José Manuel Espírito Santo Silva (12 de Maio de 1945 - 25 de Fevereiro de 2023)
Ao conhecê-lo, ficava-se automaticamente seu amigo, tal a simpatia que irradiava; uma simpatia natural, calma, sem exuberâncias, a simpatia de um Senhor. Mas, ao conhecê-lo melhor, ficava-se fascinado com a sua bondade, uma bondade que era a essencial ausência de mal. E conhecendo-o mais, sentia-se-lhe a compaixão como o dever de homem rico, banqueiro.
Hoje, acordei a lembrar-me de um pensamento de André Maurois que li algures no qual – se não me engano muito - ele considera que a paz amolece os povos como aconteceu com os Celtas britânicos que perderam a sua tradicional vitalidade com a longa paz que os romanos lhes proporcionaram. Logo de seguida me lembrei de que todos conhecemos a Civilização de génese ateniense e tendemos a esquecer a homóloga espartana. Ou seja, mais vale viver em paz e manter uma reserva aguerrida, essa a que chamamos Forças Armadas. E que estas não amoleçam para que o povo não tenha que ir às armas.
Hoje, lembrei-me duma expressão que em tempos li algures dizendo que «a remembrance requires prudence» (1).
Para além da beleza fonética, ficou-me a ideia de que é necessário sermos prudentes quando puxamos pelas memórias para que a imaginação não deturpe o passado, para que vejamos hoje a realidade que foi sem os calores da circunstância, para termos uma visão desapaixonada do passado, para que fiquemos em paz com o que aconteceu nas nossas próprias vidas e na de todos, a História.
E por que é que hoje me lembrei disto? Porque hoje é Domingo e me sinto em paz.
18 de Julho de 2021
Henrique Salles da Fonseca
(1) - Talvez num livro de Henry David Thoreau mas a prodência sugere-me que não insista na referência
Soe dizer-se «a pedido de várias famílias» quando já não conseguimos identificar todos os pedidos de… qualquer coisa. No caso presente, fica, pois, o registo do pedido do meu Amigo Carlos Prieto Traguelho quanto ao modo como o Sô Manel se desenrasca sozinho e ficam sem menção especial os relativos à situação actual da «Fanie». Mais aproveito para informar neste breve intróito que a fantasia ficou lá a trás no texto inicial.
* * *
Cego que se prese usa bengala como valiosa substituta dos olhos falidos. E foi isso mesmo que fez o Sô Maneç durante uns tempos depois de a «Fanie» ter regressado à escola de cães-guia mas, por alguma razão que me escapou, decidiu abandonar o «varapau». Passou então a aceitar a boleia de quem segue na direcção que ele quer. Mas – e há sempre algum «mas» - poucas são as pessoas que sabem conduzir cegos: ou andam muito depressa, ou pegam no braço do cego, ou se esquecem de avisar da presença de um degrau,… Uma molhada de bróculos.
E, contudo, é muito fácil conduzir um cego:
1º- Deixe que seja o cego a pegar no seu braço ou ombro, não o contrário;
2º- Não puxe o cego, iguale a sua velocidade em relação à dele;
3º- Passe longe dos postes e outros obstáculos pois o cego vai ao seu lado e não a trás de si;
4º- Avise da existência de degraus.
Aos poucos, as pessoas da aldeia já vão sabendo destas normas e o Sô Manel já vai dando muito menos tropeções do que de início. Tout s’arrange…
E a «Fanie»?
Perguntei directamente ao Sô Manel quando, em Julho passado (2020)k também eu quase cego, nos encontrámos na esplanada.
- Mas que coincidência o Senhor perguntar-me por ela e eu ter telefonado ontem a saber se estava tudo bem. Que sim, tem estado como «mestra» de alunos cachorros mas há uma semana que está de licença de parto. Teve uma ninhada de seis canitos pretos, quatro meninos e duas meninas.
O Sô Manel é o cego da aldeia. Cegou já adulto tardio, está reformado com modesto conforto. Embarcadiço que foi, conheceu o mundo mas, agora, o seu mundo é a aldeia e, mesmo assim, nem toda – fica-se pelo parque central e respectivos limites pois mora do lado sul e o café a que vai diariamente fica no do norte. Não lhe conheço família mas pelo modo como veste, adivinho que tenha quem por ele veja e dele cuide – um cego não acerta nas cores nem engoma correctamente os vincos da roupa. Mas o que mais dá para ver na sua indumentária é o boné. Deve ter sido comprado nalgum porto inglês e estou mesmo a imaginar um Lord britânico gorducho e de grande bigodaça à caça do «famoso grouse» debaixo de um boné daqueles. Mas o Sô Manel não caça e limita-se a tomar um café simples, sem «mosca»[i] nem outros baptismos.
O seu luxo era «Fanie», a cadela guia que o levava de casa ao café e de volta[ii].
Preta, raça Labrador, de meia idade, bem tratada, lembrava-me o tal Lord da bigodaça, estava gorducha. O seu trabalho diário limitava-se a conduzir o dono ao café e volta numa distância total de menos de trezentos metros. O resto do tempo passava-o a comer, a dormir e a fazer mimos ao dono. Pouco se mexia e o Sô Manel achava que a cadela estava a ficar farta daquela vida, vida estúpida para qualquer cão. E começou a pensar que não tinha o direito de submeter a cadela a tanta desmotivação. Pensou soltá-la no parque mas logo imaginou a canzoada labrega da aldeia à volta dela a tentar indecências na via pública e afastou a ideia. A «Fanie continuava a usar o quintal da casa para as suas precisões. E de ideia em ideia, foi rejeitando todas as hipóteses sem descortinar uma que lhe agradasse e pudesse dar alguma alegria a sua amiga. Sentia que a neura avançava pela vida da «Fanie» e desesperava-se com tentar retribuir a bondade da cadela. Ele não se dava ao direito de causar neura a quem só lhe fazia bem. E tomou a decisão: devolveria a «Fanie» à escola dos cães-guia se lhe garantissem que ela ficaria como «mestra» dos cães alunos e que não voltaria a ser submetida a um suplício neurótico a guiar algum cego de mau feitio. Ele próprio havia de se desenrascar sem guia. Já conhecia bem o caminho, tinha um ou outro ponto de referência pelo tacto, contava os passos, ia libertar a cadela.
Telefonou para a escola, obteve a garantia que pediu, combinaram a data e a hora em que estariam na esplanada do café para a «Fanie» regressar à sua origem dos tempos infantis.
Nessa tarde, como sempre, lá foram até à esplanada mas a certa altura, o Sô Manel ouve vozes desconhecidas e sente a cadela a mudar de rumo. Assusta-se e grita: -Fanie, Fanie, para onde vais que me desgraças? Mas logo uma das tais vozes desconhecidas lhe disse que não havia perigo, que o cão estava a desviar-se das obras que estavam a fazer no passeio para os carros não voltassem a estacionar ali e os peões pudessem deixar de andar na estrada.
- E logo isto havia de acontecer no próprio dia em que combinei mandar a «Fanie» embora! – cogitava o Sô Manel - Isto tem mensagem… deixa cá compensar o pobre animal pelo berro que lhe dei. – e assim foi que, chegados à esplanada, para além do seu café, encomendou um «bolo de arroz» para a sua amiga. Esta, gulosa, tragou-o num instante quase não dando tempo de abanar o rabo. Vai daí, regressou a rotina e, com ela, o seu par, o tédio. E a sempre presente paciênte bondade de «Fanie» com a mão mole do dono ao longo do dorso numa festa suave…
Até que chegou o dia combinado para a cadela mudar de vida.
Estranhamente, o dono metera quase todos os seus brinquedos (todos menos um dos mais pequenos) num saco grande de supermercado. Não percebia o que se estava a a passar mas lá cumpriu a sua missão até ao outro lado do parque. Lenta, paciente e bondosamente (sem bulhas com gentes nem cães), chegaram à esplanada, tomaram café e «bolo de arroz» sem perceber mas sem perguntas e ali ficaram com as pessoas do costume a dizerem as baboseiras do costume mas o saco dos brinquedos e o «bolo de arroz»…???
Foi então que chegou um carro com o escrito «Escola de cães-guia» que parou ali mesmo à frente. Um rapaz e uma rapariga apearam.se e, mesmo antes de cumprimentarfm o Sô Manel, a rapariga pôs um joelho no chão em frente da «Fanie», afagou-he a cabeça com as mãos por baixo das orelhas, deu-lhe uma pequena turra testa com testa, disse qualquer coisa e a cadela, como só as «mulheres» sabem fazer, emitiu um gorjeio que toda a gente percebeu ser um choro de felicidade. Era a sua antiga dona nos tempos em que era cachorrinha. O rapaz deu-lhe uma bolacha daquelas de que os cães mais gostam e só então disseram ao Sô Manel que já ali estavam. Cumprimentos feitos, palavras de circunstância, troca dos documentos da identidade da cadela e despedidas rápidas. Ao Sô Manel tremeu-se-lhe o queixo, formou-se-lhe uma bola na garganta, engoliu um soluço e estendeu a mão para afagar o dorso da sua amiga preta mas a cadela já lá não estava. À janela traseira do carro, a «Fanie» sorria como só os cães felizes sabem sorrir.
O Sô Manel ainda sibilou «Fanie, Fanie», meteu a mão no bolso e afagou o pequeno brinquedo que cativara à sua amiga.
Na esplanada fez-se silêncio e naquele dia os donos do estabelecimento ofereceram o café e o «boço de arroz». É que, por ali, todos sabem que em canez, bondade se diz «Fanie».
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Setembro de 2020
Henrique Salles da Fonseca
NOTA FINAL – Esta história é quase verdadeira; a fronteira com a fantasia situa-se onde o leitor quiser
- E, contudo, ela move-se – disse Galileu depois de ter sido obrigado a abjurar a sua teoria de que a Terra gira em volta do Sol. Abjurou, sim, mas salvou a pele.
Conta-se a história de dois amigos que foram ao funeral de um terceiro e que, convidados a proferirem palavras de encómio ao defunto, concluíram que, com a morte do amigo, à Terra restava a hipótese da implosão. E, uma vez concluídas as exéquias, um deles pergunta ao outro o que é que ele gostaria que se dissesse quando morresse. A resposta foi imediata: - Mexeu-se!
* * *
Quem nasce, vive e morre. O nascimento é uma ocorrência partilhada com a mãe; a vida é eminentemente social; a morte é o único acontecimento exclusivo, não partilhado. A morte pode ser testemunhada mas não é partilhada. Pode haver várias mortes simultâneas mas cada uma é ocorrência exclusiva.
A vida para além da morte é matéria de fé, não é chamada para este escrito.
«Eppor», se o “A bem da Nação” tiver uma certidão de óbito, isso não impedirá que, esporadicamente, se mexa numa vida para além da morte. Mas disso dará sinal.