NÃÃÃÃO, que IDEEEEEEEEIA!!!!! Nem pensar nisso é bom.
Este foi um diálogo que não ouvi em parte alguma do seringal que fomos visitar. Pois é! Há quem diga que não havia escravatura na economia da borracha. Mais: quem disser o contrário, não sabe o que diz ou mente descaradamente.
Sim?
As coisas passaram-se entre os finais de 1800 e os princípios de 1900. Foram cerca de 30 anos de euforia na Amazónia, centrada sobretudo em Manaus e em Belém (apesar de Belém ser administrativamente do Pará e não do Estado da Amazónia).
Foi a economia da borracha a partir do látex da Hevea brasiliensis, árvore originária da região amazónica. E essa vasta região não se localiza assim tão longe daquele que então era o pobre Nordeste brasileiro onde as gentes praticamente morriam à fome e à sede. Mas quando esses miseráveis famintos ouviram falar de trabalho no Amazonas, não hesitaram em mover céus e terras para emigrarem para lá e, economizando, mandarem dinheiro à família que ficava para trás. E foram...
E foram debitados do custo do transporte logo que puseram pé no barco que os levaria Amazonas acima. E foram debitados pelo preço da alimentação que lhes era fornecida a bordo. E foram debitados de tudo, não sei mesmo se do ar que respiravam. Chegados a Manaus (ou a Belém), eram então concentrados num grande recinto donde saíam para os seringais necessitados de mais seringueiros. E continuavam a ser debitados pelo custo do transporte, da alimentação e de...
Paralelamente, o Governo do Brasil era creditado pelo Governo dos EUA em US$ 100,00 por cada seringueiro chagado a Manaus (ou a Belém).
Até que chegavam ao ponto de destino, o seringal a que alguém os afectara, para serem debitados pelo valor do equipamento que lhes era fornecido para poderem trabalhar e pelo valor de tudo o mais que pudessem consumir. Isto significava que, antes de extraírem o primeiro grama de látex, já estavam endividados perante o dono do seringal (que já assumira a dívida deles desde a origem no Nordeste) de um modo que não poderiam alguma vez ter imaginado.
Em contrapartida, eram creditados pelo valor do látex que recolhiam durante a noite pois que era impossível suportar o calor durante o dia. E como o dia era muito quente, os seringueiros aproveitavam-no para... derreterem ao lume o látex recolhido e produzirem as bolas que constituíam a unidade de transporte do produto final. Esta bola era submetida a exames de qualidade e se fosse detectada alguma fraude (incorporação de pedras ou terra), o seringueiro era pura e simplesmente executado. Ponto final na trapaça.
Bola de latex
(por trás da minha cabeça está uma peneira pendurada num pilar da casa, não um chapéu)
E como eram calculados todos estes valores lançados a débito e a crédito de cada seringueiro? Sim, eram calculados segundo um método muito “claro”: o do capataz.
Assim ficavam os seringueiros eternamente a tentar saldar a dívida até que... E a quem conseguisse saldá-la, logo o patrão o presenteava com algum descanso em que lhe fornecia comida, bebida e mulheres de prazer. Custos estes que lhe eram debitados, obviamente, de modo que o ciclo se repetia por aí além...
Poupanças a enviar às famílias no Nordeste? Pas du tout, je crois. Essas, lá longe, sempre tinham menos uma boca para alimentar.
Manaus floresceu com a economia do látex com que se fabrica a borracha, matéria prima fundamental para o fabrico de pneus. O cliente final era, pois, a indústria automóvel americana.
Muitos seringais eram de propriedade estrangeira e o Museu da Borracha que eu visitei era a reconstituição do seringal de um alemão.
Mas havia o comércio internacional e os ingleses não deixaram essa matéria passar ao largo. De tal modo que os cais flutuantes de Manaus que eu pisei são os mesmos que foram construídos com ferro produzido em Bristol; assim como o edifício da Alfândega foi transportado, peça por peça, de Bristol para o local em que actualmente se encontra, ali junto ao porto fluvial manauara.
E a riqueza era tal e tanta que as Senhoras não queriam que a roupa fosse lavada com a água do Rio Negro e mandavam-na lavar fora... em Lisboa ou em Bristol, conforme o navio que estivesse para zarpar a caminho da Europa.
E da Europa chegou a ópera. Os manauaras gostavam de ópera? Isso era o que menos importância tinha. O que era importante era eles terem um teatro maior que o A la Scala, de Milão. E tiveram-no! Ainda lá está e é um ex libris de Manaus.
Para que os mortos não se revoltem nos caixões, o grande Teatro Amazonas continua a apresentar um ou dois espectáculos de ópera por temporada mas durante o resto do ano a sala tem uma agenda intensíssima sobretudo com espectáculos de teatro (não obrigatoriamente musicado) quase todas as manhãs e com entrada livre. São iniciativas de teatro experimental, de teatro amador, de teatro infantil, etc. Mas é lá que se exibe a Orquestra Filarmónica do Amazonas e se realizam muitos espectáculos de dança e até mesmo de ballet [1].
Mas os ingleses agarraram nuns pezinhos de Hevea Brasiliensis e viajaram com eles até ao Oriente onde fizeram plantações mais rentáveis que as amazónicas (amazonenses, como se diz por lá) e a economia brasileira da borracha definhou.
Assim como a estrada Trans-Amazónica está intransitável e foi invadida pela floresta em muitos troços - tudo tem que ser transportado de barco ou avião - também os grandes seringais deixaram de ser úteis e aquela ubérrima região brasileira procura agora novo modelo de desenvolvimento. Fizeram de Manaus um porto franco que atraiu muitas indústrias de montagem (e não de produção propriamente dita). Chegou-se à conclusão de que o produto fica mais caro do que o admissível e tudo está em recessão.
O modelo de desenvolvimento terá que ser outro. Haverá isenção política suficiente para o tema ser debatido com seriedade? O actual clima político brasileiro não é bom conselheiro para debates serenos.
Até aqui contei sobre a situação política que encontrei quando cheguei ao Brasil (1º texto desta série), sobre algumas particularidades físicas e onomásticas do Amazonas (2º texto), do absurdo de certas obras públicas (3º texto), de alguma cultura popular amazónica (4º texto), da vida dos caboclos (5º texto) e da bicharada (6º texto). Resta agora contar sobre tudo o resto.
Aqui vai...
No dia de intervalo entre os dois cruzeiros ou, se se quiser, entre as duas partes do nosso cruzeiro, com o navio acostado em Manaus, para não ficarmos um dia sem nada que fazer, fizemos (extra-cruzeiro) um passeio de barco visitando uma aldeia índia situada a mais de duas horas de lancha rápida a montante no Negro.
Trata-se de uma aldeia construída recentemente para albergar um pequeno grupo de famílias índias que decidiram emigrar para sul, vindos da «floresta lá de cima» que, traduzindo por miúdos, significa a região fronteiriça com a Venezuela e a Colômbia, lá «onde Judas perdeu as botas» e é o local dos maiores segredos, de guerras secretas, de pistas clandestinas para aviões de contrabando, lá onde reina a insegurança de quem quer ter vida tranquila. E por isso estes índios puseram-se nas pirogas e desceram o Negro até que a FUNAI – Fundação Nacional do Índio[1] as albergou e lhes proporcionou um modo de vida cantando e dançando para turistas. E os jovens vão à escola onde aprendem o curriculum geral brasileiro e, em paralelo, a sua própria cultura de modo a que não se sintam marginalizados pela cultura nacional e não percam os laços com a sua raiz nativa.
Cantam e dançam para nos mostrarem o seu típico e no final vêm buscar-nos para dançarmos com eles. Felizmente escolheram uma dança muito fácil e nenhum de nós fez figura de grande imbecil pé de chumbo. Só que como fomos todos dançar (até mesmo os coxos), não ficou ninguém para filmar e não há testemunho da nossa «brilhantíssima» participação. Eu dancei com uma velha e com uma nova.
E na zona das casas (a das «ocas») lá estava a electricidade do programa lulista «Electricidade para todos» ficando o tipicismo absoluto limitado à zona dos espectáculos.
Uma particularidade: estes índios já escolhem com quem querem casar e nem o cacique nem os pais metem mais o bedelho no processo.
E por aquelas partes já ninguém exibe as vergonhas, todos usam cuecas
Regressados ao navio e retomado o cruzeiro, visitámos (bem menos afastados da civilização) outra aldeia índia. E aqui não há fingimentos pois ninguém pretende fazer de conta que vive à moda antiga: cultivam os seus valores tradicionais mas abraçam totalmente a civilização moderna sem complexos de inferioridade.
Professor primário, alguns alunos e familiares
Pelo contrário, estão empenhados em contrariar o mais que caduco slogan que afirmava que o índio padecia de capito diminutia e não era capaz de absorver a cultura dos brasileiros de primeira. O exemplo foi dado pelo próprio cacique ao fazer um curso de formação e ser oficialmente reconhecido como agente de saúde. Seguiu-se um outro elemento da aldeia que decidiu ser professor do ensino secundário levando à instalação duma escola oficial na própria aldeia evitando o desenraizamento de quem quisesse estudar para além do ensino elementar.
O professor que fundou a escola secundária
Escola esta que tem aulas de informática; aldeia esta em que se faz selecção e valorização de resíduos. O desafio que agora se coloca é o do futuro dos jovens que decidem seguir para o ensino superior. E a questão é: será que depois de licenciados regressam às aldeias para ajudarem a sua gente ou será que só voltam durante as férias? Aconteça o que futuramente acontecer, uma coisa é certa: já não haverá grandes pretextos para os índios instruídos se perderem na selva urbana encharcados em álcool ou noutros vícios. O índio tem as mesmas capacidades que qualquer outra pessoa e definitivamente tem o direito (e a obrigação) de se dar ao respeito e ser útil à Nação.
No próximo texto vou referir um pouco da economia seringueira.
Todas as pessoas a quem dizíamos que íamos à Amazónia nos vaticinavam perigosíssimos encontros com o Zika e com outras criaturas medonhas, malvadas e perniciosas.
Mas ir à Amazónia e não encontrar mosquitos seria o mesmo que ir a Lübeck e não encontrar Thomas Mann. É que o escritor andou muito por fora e, portanto, o desencontro não seria difícil. Assim terá sido com o velho Zika que deve ter emigrado e não lhe vimos o rasto.
Marginalmente interessados no tema, logo à chegada perguntámos por ele e foi-nos de imediato garantido por um taxista – logicamente, profundo conhecedor de Entomologia, um verdadeiro sábio – que não havia por lá qualquer registo de algum turista atacado pelo Zika. Ouvi e calei pois que me senti incapaz de pôr em causa tanta ciência certa e exacta. Limitei-me a pensar (maldosamente, claro) que qualquer turista que se zikasse haveria de ir morrer à sua terra natal e Manaus continuaria imune a tão blasfemo registo. É que o prazo de incubação da moléstia é mais longo do que a estadia normal de um turista naquelas paragens e, portanto, as estatísticas locais apontam para o nihilismo zikal e a propaganda noticiosa é que é torpe e mal intencionada. O bichinho até não faz mal a ninguém desde que se esteja alfeire[1].
Na dúvida, cumprimos as sugestões que há anos nos deram na Consulta do Viajante quando fomos a uma zona muito palustre, o Crocodile River no Kruger Park, na África do Sul: alguns dias antes da viagem, começar a tomar um qualquer complexo de vitamina B para exsudarmos ácido e o mosquito não poisar em cima de nós; comprar num qualquer supermercado e usar uma dessas pulseiras que se diz afugentarem a mosquitada; pôr o ar condicionado no máximo do frio enquanto estivéssemos fora do quarto e pô-lo moderadamente quando lá estivéssemos para não apanharmos uma pneumonia e morrermos da cura em vez de por via da moléstia. E assim é que já chegámos a Lisboa há uns quantos dias e de Zika nem sombras.
Mas certa manhã fui ver o nascer do Sol à varanda do camarote e notei que houvera durante a noite um suicídio colectivo da mosquitada pois o chão estava quase todo coberto de cadáveres dessas alimárias malignas. Senti-me nas exéquias do escritor alemão mas sugeri às simpáticas faxineiras que fizessem o que melhor achassem. E foram esses os únicos mosquitos de que dei nota em toda a Amazónia que visitei.
Em compensação, vi calmíssimas preguiças, amistosas e sorridentes, que amolecem o coração do mais céptico forasteiro que se lhes junte às cercanias. É fantástico o contraste que essas «tender and sweet creatures» fazem com a macacada saltitante, irrequieta e banano-dependente. Fiquei fã dos “macacos de cheiro” que hão-de ter um qualquer nome científico que ignoro por completo mas que algum leitor encontrará a partir da imagem de um deles em cima da minha cabeça.
E que mais vi? Muito mais...
Houve um filme intitulado «Dança com lobos» (que, afinal, era só um) de que me lembrei quando a cobra sucuri se enrolou à minha volta e me obrigou a trejeitos para me soltar sem repelões e sem ela se afligir.
E quanto a bicharada fico-me por aqui pois acabei por não pegar no crocodilo de um metro que estava ali na aldeia cabocla para turista se fazer fotografar e muito menos no paizinho dele que tem «só» quatro metros.
O «IBEROSTAR Grand Amazon» é um belo navio com 72 cabines, o que equivale a uma capacidade de hospedagem para 144 passageiros.
Ideia inicial de um brasileiro a quem terão faltado os «meticais», foi o projecto posto à venda e procurado quem o comprasse. Saiu vencedora a empresa espanhola IBEROSTAR que é proprietária de uma rede hoteleira de certa dimensão que introduziu algumas alterações no projecto (consta que para poder dizer que se trata de um projecto espanhol, o que é totalmente discutível) e mandou-o construir em Manaus[1].
Concebido para navegar nos rios que o viram nascer – o Negro, o Solimões e o resultante Amazonas – é suposto não ir ao mar pois só tem 2 metros de calado. E não tem nada que ir ao mar pois é ali que ele pertence com enorme vantagem para a economia amazónica.
O cruzeiro tipo implica zarpar de Manaus, passear 5 dias no Solimões, aportar de regresso a Manaus e zarpar de novo mas agora para um passeio também de 5 dias no Negro. Há quem faça só uma das duas partes mas nós fizemos o programa completo e ficámos com pena quando tudo chegou ao fim. Da primeira parte transitámos 12 foliões para a segunda e foi nesta que a lotação praticamente fez o pleno.
Logo no primeiro dia fomos visitar uma família cabocla que nos mostrou a sua casa, o seu modo de vida, a culinária típica, enfim, o seu mundo. Vivem numa casa de madeira relativamente ampla no topo de uma margem a salvo das cheias cíclicas mas, na dúvida, erigida em palafita.
Caboclo[2] (caboco, mameluco, caiçara, cariboca ou curiboca) é o mestiço de branco com índio, ribeirinho que vive nas margens dos rios, mas também era a antiga designação do indígena brasileiro. Pode também ser sinónimo de caipira.
Posto flutuante de abastecimento de combustível
Os caboclos formam o mais numeroso grupo populacional da Amazónia entrando na contagem dos cerca de 44% de pessoas consideradas pardas no Brasil, grupo que também inclui mulatos, cafuzos e várias outras combinações da mistura de negros ou índios com outras raças, como negro e oriental, índio e oriental, etc. Economicamente, são pequenos produtores familiares que vivem da exploração dos recursos da floresta e da pesca.
O caboclo vive próximo do igapó (floresta alagada) e navega pelos igarapés que são as passagens para as canoas por dentro dos labirínticos igapós. Imagine-se o nosso espanto, turistas desprevenidos, quando constatámos que, naquela casa erigida em local tão remoto, havia luz eléctrica, arca frigorífica, TV satélite, etc.
Igapó – foto feita quando navegávamos num igarapé
Foi Lula da Silva que lançou o programa «Luz para todos» e não nos podemos agora admirar que esta gente tenha por ele uma admiração certa. “Roubou mas fez” – ouve-se dizer. Mas eu, estrangeiro, tive mais que fazer do que me imiscuir na política brasileira.
(continua)
Henrique Salles da Fonseca
(no jardim da casa do caboclo)
[1] Informações que me foram dadas pelo próprio Comandante numa das curtas conversas que tivemos.
[2] A palavra "caboclo" procede do tupi kari'boka, que significa "procedente do branco"; não confundir com “carioca” que significa “casa do branco”.
O golfinho amazónico tem características diferentes das dos que conhecemos na Europa. Mas em vez de estar para aqui a escrever sobre essas diferenças, mais vale publicar imagens que falem por si e a quem quiser saber mais sugiro que procure na Wikipédia.
Roaz corvineiro (de água salgada)
Boto cor-de-rosa (de água doce)
Para nós, leigos na matéria, as grandes diferenças são no focinho e na cor. Mas o amazónico também nasce cinzento e vai mudando de cor à medida que envelhece.
Mas se os dos mares inspiraram a imaginação humana com as histórias dramáticas do desaparecimento de marinheiros encantados pelo canto das sereias, os amazónicos arcam com a responsabilidade de ocorrências de cariz bem diferente – não relativas ao desaparecimento de ninguém mas sim ao aparecimento de mais alguém.
Durante as festas em honra de S. João, Stº Antonio e S. Pedro, a população ribeirinha – a dos caboclos – celebra com bailes, fogos de artifício, fogueiras e, muito importante, com fartos comes e bebes. Reza a lenda que é nessas alturas (sobretudo nas dos «bebes») que o boto cor-de-rosa sai do rio transformado num jovem elegante e belo, jovial e bom dançarino, muito bem vestido de branco e com chapéu. Esse desconhecido e atraente rapaz conquista com facilidade a mais bela e desacompanhada jovem que se cruze no seu caminho, dança com ela a noite toda, encanta-a e engravida-a.
Afinal, a culpa é do boto. E isto é sendo cor-de-rosa. Imagine-se o que seria se tivesse cor mais viril...
* * *
Mas as imensas águas amazónicas possuem uma outra maravilha da Natureza, o pirarucu, tema importante da mitologia indígena.
Reza a lenda que Pirarucu é o disformismo de um índio que pertencia à tribo dos Uaiás. Bravo guerreiro, tinha, contudo, mau carácter, apesar de ser filho de Pindarô, bom homem e cacique respeitado da tribo.
Para além de ter por costume insultar os deuses, era vaidoso, egoísta e excessivamente orgulhoso do poder que se atribuía por ser filho do chefe. Certa vez, enquanto o pai fazia uma visita amigável a tribos vizinhas, Pirarucu aproveitou-se da ocasião para tomar como reféns alguns membros de uma das aldeias visitadas e executou-os sem qualquer motivo.
Tupã, o deus dos deuses, puniu então Pirarucu e, lançando-lhe o mais poderoso relâmpago, chamou a deusa das torrentes a quem ordenou que provocasse as mais fortes torrentes de chuva sobre Pirarucu que estava então a pescar na companhia de outros índios nas margens do Tocantins.
O fogo de Tupã foi visto por toda a floresta. Quando Pirarucu deu conta do fogo e das ondas, fingiu ignorar tudo com uma risada e palavras de desprezo mas, contudo, ainda tentou escapar. Só que, enquanto corria por entre as árvores da floresta, um relâmpago fulminante acertou-lhe no coração. Mas mesmo assim ainda se recusou a pedir perdão.
Todos aqueles que se encontravam por ali correram assustados para a selva, enquanto o corpo de Pirarucu, ainda vivo, foi levado para as profundezas do rio e transformado num peixe gigante e escuro. Pirarucu desapareceu nas águas, nunca mais voltou à terra firme mas por um longo tempo foi o terror da região.
Esta espécie de peixe, o Arapaima gigas, possui características muito particulares pois tem grande porte (pode crescer até aos três metros e pesar cerca de 250 kgs), tem escamas tão grandes que delas se pode fazer porta-chaves e, mais importante, possui dois aparelhos respiratórios – as guelras para a respiração aquática e a bexiga-natatória modificada especializada para funcionar como pulmão.
À semelhança dos golfinhos, também o pirarucu vai adquirindo a cor rosada à medida que envelhece. Está visto que tudo depende de algum alimento existente nas águas amazónicas pois os humanos, as vacas, os macacos e as preguiças da região, vivendo em terra firme, não tendem para a cor rosa.
E aqui entra a minha incongruência total pois fez-me muita impressão ver um bicharoco destes em vias de esfola (nem sequer publico as fotos que me deram dessa operação) mas, depois de cozinhado, gostei imenso dele no prato ao jantar.
Já referi algumas facetas do ambiente político que encontrei no Brasil e de certas particularidades da geografia. Falta agora contar tudo o resto.
Tinha pensado deixar para o fim mas acho melhor contar já que alguém deve ter posto o projecto do aeroporto de Manaus ao contrário sobre a mesa de trabalho e tudo foi construído às avessas. Como assim? Exactamente, às avessas.
Eu creio que mandaria a lógica pôr a aerogare entre a pista e a cidade e não no meio da selva obrigando a contornar a pista por uma das extremidades para se ir para Manaus num percurso bem mais longo do que o razoável. Numa cidade sem ligações rodoviárias com o exterior, a desculpa de que a intenção era desenvolver a selva parece-me completamente esfarrapada. Sim, os macacos e as preguiças não se desenvolveram mais lá porque lhes puseram a aerogare frente aos focinhos e os homens continuaram a rumar à cidade deixando a selva para a bicharada. Ou terão os «experts» imaginado construir avenidas e arranha-céus na floresta? Imagine-se o que seria então o alarido dos ecologistas por esse mundo além...
Deixem-se, pois, de desculpas tolas e assumam que tomaram umas caipirinhas a mais, que o projecto foi posto ao contrário e fiquem-se assim.
Mas há mais.
Não é que durante a presidência do cefalópode se construiu uma ponte sobre o rio Negro ligando Manaus a... nenhures? Pois é isso mesmo: partindo do pressuposto discutível de que aquela belíssima ponte começa em Manaus e acaba do outro lado, ela começa numa cidade importante que actualmente tem um pouco mais de dois milhões de residentes e acaba numa floresta onde residem algumas centenas de pessoas dispersas por inúmeras pequenas aldeias sendo que a maioria dessa pouca gente vive em regime de auto-suficiência não precisando de Manaus praticamente para nada, a não ser em casos de emergência médica. E num caso destes, a ambulância demora cerca de 30 a 40 minutos a chegar junto do paciente para depois demorar outros 30 a 40 minutos a chegar ao hospital enquanto a «ambulancha», sempre presente na outra margem, demora não mais que 30 minutos a percorrer a distância mais longa entre o extremo dos caminhos que podem ser percorridos por uma ambulância e o cais de Manaus. E a pergunta é: justificava-se construir uma ponte (que tem a fama de ser a ponte mais cara do mundo, tal a corrupção que rodeou a sua construção) para acorrer a casos de excepção?
E se a outra margem se começar a desenvolver com avenidas e arranha-céus, lá teremos de novo os ambientalistas a berrarem urbi et orbe e os políticos verdes a legislarem proibições sucessivas de tudo o que possa ser o derrube de uma árvore ou a destruição de um ninho.
Mas é claro que estes são problemas que uma qualquer boa dose de corrupção resolverá com presteza. E no Carnaval seguinte o samba soará na mesma.
Este, o ambiente moderno, dito civilizado, do branco. No próximo texto vou abordar alguma mitologia indígena.
Todos sempre ouvimos dizer que o rio Amazonas nasce nos Andes peruanos e que é o mais comprido em todo o mundo no seu longo percurso até ao Atlântico, ali não muito longe do Equador.
Mas na vertente onomástica não é assim: nasce nos Andes, sim, onde lhe chamam Ucayali sendo que à entrada no Brasil lhe mudam o nome para Solimões assim se mantendo até que, lá bem à frente, na zona de Manaus, se encontra com o rio Negro e só então e conjuntamente, assumem o nome de Amazonas numa amizade que se prolonga por cerca de 1800 quilómetros sem deixarem de unir esforços para vencerem a Pororoca não muito longe da foz.
Mas a verdade geográfica é a de que aquele curso de água é, de facto, o mais comprido do mundo. E tem ainda mais: há poucos anos descobriu-se que a verdadeira nascente é uns tantos quilómetros mais a montante do que se considerava até então pelo que o recorde mundial, se já era muito grande, aumentou ainda mais para uns impressionantes 7.025 kms desde a nascente até à foz (o Nilo tem 6.671 kms e o Mississipi 6.270 kms).
Só que não nos podemos referir apenas ao comprimento e devemos comparar também os caudais. Assim, o Amazonas tem um caudal médio de 209.000 m3/segundo, o Mississipi 18.000 m3/segundo e o Nilo tem uns «modestos» 2.830 m3/segundo. Para nós, lisboetas, termos uma ideia mais concreta, fiquemo-nos com a informação de que o nosso Tejo tem um caudal médio de 444 m3/segundo. Todos eles medidos na respectiva foz e, de acordo com a Wikipédia, com recurso à mesma técnica de medição.
Compreendemos deste modo por que razão os primeiros navegadores do Amazonas julgavam estar perante um braço de mar que entrava pela terra dentro. Foi preciso verificarem a salinidade para se deixarem de ilusões e terem que reconhecer que nunca tinham imaginado coisa assim.
A cena em que o avião nos poisou em Manaus tem, pois, uma dimensão que classifico de “mega” nas três dimensões em que habitualmente nos movemos mas também a quarta dimensão, a do tempo, tem algumas particularidades interessantes. E aí está a velocidade média das águas alcalinas do Solimões a ser registada na ordem dos 10 kms/hora assim transportando muitos materiais que não têm tempo de se sedimentarem e dando ao rio a cor barrenta opaca que o caracteriza enquanto as águas ácidas do Negro se deslocam apenas a cerca de 2 kms/hora assim deixando afundar tudo o que lá caia e dando ao rio uma aparência negra pela decomposição desses materiais lá no fundo. Eis como, conjugando as questões dos Ph’s, das velocidades e dos materiais em suspensão, se nos apresenta um espectáculo digno de nota na confluência desses dois prodígios da Natureza, o Solimões e o Negro, com as respectivas águas a não se misturarem e a correrem paralelas durante quilómetros e quilómetros Amazonas a baixo.
E o que é a Pororoca que referi lá a trás? Pois é o resultado do confronto das águas do Amazonas com as do Atlântico assumindo a forma de uma onda que se desloca rio acima até por aí além... incitando muitos aventureiros a surfarem-na ao longo dos cerca de 50 kms que ela percorre e muitos barqueiros a evitarem-na porque ela não é uma onda vulgar, é semelhante a um tsunami que chega a ter 6 metros de altura e se desloca a uma velocidade de 30 kms/hora lançando o pandemónio nas margens que derruba.
Mas eu não fui meter-me com ela, deixei-a para os aventureiros e para as vítimas porque continuo a achar que com o mar não se brinca, porque não sendo propriamente sossegado também não sou surfista e sobretudo porque não tenho vocação de vítima.
Acho que o Amazonas tem aspectos mais benignos do que a Pororoca e desses contarei mais lá mais para a frente...
Fui ao Brasil para confirmar que o Zica estava solto e que o Lula estava preso mas nenhuma das ocorrências se verificou: logo que cheguei a Manaus disseram-me que por ali não se registou até agora qualquer caso de padecimento causado pelo vírus e enquanto por lá andei, o debate jurídico-político foi muito tenso mas rondou apenas a destituição da auto intitulada «Presidenta» bem como a impugnação da golpada presidencial para arranjar estatuto especial que assegurasse a imunidade ao putativo gatuno.
Decididamente, a «Globo» tirou o tapete debaixo dos pés do PT, da «Presidenta» e do putativo. E quando a Rede decide levar uma campanha por diante, nada a pára. Assim foi que sempre que passei frente a um televisor, lá estava o canal 25 a contar as enormidades por que o Brasil tem passado sob a égide da mais desenfreada e abjecta corrupção. Atendendo a que, no Brasil, a «Globo» tem muito mais credibilidade do que o «Diário do Governo» ou lá como se chama o jornal oficial deles, as consequências são devastadoras para o Poder instituído. Um dos resultados imediatos desta campanha de desacreditação dos políticos com a mão na porta do cofre público é o aumento vertiginoso da economia paralela com o Contribuinte a fazer o mais que pode por fora da legalidade tributária gozando com um Fisco incapaz de chegar a toda a imensa parte onde a fuga acontece. «Para que vou eu pagar se o meu contributo vai por certo parar à mão dos gatunos?» – eis o mote que se ouve por todo o lado. Se a economia paralela cresce mais do que a fiscalizada e se dentro das grandes empresas estatais vale tudo menos deixar de roubar, o resultado fica à vista: o PIB dá um trambolhão, o défice público mostra as garras, o serviço da dívida encarece, a emissão monetária intensifica-se, a credibilidade da moeda fenece, a inflação floresce... E se ao cidadão comum começa a sobrar muito mais mês no fim do dinheiro, ai «Presidenta, Presidenta»... não digo onde vais parar porque o pudor mo impede.
Eis o Brasil que fui encontrar, eis o cenário que estava longe de desejar. Depois do que ouvi, creio agora que, quanto pior, melhor, para que os acontecimentos políticos avancem decisivamente e algo de muito significativo possa ocorrer e não mais seja necessário que a Oposição política e o Poder Judicial brasileiros venham reunir-se em Lisboa como que temendo represálias físicas lá dentro. E se esses temores são reais (durante esta minha breve estadia em solo brasileiro, um advogado que pedira a prisão de Lula foi assassinado no seu escritório por um matador que se fizera passar por cliente), então dá para perguntar onde está o Estado de Direito.
Garanto que o General Villas Bôas, Comandante Geral do Exército Brasileiro, não foi a Manaus enquanto eu lá estava para me pedir opinião sobre os acontecimentos no país dele mas, em compensação, explicou-me que as Forças Armadas agirão apenas no quadro constitucional. Sim, fiquei bastante mais tranquilo pois quando lá cheguei vi jeitos de se envolverem todos num grande sarilho connosco, inocentes turistas, metidos na algazarra. O Exército não está de prevenção, está alerta. O que quer isso dizer objectivamente na terminologia militar brasileira? Ignoro mas admito que tenham apenas posto a bala na câmara. Na câmara da espingarda, ainda não na dos Deputados.
E porquê tanta relevância à quadrícula militar amazonense? É que é lá que está toda a estrutura de guerra na floresta (a tal que foi à Colômbia acabar com as FARC a pedido do Governo daquele país) a fazer a segurança do triângulo fronteiriço Brasil-Venezuela-Colômbia, região por onde o PT poderia ter a veleidade de pedir ajuda a um qualquer Maduro esquerdino das redondezas.
O que captei da mensagem do General ao Governo foi: não agiremos fora do quadro constitucional vigente mas não pensem que os vossos amiguinhos de fora podem entrar por aqui nem por qualquer outro ponto mais aberto da fronteira.
E eu fiquei muito mais tranquilo para navegar no Solimões e no Negro e me embrenhar na floresta a ver cobras, macacos e índios. Avisadamente, não me propus nadar com jacarés nem com piranhas.