
A disciplina do mercado (3º pilar) não permitirá que os Bancos portugueses se coloquem à margem das mudanças que estão já em curso. Mais do que a legítima preocupação de projectarem a imagem de uma gestão prudente e de enfrentarem com êxito o escrutínio dos pares, é a incontornável dependência das linhas interbancárias com origem no estrangeiro que irá impor-lhes, se é que não impõe já, a necessidade de demonstrarem permanentemente a qualidade das suas carteiras de crédito e dos processos que seguem na avaliação, na detecção e na gestão do risco (riscos financeiros e riscos operacionais). Como fazer, então, quando as carteiras de crédito bancário estão formadas, em grande maioría, por contrapartes sem "rating" independente, por instrumentos financeiros cujo risco nunca foi estatísticamente medido e por informações financeiras opacas? Ou os Bancos portugueses são capazes de demonstrar à evidência a qualidade das suas carteiras - ou serão os Bancos estrangeiros financiadores a estimarem o capital que cada um tem em risco, e a decidirem em conformidade.
Uma outra tendência que as negociações em curso têm feito germinar, é aquela que reflecte a mudança nas atitudes dos mutuantes de último recurso. Com uma contribuição pouco menos que marginal para o risco sistémico na zona-euro, o sistema bancário português, paradoxalmente, pode ser visto pelos mercados financeiros como representando um risco de liquidez acrescido. E a razão é simples: até onde estaria o SEBC (Sistema Europeu de Bancos Centrais) na disposição de se envolver para, como mutuante de último recurso, resgatar um Banco português em crise de liquidez?
Neste novo contexto, se não conseguirem oferecer a transparência que os mercados financeiros internacionais lhes exijam, se não conseguirem demonstrar a qualidade das suas carteiras e se não exibirem resiliência bastante para que as dúvidas a propósito da actuação do SEBC sejam meramente retóricas, os Bancos portugueses deverão estar preparados para suportarem prémios de risco cada vez maiores no custo efectivo do seu "funding" - e as consequências nefastas da selecção adversa a que ficarão remetidos.
A disciplina de mercado (3º pilar), na conjuntura económica actual, é, de certeza, incómoda para os Bancos portugueses. Mais do que a dimensão dos seus capitais próprios, a partir de agora, com a disciplina de mercado (3º pilar), o que importará para um Banco é a relação (também designada por "adequação do capital") entre esses capitais próprios e o capital em risco apurado segundo um método reconhecido, consistente e credível - e, em última análise, a qualidade dos seus diferentes Livros. Mas, como demonstrar cabalmente a qualidade de uma carteira de crédito bancário, quando não existem estatísticas de base nacional e sectorial sobre: (i) taxas de incumprimento; (ii) perdas incorridas; (iii) taxas de recuperação de capitais em processo de liquidação; (iv) degradação da solvência; ou (v) evolução do risco de crédito ao longo do ciclo económico? Como fazê-lo, quando é fácil comprovar que não está ao alcance de nenhum Banco, isoladamente, construir as estatísticas de que necessita - por muito grande que seja a dimensão da sua carteira?
Eis um grande desafio que a Banca portuguesa, no seu conjunto, e cada Banco, individualmente, têm de saber superar para bem da competitividade da economia portuguesa.
Agora é a vez da CGD. Acordados de sopetão, os nossos deputados, ainda meio estremunhados, decidiram fazer aquilo que melhor sabem: largar uma CPI às canelas do problema. Para quê, pergunto eu.
Ora, para apurar o que se passou na Carteira de Crédito Bancário (ou seja, com o dinheiro que a CGD foi emprestando ao longo dos anos), respondem.
Como se a CGD não tivesse problemas sérios também na sua Carteira de Títulos (Acções, Obrigações e valores mobiliários semelhantes), na sua Carteira de Derivados (posições em contratos contingentes) e na sua Carteira de Participações Sociais (aqui, só Acções detidas com o propósito de exercer algum controlo sobre a gestão das sociedades participadas).
Para não falar já da tradicional insuficiência da Margem Recorrente (isto é, a diferença entre proveitos e custos que não envolvem a exposição a riscos de mercado) para fazer face aos elevados encargos com a estrutura.
Mas seja só a Carteira de Crédito Bancário. Para apurar o quê, exactamente?
Para apurar se haverá por lá perdas que ainda não foram reconhecidas nas Demonstrações Financeiras que têm vindo a público? Mas não é essa a missão do Conselho Fiscal e dos Auditores Externos, que as subscreveram - e, ultimo ratio, do BdP que as supervisionou?
Para apurar o montante exacto de todas as perdas já incorridas, mesmo aquelas que, por uma razão ou por outra, ainda não vieram à luz do dia? Mas não é para isso que existem precisamente Conselho Fiscal, Auditores Externos e BdP (enquanto Supervisor)?
Para apurar, com rigor, o capital que está em risco nos empréstimos que muito provavelmente não serão recuperados na totalidade (o chamado malparado)? E o que é que têm dito sobre o assunto Conselho Fiscal, Auditores Externos e BdP?
Para apurar insuficiências nas provisões constituídas destinadas a absorver, já as perdas incorridas, já as perdas prováveis? Mas como admitir que essa questão tenha escapado, ano após ano, ao Conselho Fiscal, aos Auditores Externos e, até, ao BdP?
Enfim, para reverificar os resultados de stress tests e Asset Quality Reviews que, quer a EBA/European Banking Authority, quer o BCE/Banco Central Europeu, têm conduzido de há tempos a esta parte? Talvez – quem sabe?
Duvidam os deputados dos relatórios e pareceres que Conselho Fiscal, Auditores Externos e Supervisor têm elaborado? Ou foi-lhes negado o acesso a tais documentos? Ou, pior, suspeitam que esses relatórios e pareceres não contam a história toda – havendo outros que, mais completos e/ou mais rigorosos, circulam, apenas, no recato de alguns gabinetes?
Mas para dar resposta cabal, independente e bem fundamentada a todas estas dúvidas, a CPI terá de mergulhar nos registos contabilísticos e de analisar, um por um, os documentos (milhares e milhares) que os comprovam. Terá tempo, competência e ferramentas para tanto?
Duvido. Por isso, quanto a pôr em pratos limpos a verdadeira situação patrimonial da CGD, estamos conversados.
Então, para chegar a que conclusões? A uma, pelos vistos, já chegou mesmo antes de se reunir: passou, por atacado, um atestado de negligência, de ocultação, de possível manipulação de informação financeira relevante, se não mesmo de incompetência dolosa, a quem, até agora, administrou a CGD, ao seu Conselho Fiscal, aos seus Auditores Externos e ao próprio Supervisor (o BdP).
E será para tirar daí as consequências que se impõem? Duvido, de novo. Os sucessivos “casos” que a Banca portuguesa tem conhecido (BPN, BPP, BES, BANIF) mostram à saciedade: (i) que é o contribuinte que, sem grandes explicações, acaba por pagar tudo e o mais que for; (ii) que os membros dos órgãos de fiscalização, os Auditores Externos e os técnicos supervisores neles envolvidos continuam por aí como se nada fosse; (iii) enfim, que tudo o mais fica “gattopardo-mente” na mesma.
Resta à CPI passar a pente fino os processos de decisão em matéria de empréstimos (vulgo, crédito bancário) que a CGD adoptou – e, talvez, ainda adopte. Espero bem que, nesse meritório afã, não se esqueça de ajuizar também sobre a qualidade da informação que foi preparada para fundamentar as decisões que originaram todo este rebuliço.
Mas, se ficar só pelo que “quem decidiu o quê e porquê”, como temo que venha a acontecer, será mais um lavar de roupa suja – roupa que continuará tão encardida como quando deu entrada na barrela.
Não é de hoje nem de ontem que as coisas vão mal para os lados da CGD. Dois exemplos, de entre um ror de outros: (i) entre 2009 e 2012 o Estado procedeu a entradas de capital que totalizaram € 2.45 mM, mas os Capitais Próprios da CGD, entre 2008 e 2015 diminuiram € 0.4 mM; (ii) no fecho de 2015, tal como no fecho dos exercícios precedentes, os Capitais Próprios (ou seja, a capacidade da CGD para absorver perdas sem ver comprometida a sua continuidade) representavam, apenas, 4% do total do Balanço - bem abaixo do mínimo recomendado (6%) pelas Organizações Internacionais para os Bancos que são sistemicamente importantes a nível nacional, como é o caso.
Algo teria de ser feito há muito (certamente, desde antes da crise financeira) - e não bastaria atirar mais dinheiro para cima dos problemas, como veio a acontecer.
Se uma CPI é o local indicado para congeminar o que seja esse absolutamente necessário “algo”, duvido.
Mas daí não virá grande mal ao mundo. Sempre que não caia no lôgro de filar uns quantos que venham a pôr-se mais a jeito, de lhes vestir uns sanbenitos, de os torrar no fogo fátuo de umas vagas censuras – e esperar que a CGD renasça desse espectáculo livre de todas as maleitas de desgoverno que a têm afligido e com uma solidez financeira de fazer inveja.
Ora, o que por aí se ouve e lê sobre qual deveria ser o papel da CGD não augura nada de bom.
Não pode ser verdade! Segundo a newsletter “Observador” de 06/04/2016, na CPI ao caso BANIF o Governador do BdP, entre meias palavras e silêncios, saiu-se com duas tiradas de tomo: (i) que a crise do BANIF poderia custar ao contribuinte qualquer coisa como € 84 mM; (ii) que a alternativa era entre a “resolução” e a “liquidação” do Banco. Vamos por partes.
No fecho de 2014 (porque não conheço as Demonstrações Financeiras de 2015), o Passivo Total do BANIF era de € 13.6 mM, depois de ter sido no fecho do exercício anterior € 13.9 mM. Mas, certamente, não era intenção do BdP pôr o contribuinte a garantir todos os credores do Banco, muito menos os seus accionistas (o que acrescentaria ao “bolo” mais cerca de € 0.7 mM).
Perante um Banco em crise, o que importa preservar, de facto, é o essencial do sistema de pagamentos. Dito de outro modo: (i) os depósitos bancários; (ii) as posições devedoras face aos restantes Bancos do sistema (para assim conter a propagação do risco sistémico).
Ora, no fecho de 2014, os depósitos rondavam € 6.4 mM (mais € 155 M que no exercício anterior) e a posição líquida nos mercados interbancários era devedora, na ordem dos € 839 M (depois de ter sido em 2013, também negativa, mas bem menor: € 210 M).
Assim, o que havia a preservar era € 7.2-7.3 mM, cobertos no todo ou em parte pelo valor realizável do seu Activo Líquido: € 14.3 mM. Uma taxa de realização de 50% seria muito optimista?
Mas, quando a supervisão é minimamente diligente, o apuro na liquidação de um Banco em crise raramente fica abaixo dos 70%. Porquê então a solução encontrada?
Talvez o BdP, como nos casos BPN e BES, tenha presumido que o que lhe competia salvaguardar era, não o BANIF isolado, mas o Grupo BANIF - ou seja, mais todas as empresas (financeiras e não financeiras) que o BANIF controlava. Se presumiu tal, presumiu mal.
Mas seja. Infelizmente, creio que só estão publicadas as Demonstrações Financeiras Consolidadas do Grupo BANIF até 2011. Seria interessante (e até não seria dispeciendo) perguntar ao Governador do BdP, em sede de CPI, porque tolerou tal omissão - se considerava os contribuintes garantes da continuidade do Grupo como um todo.
Reportados a 2011, os raciocínios anteriores dariam, ao nível consolidado: (i) depósitos, € 8.0 mM; (ii) posição devedora nos mercados interbancários, € 440 M; (iii) total a salvaguardar, um pouco menos de € 8.5 mM, para um Activo Líquido Total de € 15.8 mM. Só uma taxa de realização à volta de 60% evitaria que os contribuintes fossem chamados a pagar um cêntimo que fosse. Seria possível?
A seu favor, o Governador do BdP poderia alegar que este tipo de raciocínios não lhe permite a norma jurídica que, entre nós, rege a liquidação de um Banco. Na realidade, o legislador partiu do princípio que, sendo os Bancos sociedades comerciais, então, só haveria que lhes aplicar, com uns pequenos retoques, o processo de insolvência e liquidação de sociedades comerciais. É no que dá confiar a sapateiros remendões o desenho de anéis.
Mas a pergunta permanece: a que propósito vieram os € 84 mM à conversa? Só para assustar? Ou pensaria o Governador do BdP que o colapso do BANIF arrastaria o nosso sistema bancário? Se sim, o que o levava a pensar tal, à luz das experiências do BPN e do BES?
Passando à tirada seguinte. É do mais elementar bom senso que uma empresa, ou reúne as condições mínimas para continuar a operar com toda a normalidade, ou tem de ser liquidada. Os cenários alternativos são, assim, continuidade (“going concern”, na expressão inglesa) ou liquidaçãopor insolvência (a liquidação também pode ser voluntária, que nada tem a ver com estados de insolvência e não vem agora ao caso).
Pode acontecer, porém, que a empresa em crise, com um empurrão, volte a preencher as condições de continuidade. E que, ponderados o custo do empurrão, os benefícios que advenham da continuidade da empresa e o risco de insucesso, o esforço financeiro com a recuperação até se justifique. Mas a recuperação é, apenas, um sub-capítulo do cenário de continuidade - não um terceiro cenário.
Assim sendo, o que se entenderá por resolução de um Banco em crise?
O conceito de resolução foi-nos brindado pela Comissão Europeia (CE) - numa tradução literal, mas altamente duvidosa, de “resolution” - através de uma Directiva que trata das saídas admissíveis para Bancos em crise grave: ou “recovery” (recuperação), ou “resolution”.
E “resolution” em inglês, neste contexto, é separar em partes, decompor, desmembrar - muito longe de qualquer dos dois sentidos que a palavra resolução tem em português, a saber: (i) solucionar (um problema); (ii) pôr termo (a um contrato).
Temos assim que, sem que se saiba muito bem porquê, a CE entendeu excluir das soluções admissíveis para Bancos em crise a liquidação imediata e em boa ordem. Não. Primeiro desmembra-se, separa-se o trigo do joio, vende-se o trigo por bom preço (supostamente) - e só depois é que se liquida o que já não prestar.
Não ocorreu à preclara CE (nem ao BCE, nem ao Regulador português - que não é o BdP como por aí se diz, mas os órgãos legisferantes: Assembleia da República e Governo) que o desmembramento de um Banco cria problemas delicados e expõe todo o processo a enorme subjectividade:
Como reconhecer o trigo e identificar o joio?
A que critérios recorrer para afectar este passivo ao trigo e deixar aquele outro passivo a ser pago pelo joio (presumindo que os accionistas partilharão inevitavelmente a sorte do joio)?
E esses critérios (que a CE se excusou de fixar) serão eles compatíveis com a legislação do Estado onde o Banco em crise esteja sedeado?
Não surpreende assim que, perante tanta insensatez, as resoluções que já nos foi dado experimentar tenham redundado: (i) em Bancos zombies (a dura verdade é que o BdP não faz a menor ideia do joio que abunda nos Balanços dos Bancos portugueses - e isto ninguém quer reconhecer); (ii) num ror de litígios movidos por credores que se sentem prejudicados com o que lhes coube em sorte no desmembramento; (iii) em processos de liquidação demorados e pouco empenhados do joio; (iv) em facturas pesadíssimos que os contribuintes têm sido chamados a pagar porque, nem os depósitos, nem as posições devedoras nos mercados interbancários, ficam desde logo devidamente acautelados.
Ao contrapor resolução a imediata liquidação (por insolvência), o Governador do BdP deu a ideia de muita coisa: (i) de que perfilha a tese da CE (e do BCE) segundo a qual desmembrar é que é - que depois logo se verá; (ii) de que pensa que liquidar um património é igual a atirá-lo para um buraco e pegar-lhe fogo, pois daí nada se aproveitará; (iii) de que não está ciente dos problemas técnicos que a cisão (desmembramento) de um património e a consequente alocação de passivos criam; (iv) de que ignora que, por cá, em processos de cisão, todas as parcelas do património desmembrado, estejam onde estiverem, respondem pela totalidade das dívidas da sociedade cindida, consoante a graduação dos correspondentes créditos.
São muitas as questões que as respostas do Governador do BdP na CPI suscitam. Mas uma sobreleva as demais: Queremos nós uma CE a este ponto inepta a regular o nosso sistema bancário?
Respaldado em normas comunitárias transpostas com pouco critério para o Direito Português, o BdP, no caso BES (e, mais recentemente, no caso BANIF), seguiu um caminho muito diferente daquele que, entre nós, está traçado para as empresas sem tesouraria - ou, mesmo, sem capital.
Adianto desde já que, até melhor prova, não vejo que, antes de 2014, BES ou BANIF se destacassem assim tanto, para pior, dos outros Bancos Comerciais por cá estabelecidos, quer quanto a níveis de liquidez, quer quanto a níveis de capitalização.
Na ausência de outras causas que só a divulgação pública da correspondência trocada entre BdP e BCE poderá revelar, o problema de fundo no BES era o BESA (solucionado às três pancadas) e a miríade de outras subsidiárias (que migraram quase todas para o NB). Em suma: era o “Grupo BES (GBES)”, não o restante GES, que lhe absorvia o melhor da liquidez e dos Capitais Próprios.
No caso do BANIF sabe-se, pela correspondência entretanto divulgada, que o facto de o Estado ser o accionista maioritário, ampliado pela extrema dificuldade em reembolsar os financiamentos públicos recebidos, não caía lá muito bem em Bruxelas.
Ponhamos de lado, por momentos, estes casos concretos. É muito provável que andem pelo ar, sem resposta, algumas perguntas pertinentes: Que mal tem um Banco Comercial falir? Porque é que o processo de liquidação dos Bancos Comerciais tem de ser diferente do de uma outra qualquer sociedade comercial? Como devem ser eles liquidados, então? O Mecanismo Único de Resolução, adoptado pela UE, serve?
Cada uma por sua vez.
Não me canso de repetir que as sociedades desenvolvidas se estruturam a partir de normas, contratos e liquidez (dinheiro). E a liquidez é, em larguíssima medida (à volta de 90%), passivo à vista dos Bancos Comerciais: são os Depósitos à Ordem (o restante é passivo à vista dos Bancos Centrais). A que há que adicionar aquele outro passivo dos Bancos Comerciais que pode ser convertido imediatamente em Depósitos à Ordem por simples vontade do respectivo credor, sem perda do capital investido (os Depósitos a Prazo).
Assim, se um Banco Comercial suspender pagamentos, os Depósitos à Ordem e os Depósitos a Prazo registados nos seus livros poderão não se esfumar de um momento para o outro, mas ficarão indisponíveis por longo tempo. Consequentemente, a liquidez que circula na economia diminuirá na exacta medida dos Depósitos Bancários que ficarem indisponíveis.
Uma quebra súbita, mais ou menos significativa (conforme a dimensão sistémica do Banco Comercial em crise), visível, mas não antecipada, da liquidez em circulação torna mais difícil manter o ritmo de concretização de contratos monetários (aqueles em que a contraprestação consiste na entrega de uma quantia em dinheiro). Falta dinheiro - e a rigidez de preços, salários e restante dívida complica tudo.
Ora, são precisamente os contratos monetários: (i) que animam a vida económica; (ii) que dão acesso à participação no processo produtivo; (iii) que sustentam a distribuição do rendimento; (iv) que orientam o investimento. Menos dinheiro em circulação, menos contratos monetários - logo, mais desemprego, mais insolvências e, no limite, recessão económica e crise social.
Para que a insolvência de uma empresa tenha efeitos comparáveis aos da suspensão de pagamentos de um Banco Comercial (mesmo de pequena dimensão) ela terá de ter um peso desmedido: (i) ou no emprego de uma dada região; (ii) ou nas exportações de um dado país; (iii) ou na trama das relações inter-industriais de uma dada economia.
E se a insolvência de uma grande empresa tende a afectar em maior ou menor medida outras empresas (e até os Bancos com os quais ela trabalhe), um Banco Comercial que suspende pagamentos vai contagiar todo sistema bancário através da densa rede de relações inter-bancárias.
É justamente por tudo isto que, perante um Banco Comercial em crise, há que acautelar, de imediato: (i) os Depósitos (para preservar a liquidez em circulação); (ii) as posições cruzadas com os restantes Bancos (para evitar o contágio, que a crise se propague ao sistema de pagamentos).
São estes os dois únicos pontos em que o regime aplicável à insolvência de Bancos Comerciais terá de se afastar daquele outro que estiver definido para as sociedades comerciais, em geral (a insolvência de Seguradoras e de Fundos de Pensões também exige regimes especiais, que não vêm aqui ao caso).
Em termos práticos, isto significa: (i) proceder, sem demora e antes do mais, à compensação automática entre créditos e débitos de que o Banco Comercial insolvente seja parte nos mercados interbancários; (ii) reconhecer, logo em seguida, que os créditos correspondentes aos Depósitos gozam de privilégio absoluto sobre a totalidade do seu património, sobrepondo-se mesmo aos créditos hipotecários (ou que beneficiem de outro qualquer tipo de garantia).
Infelizmente, aquele primeiro passo pode não ser suficiente para conter a propagação da crise a outros Bancos Comerciais (sobretudo, se o Banco Comercial insolvente estiver excessivamente endividado nos mercados interbancários). E o facto de os Depositantes serem reconhecidos como os credores mais graduados (serão pagos antes de todos os demais credores) não confere aos Depósitos a desejada disponibilidade imediata: haverá sempre que aguardar pela liquidação da massa falida.
A dura realidade é que não há solução satisfatória para os danos “macro” causados pela insolvência de um Banco Comercial se só se actuar quando a situação não puder mais ser ignorada.
Por isso, o endividamento líquido (e, bem assim, o desequilíbrio no perfil temporal das suas posições devedoras e credoras - o mismatch) de um Banco Comercial nos mercados interbancários tem de ser sujeito a limites prudenciais apertados e vigiado diligentemente (só recentemente os Reguladores se aperceberam de tal).
Por isso, também, os Depósitos Bancários têm de contar com esquemas que lhes permitam continuar plenamente disponíveis, caso o Banco depositário suspenda pagamentos (é essa a finalidade do Fundo de Garantia dos Depósitos - desde que não se confunda “ininterrupta disponibilidade” com “garantia”).
A grande questão é, pois, esta: como lidar com um Banco Comercial insolvente de forma a preservar intacta a liquidez em circulação e evitar que a crise se propague ao sistema bancário, inquinando o sistema de pagamentos?
Quanto aos accionistas e restantes credores dos Bancos Comerciais, nada justifica que eles tenham um tratamento diferente daquele que é reservado a sócios e credores de qualquer sociedade comercial.
Também eles têm de estar atentos à situação financeira das entidades que lhes causam risco. Afinal, não é outro o sentido da disciplina do mercado.
Pois é! As coisas não têm corrido mesmo nada bem para os lados do BdP.
Os casos BPN, BPP, BES e BANIF vieram mostrar à evidência que o BdP não faz a menor ideia: (i) daquilo que existe nos Balanços dos Bancos que deve supervisionar; (ii) dos riscos a que esses Bancos se encontram expostos a cada momento; (iii) das perdas em que eles já incorreram, mas que ainda não reconheceram nas suas contabilidades; (iv) do que significa para a estabilidade do sistema financeiro o modelo de negócio que cada Banco lá vai prosseguindo tant bien que mal; (v) de como atalhar uma crise sistémica, recuperar um Banco em crise ou vender o que for vendável naqueles Bancos que, entretanto, falirem.
Bem ao gosto português, este problema não é objecto de análise - mas de fulanização.
O mal, diz-se, está no modo como o Governador do BdP é nomeado. Que o Governo, manietado por interesses vários, não tem suficientes “luzes” para tal. Que o Parlamento, minado pela intriga política, idem, idem, aspas, aspas. O Presidente da República é que é.
Vivessemos nós em Monarquia Absolutista e diagnóstico e remédio não seriam muito diferentes: Ao Rei decidir, pois foi para isso que a inspiração divina o ungiu - e as decisões dos ungidos são perfeitas por definição.
Que o nomeado apenas preste contas ao ouvido do nomeador - e que este, compreensivelmente, não esteja nada interessado em admitir que as suas escolhas deram para o torto - é coisa que não preocupa minimamente os defensores desta expedita solução.
E é assim, à maneira do séc. XVIII, que continuamos a procurar resolver os nossos problemas, quer os de fundo, quer os mais triviais: um “iluminado” (que pode ser o “iluminado” de ocasião, com interesse directo no assunto) que diga como é - e todos nós iremos às nossas vidinhas, descansados, pois ficamos em boas mãos.
É asssim na organização judiciária; é assim na esfera da Administração Pública; é assim na vida política; é assim nas empresas públicas e em muitas empresas privadas. Ninguém se sente na obrigação de se explicar publicamente. Ninguém exige contas substantivas, prestadas em linguagem clara que todos vejam e todos percebam. Convive tudo muito bem com os juízos no recato dos gabinetes - e com a maledicência inconsequente da rua.
Durante todos estes anos, o “pecado original” dos sucessivos Governadores do BdP não foram, nem os vícios no modo de nomear, nem a qualidade profissional dos nomeados. Foi, sim, o simples facto de, a pretexto de um equívoco estatuto de independência, eles capricharem em não prestar a ninguém contas que se percebam. Nem mesmo às bem-intencionadas, mas mal-preparadas, CPI.
O Governador do BdP deve ir regularmente ao Parlamento para explicar o que faz ou deixa de fazer, e porque o faz ou deixa de fazer. Em audição pública, obviamente. Não porque o Parlamento deva poder demiti-lo, mas para que ele, Governador, vendo que as suas explicações não satisfazem, que a sua actuação é objecto de forte censura, tenha a hombridade de renunciar ao cargo.
Mas explicações sobre o quê? Perguntará o Leitor - e com razão. O BdP já não tem competências em matéria de política monetária e cambial - que pertencem ao BCE. A supervisão dos Bancos é, agora, em larguíssima medida, tarefa do BCE, também. E o legislador esqueceu-se de lhe atribuir o papel de Autoridade da Concorrência no sistema bancário. Então, o que sobra?
Sobra: (i) a política de investimento das reservas cambiais (cujos resultados não deveriam ser contabilizados no Balanço do BdP, contrariamente ao que hoje acontece); (ii) a posição a defender junto do Sistema Europeu de Bancos Centrais e do BCE; (iii) a visão sobre o sistema financeiro nacional; (iv) as medidas adoptadas para assegurar a estabilidade dos Bancos “de cá” e prevenir o risco sistémico; (v) a actuação perante casos concretos de Bancos em crise; (vi) a prestação final de contas, quando um Banco é liquidado.
E sobram: (i) a transferência para o “BES MAU” de umas quantas Obrigações Ordinárias que, de início, tinham sido integradas no “BES BOM” (o NB/NOVO BANCO); (ii) explicar o que entende por “rentabilidade da Banca”, tema que elegeu, agora, como objectivo principal da sua acção.
Este jogo do “tira, põe e deixa” com o património do defunto BES só prova o que escrevi ao começo: o BdP nunca deixou de andar às aranhas. Mas a questão nem é essa.
Mesmo se ao fim de ano e meio o BdP entendesse que deveria corrigir os critérios que adoptara na cisão (e fê-lo já umas quatro vezes, pelo menos), deveria tê-lo feito com lisura e com a humildade de uma explicação que fizesse sentido. Mas não.
Em contra-mão (a legislação portuguesa proíbe-o), resolveu tratar de maneira diferente credores obrigacionistas com idêntica graduação. Logicamente, as emissões de Obrigações (e de outra dívida titulada como as MTN/Medium Term Notes) que gozam de garantia real (garantia hipotecária ou outra) teriam de ser excluidas do arranjo, sempre que as respectivas garantias estejam contabilizadas nos Livros do NB. De outra maneira, essas garantias teriam de acompanhar os correspondentes créditos no regresso ao “BES MAU” - e, no NB, tudo ficaria na mesma em termos de Capitais Próprios (mas não de rácio de solvabilidade, que melhoraria).
O que o BdP fez foi discriminar, no acto da cisão, credores obrigacionistas que, apesar de não gozarem de garantias específicas, se encontravam, nesse momento, em iguais circunstâncias face ao património do BES.
Que uma tal discriminação aconteça com um atraso de dezoito meses, é completamente irrelevante. O que é relevante é, num cenário de anunciada insolvência do devedor, privilegiar credores que, à partida, se encontram em pé-de-igualdade. E isto entre nós tem nome: crime.
A justificação dada pelo BdP (são emissões que se encontram por inteiro na posse de investidores institucionais - e haveria que proteger os investidores de retalho) seria ridícula se não fosse a manifestação absurda de um comportamente arrogante de quem se considera acima da Lei.
Por último, a questão da “rentabilidade da Banca”. Bancos rentáveis, certamente. Acontece, porém, que a estabilidade e solidez de um sistema bancário não se mede nos resultados de exercício - mede-se, sim, no nível de capitalização. O que é dizer, na adequação dos Capitais Próprios ao perfil da exposição ao risco e ao peso dos Encargos de Estrutura na Margem Recorrente. Ora, nada disto se lê nos bons propósitos do BdP.
De facto, o resultado de exercício (os “lucros”) pode ser construídos de muitas maneiras. E algumas revelam, até, não solidez, mas fragilidade sempre que: (i) o Banco esteja sub-capitalizado; (ii) o Banco não esteja a provisionar adequadamente as perdas esperadas no seu Balanço; (iii) o Banco não esteja a reconhecer correctamente as perdas em que incorreu; (iv) os riscos operacionais não sejam acautelados; (v) a Margem Recorrente (isto é, a diferença entre proveitos e custos expostos unicamente ao risco de crédito) não seja suficiente para cobrir os Encargos de Estrutura.
Neste último caso, a rentabilidade do Banco fica a depender fundamentalmente das oscilações do mercado cambial (risco cambial), da política monetária (risco de taxa de juro) e dos mercados de valores mobiliários (risco de preço). Ou seja, de variáveis que lhe escapam.
O indicador que o BdP deveria fixar - se se preocupasse verdadeiramente com a solidez do sistema bancário (ou se tivesse uma ideia daquilo de que ela depende) - é o RARORAC (Risk Adjusted Return On Risk Adjusted Capital).
Trocado por miúdos: os dados da contabilidade não proporcionam uma visão nítida das condições de estabilidade de um Banco quando este reconhece de forma deficiente os riscos a que se encontra exposto, as perdas em que incorreu e as insuficiências de Capitais Próprios (já para absorver as perdas não esperadas, já para suportar erros no pricing dos empréstimos bancários). Tudo isto é moeda corrente nos Bancos “de cá” (naqueles que ainda vão sobrevivendo…).
Por isso, há que corrigir: (i) o resultado do exercício, deduzindo as perdas já incorridas, mas não reconhecidas, e as perdas esperadas não provisionadas (Risk Adjusted Return); (ii) os Capitais Próprios, retirando-lhes as perdas não esperadas (Risk Adjusted Capital).
Não basta atirar as culpas para o "governo da direita". É preciso explicar tudo muito bem.
A primeira coisa a perceber sobre o BANIF é que o banco não foi comprado pelo Santander. Foi oferecido. Melhor, o Estado pagou para que o Santander ficasse com o BANIF. É o que significa o facto de o Santander ter dado 150 milhões de euros enquanto o Estado e o Fundo de Resolução da banca lá colocaram 2,3 mil milhões. Isto para além de um conjunto de garantias várias (mais o risco de não se venderem os activos que ficaram no veículo "tóxico"). Ora, para esta operação catastrófica não basta atirar as culpas para o "governo da direita". É preciso explicar tudo muito bem. Com certeza que o governo PSD-CDS tem responsabilidades, desde a decisão de ficar com cerca de 60% do capital do BANIF até à manutenção em funcionamento durante três anos daquele autêntico vegetal bancário. Mas é preciso que se explique porque é que uma "venda" feita como se não houvesse amanhã foi a solução que melhor defendeu o "interesse nacional". Desde logo, é preciso que se explique porque, na sequência da notícia da TVI, se especializou o primeiro-ministro em fazer declarações cujo único efeito foi desvalorizar ainda mais o banco. Depois, é preciso que se explique porque não foram escolhidas outras alternativas. O Governo diz que preferia a nacionalização mas que a Comissão Europeia "não queria". Não queria? Pois que não quisesse. Se a solução era melhor, o Governo que batalhasse, em vez de enterrar alegremente dinheiro público. O pior que podia acontecer era adiar o processo e ter de aplicar o novo tipo de resolução em 2016. O que nos leva, precisamente, às outras alternativas: aplicar uma resolução do estilo da do BES ou então esperar pelas tais novas regras de resolução de 2016. Em que é que poupar os depositantes de mais de 100 mil euros é melhor do que impor um valor obsceno (que pode chegar a 4 mil milhões de euros, tanto como no BES para um banco com um quarto do valor) a todos os portugueses? Isto é o que aconteceu. Mas mais importante é prever o que está para acontecer. Já vimos que o estado da banca portuguesa é de calamidade pública. O que ela precisa é de uma "reforma estrutural" (esta sim, verdadeira), talvez com apoio europeu. Mais vale gastar uma fortuna nisso do que gastá-la deixando tudo continuar a apodrecer.
Porquê? Porquê a decisão de acabar com o BES - um dos Bancos sistemicamente importantes do nosso país? A fulanização que tem envolvido o caso (ora diz Costa, ora diz Salgado, com outros a opinarem também), tão ao gosto português, só aumenta a confusão.
O caso do papel comercial do GES, por muito grave que fosse - e é grave, sem sombra de dúvida - não tinha dimensão financeira suficiente para deitar abaixo o Banco. Como tantos outros em que os Bancos “de cá” são habitualmente férteis, acabaria por passar despercebido, sem complicações de maior, nem mancha na reputação de ninguém, não fosse a decisão do BdP.
Seria que a constelação de empresas cuja gestão era controlada pelo BES (o GBES/Grupo BES, não confundir com GES), onde avultava o BESA, estava numa situação financeira de tal modo periclitante que arrastaria o Banco irremediavelmente, a qualquer momento?
Seria que a exposição ao GES (entre empréstimos, garantias e posições de carteira de títulos, entre Acções e Obrigações) excedia de tal maneira os Capitais Próprios do BES que o colapso do GES poria claramente em perigo o dinheiro depositado no Banco (e, recordo, proteger os depósitos bancários é a missão principal do BdP)?
Seria porque tudo isto, em conjunto, mais a (má) situação da economia portuguesa, mais a (periclitante) conjuntura na Zona Euro, punham a tesouraria do BES à beira da ruptura - mal se esgotasse a sua quota na liquidez que o BCE tem vindo a injectar?
Em resumo: seria o BES o elo mais fraco entre os 7 Bancos que, até 2014, sustentavam o sistema de pagamentos em Portugal (CGD, BCP, BES, BPI, BST, BANIF, CEMG)? Afinal, qual era a verdadeira situação financeira e patrimonial do BES quando lhe foi retirada a licença para operar?
Do BES e não do GBES (muito menos do GES), sublinho - para evitar as confusões que por aí correm. Criou-se a ideia, errada, de que só as Demonstrações Financeiras Consolidadas (no caso, do GBES) têm verdadeiro interesse para a supervisão prudencial.
[NOTA: As Demonstrações Financeiras Consolidadas comparam os Capitais Próprios do BES com o “deve” e “haver” do GBES, como um todo, relativamente a terceiros.]
Ora as contas consolidadas têm significado numa óptica de continuidade. Mas, ao eliminarem as posições cruzadas no interior do GBES, e ao presumirem que o BES cobriria toda e qualquer insuficiência de Capitais Próprios e/ou de tesouraria nas empresas que controlava, eram totalmente inapropriadas no cenário que estava em cima da mesa: o da liquidação (o caso BPN atingiu as proporções que se sabe por se ter controlado o trabalho da CGD a partir das contas consolidadas e não das contas individuais, como deveria ter sido feito).
Na verdade, as intervenções do BdP, por mais drásticas que sejam, têm por objectivo primordial manter íntegro o sistema de pagamentos e, por força disso, proteger a confiança legitima dos depositantes. No caso vertente, a confiança dos depositantes do BES, como é bem de ver - e não de qualquer outro Banco que integrasse o GBES. Era nas Demonstrações Financeiras Individuais do BES que estavam registados os depósitos que o BdP queria ver salvaguardados. São, pois, as Demonstrações Financeiras Individuais que estão na base dos comentários que se seguem.
Acontece que, ainda hoje, não vieram a lume as Demonstrações Financeiras Individuais do BES que teriam levado o BdP a tomar a decisão que tomou (no princípio de AGO2014).
Por sorte, o BCE procedeu, durante o 1º semestre de 2014, ao exame dos Balanços dos Bancos sistemicamente importantes na Zona Euro, para apurar (na óptica da continuidade) insuficiências de Capitais Próprios em cenário de esforço (AQR/Asset Quality Review).
Por azar, o BES já não consta do relatório que o BCE publicou a propósito, em OUT2014 (dele constam, apenas, a CGD, o BCP e o BPI; o BST foi avaliado no âmbito do Banco Santander Espanha; BANIF e CEMG não foram considerados sistemicamente importantes). Mas é plausível admitir que à decisão do BdP não terão sido estranhos os resultados a que o BCE terá chegado quanto ao BES - os quais nunca foram publicados. Ficou-se a saber, porém: (i) que um dos Bancos examinados teria de reforçar os seus Capitais Próprios (operação que, aliás, estava já em curso); (ii) que o sistema bancário português só era menos frágil que o de Chipre, sendo o pódio da fragilidade na Zona Euro completado pelos Bancos gregos. Algo que não abona por aí além a favor da competência do BdP, na última década.
A informação disponível mais recente sobre a situação financeira do BES resume-se, assim: (i) às Demonstrações Financeiras Individuais reportadas a 31DEZ2013 e respectiva certificação pelos Auditores Externos (KPMG); (ii) às opiniões conhecidas de entidades internacionalmente credíveis.
Nestas últimas são de destacar: (i) as notações de risco atribuídas à dívida emitida pelo BES (investment grade); (ii) a inclusão no Dow Jones Sustainability Index (categoria bronze); (iii) a atribuição do estatuto de Whole Firm Liquidity Management pela Prudential Regulation Authority (Bank of England); (iii) a presença na lista das Global 100 Most Sustainable Companies in the World; (iv) as posições accionistas qualificadas detidas por gestoras de fundos de investimento que são leaders mundiais, tais como Black Rock, Wellington Management e Capital Research. Nada disto prenunciava um colapso próximo.
Assim sendo, o que têm para contar as Demonstrações Financeiras Individuais do BES relativas ao exercício de 2013? Contam que o BES era, de entre aqueles 7 Bancos:
O que recorria a menor alavancagem financeira (dívida por unidade de Capitais Próprios) - um endividamento, aliás, moderado pelos padrões internacionais;
O único que, desde 2010, aumentava as suas aplicações nos mercados interbancários (mas tal pode significar, apenas, que o BES era o principal provedor de liquidez para os restantes Bancos do GBES, como veremos mais adiante);
O que necessitava menos (sempre por unidade de Capitais Próprios) de recorrer ao mercado interbancário ou à emissão de títulos de dívida para completar os depósitos no financiamento da Carteira de Crédito Bancário;
O que menos recorreu (ainda por unidade de Capitais Próprios) aos mercados interbancários para financiar a totalidade do seu Balanço;
Um dos 4 Bancos cujo endividamento directo junto de Bancos estrangeiros (alavancagem monetária externa) era inferior (ainda que ligeiramente) aos respectivos Capitais Próprios;
Aquele, de par com a CGD, em que os fundos obtidos junto de Bancos Centrais (leia-se, BCE) eram inferiores a duas vezes os respectivos Capitais Próprios;
Aquele com menores necessidades de Fundos Permanentes (Capitais Próprios+Passivo a médio/longo prazo);
Em contrapartida, era um dos que apresentava maior desequilíbrio entre o perfil temporal do Activo e o perfil temporal do Passivo (firme o contingente);
E tal como em todos os restantes Bancos, a sinistralidade na Carteira de Crédito Bancário (isto é, os empréstimos que deviam ser pagos ao longo do exercício e que permaneciam por pagar, no todo ou em parte, no fecho desse exercício) explodiu, atingindo, em 2013, cerca de 17.5% (em 2012, 9.0%) - mas, mesmo assim, longe de ser o Banco com maior sinistralidade.
Que o rastilho para o colapso do BES terá sido o descalabro do GES - eis a tese mais comum. O GES, sob este ponto de vista, reunia empresas onde o BES tinha uma participação societária, mas não controlava a gestão (associadas) e aquelas outras do universo do ESFG/Espírito Santo Financial Group em que o BES não detinha qualquer participação.
Em 2012 e 2013, a exposição do BES ao GES (todas aquelas posições de Balanço a que o BES teria de afectar Capitais Próprios) representava 0.3x-0.4x os Capitais Próprios do Banco (e a liquidez “empatada” nessas posições andaria por 0.2x-0.3x). Uma presença significativa no Balanço e na tesouraria do BES, sem dúvida - mas de modo algum preocupante no plano prudencial. Se todas estas empresas caíssem insolventes de um momento para o outro, e se das respectivas massas falidas nada se aproveitasse, haveria sempre soluções expeditas para reconduzir o BES, prontamente, ao equilíbrio financeiro (por ventura, à custa dos interesses dos accionistas maioritários, mas lá teria de ser).
Conclusão: Não foi o GES que deitou abaixo o BES, de certeza.
Já com o GBES a situação não seria tão confortável - mesmo pondo de lado uma Sociedade Veículo (BES Finance BV) cuja finalidade única era captar fundos nos mercados financeiros internacionais (os comentários seguintes não entram em linha de conta com BES Finance).
A exposição do BES ao GBES situava-se, já desde antes da crise, em 2.3x-2.4x os Capitais Próprios do Banco, tendo mesmo atingido 2.8x em 2006 (por sua vez, a liquidez que o BES tinha “empatado” no GBES rondava 0.9x, mas tinha chegado a 2.3x também em 2006). Insofismavelmente, o GBES representava, para o BES, um risco agravado - mas já desde bem antes da crise, pelo que o BdP não pode vir agora mostrar surpresa. E nesse risco pesavam praticamente por igual os Bancos subsidiários (todos, excepto um, a operar no estrangeiro) e as restantes subsidiárias (estabelecidas em Portugal).
Conclusão: O GBES, como um todo, tinha potencial suficiente para abalar o BES. Era um risco que poderia ser gerido (e diluído) enquanto o BES tivesse condições para continuar a operar - mas incontrolável a partir do momento em que a licença para o exercício da actividade bancária lhe fosse retirada. Como se viu.
De tudo isto ficam 4 perguntas que, para minha estupefacção, ninguém (nem a Parlamento) ousou ainda colocar:
Porque não são tornadas públicas as Demonstrações Financeiras Individuais do BES à data da resolução (um ponto decisivo, como mostrarei na próxima “Tretas”)?
Com que fundamentos o BCE cortou o acesso do BES às facilidades de liquidez e exigiu o imediato reembolso dos fundos que o BES lhe devia (o que determinou o colapso financeiro do BES, como determinaria o de qualquer outro Banco na Zona Euro)?
Ao tomar uma decisão de tal modo drástica (e duvido eu que os Tratados lhe dêem poderes para tal), o BCE não propôs alternativas?
Se propôs, que alternativas foram essas e porque razão foram rejeitadas?
Para se fazer uma ideia da excepcionalidade da atitude do BCE (que, na realidade, não tinha precedente), basta recuar ao caso BANKIA (Espanha). Quando este Banco foi intervencionado, o BCE solicitou ao Banco de Espanha a lista dos títulos que o BANKIA tinha depositado para garantir os fundos que ele, BCE, lhe emprestara (€ 20 mil Milhões, aprox.). Espanto e indignação! A grande maioría desses títulos era dívida de empresas de promoção imobiliária e não preenchia os requisitos mínimos exigidos pelo BCE para ser admitida como colateral das operações de cedência de liquidez. E o mesmo acontecia com vários outros Bancos espanhóis. Apesar disso, o BCE não decretou o encerramento, nem do BANKIA, nem de nenhum outro Banco espanhol. O resto é história (o resgate da Banca espanhola com € 100 mil Milhões). Haverá para o BCE algo mais grave do que uma descarada fraude? E terá sido o BES apanhado nesse pecado mortal, ou noutro ainda pior (branqueamento de capitais ilícitos, por exemplo)?
Tudo visto e ponderado, não saímos da estaca 0: porquê?
1ºCuidarás dos teus Capitais Próprios acima de todas as coisas
2ºVerás nos interesses dos teus Clientes o reflexo dos teus próprios interesses
3ºNão incorrerás em conflito de interesses
4ºColocarás à disposição dos Clientes, sempre, as soluções que melhor se adequam às necessidades financeiras deles – não aos teus próprios interesses e conveniências
5ºSó emprestarás dinheiro quando não houver alternativa que resolva, de imediato, o problema financeiro do teu Cliente
6ºProcurarás sem descanso soluções financeiras que permitam recuperar prontamente o dinheiro que emprestaste ao teu Cliente – mas sempre de maneira que os interesses dele não resultem prejudicados
7ºRecordar-te-ás sempre que o Banco só será bem sucedido aos olhos dos Accionistas se for um elo eficiente do Sistema de Pagamentos
8ºNão cairás na tentação de condicionar a tua actividade à dimensão dos teus Clientes
9ºTudo farás para conhecer e ser conhecido nos mercados onde actuares – pois só assim saberás os riscos a que te encontras exposto e encontrarás forma de os mitigar
10ºTerás sempre bem presente que só a liquidez é verdadeiramente importante, que a liquidez perde-se e ganha-se, desde logo, na Compensação Interbancária – e que, uma vez por outra, alguma vais perder.
vNem de propósito. Quando retirava a anterior Burricada do congelador onde a mantinha e me preparava para a servir ao respeitável público, eis que tropeço no anúncio de um Banco a promover, de forma particularmente agressiva, uma nova modalidade de depósitos bancários.
vTaxas assim e assado, vantagens para aqui e para acolá, o habitual em tais circunstâncias - e, por fim, argumento arrasador, capital garantido!
vCapital garantido? Como assim? Que garantia, se não palpável, pelo menos visível ou, apenas, perceptível, se oferecia ao depositante? Tilim!! A “palavra de honra” do próprio Banco depositário, nem mais.
vMas – o Banco depositário não é, ele, o verdadeiro e único do devedor dos depósitos bancários que recebe? É.
vE a palavra do devedor acrescenta algo ao crédito que ele, devedor, en su momento, será chamado a pagar? Não, nada.
vQuer o Banco em causa vincar, singelamente, que é um devedor de boa fé - como se a boa fé não fosse o pressuposto inspirador de qualquer contrato, ou o depósito bancário não fosse um contrato? Se sim, não se vê que tal aproveite ao depositante/credor.
vTalvez o Banco queira insinuar que os demais depósitos efectuados, quer junto dele próprio, quer junto de Bancos concorrentes, não gozam de igual garantia? Se assim for, está a concorrer de maneira desleal - e, coisa bem mais grave, a abalar a credibilidade no sistema bancário.
vNa verdade, entre nós - e dentro de limites relativamente amplos por depositante residente, todos os depósitos bancários estão assegurados, em primeira linha, por um Fundo de Garantia e, em desespero de causa, pelo contribuinte, através do Banco Central. Esta modalidade agora publicitada não deverá ser, portanto, excepção.
vEstou em crer que este Banco, com enorme inconsciência, tem a íntima convicção de que tudo o que faz é administrar o dinheiro dos depositantes – e que os depósitos que recebe são, por certo, passivo contabilístico (porque em algum lado teriam de estar contabilizados), mas não dívida substancial. Em linha, aliás, com o que a Demonstração de Resultados dos Bancos dá a entender.
vContudo, ao acenar com uma garantia que não existe, ele está objectivamente a enganar o mercado e a criar nos que se deixem convencer pelo anúncio uma falsa sensação de segurança reforçada. Além de, por antinomia, minar a confiança no sistema bancário.
vNão é justamente para pôr cobro, logo à nascença, a estes “exageros de publicitário” que andam por aí umas Autoridades de Supervisão e da Concorrência?
vHá profissões que ostentam, orgulhosas, os seus misteres. Mas outras parecem envergonhar-se daquilo que fazem. Os Bancos, por exemplo...É difícil encontrar outra actividade que se esconda tanto por detrás de um ror de eufemismos.
vVeja-se os tão publicitados “produtos financeiros”. Um produto, como se sabe, é um objecto, um bem que pode ser fruído independentemente da acção (ou colaboração) de terceiro. Existe, está ali, entre ele e quem o possui mais ninguém se interpõe: a lei protege a posse legítima e a fruição pacífica de um qualquer bem.
vNum contexto mais teórico, o legítimo possuidor de um produto está certamente exposto a uma grande variedade de riscos: vícios intrínsecos, inutilização ou perda, desapossamento (furto, roubo), etc. E mesmo a alguns riscos financeiros, como o risco preço (variação do valor do bem, em caso de venda).
vAgora, de dois riscos estará ele sempre livre: o risco decontraparte e o risco de crédito. Pela excelente razão que ficou dita mais acima: um produto, existindo, para frui-lo, ou consumi-lo, basta possui-lo.
vJustamente o oposto do que se passa com os instrumentos financeiros que os Bancos nuns casos, criam, noutros casos, apenas distribuem e negoceiam. Os instrumentos financeiros são, por definição, contratos – e, enquanto tal, envolvem inevitavelmente o riscode contraparte (a possibilidade de a parte contrária não cumprir pontualmente com as obrigações que livremente contraiu) ou, estando previstas prestações pecuniárias, o risco decrédito (a falha nos pagamentos devidos).
vAo falarem de “produtos financeiros” os Bancos estão a omitir informações da maior relevância para a formação da vontade dos seus clientes: induzindo nestes a falsa ideia de que os instrumentos financeiros têm uma existência própria, autónoma e completamente independente da entidade (por regra, um Banco) que os criou e que os deve.
vNada mais errado. Quem seja titular de um instrumento financeiro só poderá ver satisfeitos os direitos que a sua posse legítima confere enquanto o respectivo emitente existir e for solvente.
vOutro exemplo: a “concessão de crédito”. Ah! Que expressão mais altruísta! Que sentimento de bem fazer! Não mais negociadores astutos – antes, verdadeiros juizes (esse ar de superioridade, tão difícil de disfarçar!) a reconhecer e a recompensar o mérito dos comuns mortais.
vSó que os Bancos não concedem nada. Emprestam – emprestam dinheiro. Ou seja, compram dívida que não dispõe de outra via para ser colocada nos mercados financeiros - e dão em troca liquidez sob a forma de moeda escritural que os próprios Bancos criam expressamente para o efeito.
vEm termos simples, os Bancos entregam liquidez hoje para receberem mais liquidez no futuro – ficando, entretanto, expostos a pelo menos dois riscos: o riscodecrédito e o riscode contraparte (isso, isso - exactamente os mesmos riscos que inquinam os “produtos financeiros”).
vOra, falar de “empréstimos bancários” soa a usura – parece mal. “Conceder crédito” dá melhor nome à casa... E afecta os neurónios das Autoridades Monetárias, que vão no engodo e não se apercebem de que, nos tempos que correm, a principal fonte de liquidez (o crédito bancário) arrasta com ela o potencial explosivo do risco de crédito (Sim! A crise dos empréstimos subprime tem a ver com isto, também).
vNovo exemplo: as Demonstrações Financeiras dos Bancos. Quem olhar para o modo como os Bancos apresentam os seus Resultados reparará certamente que os custos do endividamento aparecem logo deduzidos dos proveitos (que deveriam ser só os proveitos recorrentes, o que raramente acontece), apurando-se um primeiro saldo (a margem financeira) – e só depois vêm os restantes custos e os Resultados Extraordinários.
vE então? Perguntar-se-á. Que mal há nisso? Nenhum – excepto que esse formato dá uma ideia distorcida da verdadeira natureza da actividade bancária.
vUma tal apresentação traduziria fielmente a realidade: (1) se os Bancos gerissem fiduciariamente um património que pertencesse, em primeira mão, aos depositantes – o que está longe de acontecer; (2) se os depósitos (e outros fundos reembolsáveis) não fossem, como são, dívida genuína, passivo que os Bancos depositários têm de servir, haja o que houver.
vOra, equiparar os fundos provenientes de depósitos (e outros fundos reembolsáveis), que representam risco decrédito e de contraparte, a uma vulgar matéria-prima, que não expõe terceiros a nenhum risco financeiro, é um logro.
vE fazendo como fazem, os Bancos passam a imagem de que os depósitos de clientes não são verdadeira dívida – e que as elevadíssimas rácios de endividamento com que operam (da ordem de 12:1, quando não de 20:1 ou mais) têm apenas uma existência contabilística, virtual, que não real.
vO pior é que os Bancos, com poucas excepções, acreditam em tal – e é precisamente assim que se vêem. Com a agravante de o malabarismo impedir comparações directas entre Bancos (e algumas outras Instituições de Crédito), por um lado, e as restantes empresas, por outro – o que mais reforça a sensação (que eles, Bancos, cultivam com esmero) de serem entes aparte, regidos por normas muito próprias e com uma economia só deles.
vNão são. São, sim, veículos de investimento caracterizados pelo modo como se financiam – a saber: através da criação de moeda escritural.
vUm último exemplo: os empréstimos subordinados (isto é, cuja graduação é inferior à de qualquer outro crédito, mesmo os créditos comuns), que não deixam de ser dívida, mas que os Bancos, e só eles, ainda que dentro de certos limites, podem equiparar a capital.
vSe a tese de Modigliani-Miller tiver um módico de verdade, os Bancos, com a benção dos reguladores, são assim o que mais se aproxima do que seja um almoço à borla.
vO mais surpreendente é que há por aí umas quantas Autoridades (Monetárias, da Concorrência e que tais) convictas de que, sem estes eufemismos, sem estas cortinas de fumo, sem as pequenas espertezas que ao comum mortal dariam talvez prisão, mas que se toleram porque praticadas por entes excepcionais e em contextos ditos de excepção, os Bancos não seriam nunca financeiramente sólidos.
vPor tamanha miopia, pagamos nós todos – e, por estranho que pareça, paga a estabilidade do nosso sistema bancário, também.