Foi preciso ter uns maduros 73 anos para hoje ver pela primeira vez uma palavra tão portuguesa como eu, mas com que nunca me tinha cruzado: «perfunctório».
Caramba, estou sempre a aprender!
Ofereço-me esta lição como presente de Natal mas, como sou magnânimo, divido-o equitativamente com quem ler este escrito.
Ido ao DicionárioPriberam, fiquei a saber que palavra tão estranha significa algo que dura pouco, que é leve, passageiro, por oposição a duradouro ou a permanente; que é pouco importante ou pouco aprofundado, que é ligeiro, superficial, por oposição a profundo; que se faz só para se dizer que se fez e não por necessidade ou com algum fim útil, por oposição a essencial, a indispensável.
Parece que estou a ler uma frase jocosa do Eça em que, pela fonética, se assemelha a «supositório». Mas também poderia ser o nome de algum instrumento próprio para ele limpar as fossas nasais. Esta última hipótese deve ser por causa da sílaba «func» e, claro está, pela sonoridade inerente à draconiana função naso-expiratória.
Mas não, a frase que li é a tradução portuguesa da que presumo sua homóloga inglesa escrita por um americano judeu auto-exilado em Roma na sequência do suicídio da mulher duma ponte abaixo algures na Carolina do Sul.
Para começo de livro[1] – e isto passa-se logo na primeira página do primeiro capítulo - acho «especial» para não dizer macabro.
Então, foi pelas seis da manhã que os dois carabinieri de guarda à Embaixada de França acenderam cigarros e puseram em marcha o carro de serviço em que se preparavam para fazer «a perfunctória ronda ao Palazzo Farnese».
E duma assentada fiquei a saber que a Embaixada de França junto do Quirinale está instalada no Palácio Farnese cujo périplo se pode fazer perfunctoriamente.
A talhe de foice, o facto de uma Embaixada estar «junto do Quirinale» não tem qualquer significado de proximidade geográfica mas sim de «acreditado junto da República Italiana», ou seja, do palácio que é a residência oficial do Chefe do Estado Italiano.
Mais: qualquer país que se prese tem duas Embaixadas em Roma sendo uma «junto do Quirinale» e outra «junto da Santa Sé» (do Vaticano).
No nosso caso, ambas as Embaixadas estão instaladas principescamente mas não investiguei se o seu périplo também se pode fazer perfunctoriamente. A ver…
24 de Dezembro de 2018
Henrique Salles da Fonseca
[1] - «MÚSICA DE PRAIA», Pat Conroy, Círculo de Leitores, ed. Setembro de 1996, pág. 27
Eis o espelho da confusão semântica e de vocabulário que tantas vezes existe nas cabeças dos utentes daquele Centro de Saúde...e ao fim e ao cabo de todos nós.
Agradecimentos às funcionárias administrativas Inês Simões e Fernanda Veloso, assim como à técnica de cardiopneumologia Sandrina Marto.
6h00m da manhã. O Sol já aparecia lindo sobre o azul celeste.
À porta do Centro de Saúde, um pequeno grupo de utentes organizava-se para a marcação da consulta "à vaga".
A maioria já se conhece. Afinal todos são já bem experimentados nesta forma bem própria de utilização da consulta.
Aliás, o Director do Centro de Saúde até mandou instalar uns banquinhos de jardim no local, para tornar a espera mais atractiva.
É uma excelente oportunidade para trocar experiências e conhecimentos, que todos vão acumulando ao longo do seu percurso de contactos com os médicos e hospitais.
A Maria do Céu vai à consulta do "Parlamento", a Dona Gertrudes vai à consulta da "Monopausa" e a Rita é que as corrige informando-as que aquela consulta chama-se de Planeamento Familiar.
Uma tem um "biombo" no "úbero" e leva os resultados duma "fotografia", outra está preocupada com comichões na "serventia" do marido, até porque ele, havia poucos dias, tinha já sido consultado pelo médico por estar com os "alforges" todos inflamados. Alguém logo ali diagnosticou um problema na "aprosta" do marido.
Mais à distância desta conversa, um grupo de senhoras falavam dos métodos contraceptivos e, uma delas, peremptória, afirmava que nunca aceitaria porem-lhe uma "fateixa" dentro da barriga!
Uma outra discordava, e lá lhe foi dizendo que, por causa disso, é que teve tantos filhos, felizmente todos de parto normal, só o último foi de "açoreana", mas aquele que lhe dava mais problemas era o mais velho que já era "toxico-correspondente"!
Noutro local, um grupo de homens mais idoso ia falando da relação entre o "castrol" e a "atenção".
Às tantas um deles começa a explicação cuidada dum acidente que tivera. Por isso é que tinha a vacina contra o "tecto" em dia, mas o acidente estragou-lhe a "tibiotísica" e causou-lhe uma hérnia "fiscal", pelo que tinha ido fazer uma "fotocópia" e um "traque".
Outro referiu que nunca teve problemas de ossos, o seu problema era uma grande "espirrogueira na peitogueira".
Uma senhora, atraída pela conversa, queixava-se de entupimento no "curso" com dores "alucinantes" quando se "abaixava". Além disso cobria-se de suores e "gómitos", ficava "almariada" e tudo acabava com uma forte "encacheca", ficando cerca de 3 dias com cara de "caveira misteriosa". Alguém lhe falou nuns supositórios que a poderiam ajudar mas ela já os conhecia, aparentemente tinham sido muito difíceis de engolir, pelo que o melhor ainda era o "clistério".
Finalmente, uma outra senhora queixava-se da "úrsula" no "estambo", pelo que vinha mostrar o resultado duma "endocuspia" e ainda algumas análises especiais, como a Proteína C "Reaccionária".
8h30m da manhã. Ainda havia muito para conversar mas a Inês, jovem funcionária administrativa do Centro de Saúde, obviamente tarefeira, acaba de chegar. Os funcionários administrativos não podem chegar atrasados, caso contrário, confundir-se- -iam com os doutores.
- Quem é o primeiro, se faz favor? Ora diga lá o seu nome?
- Josefina Trindade
- Idade?
- 67 anos.
- Estado?
- Constipada, muito constipada!
9h00m da manhã. Aparece a enfermeira Freitas que grita para a pequena multidão barulhenta que cerca a Inês:
- Quem está para medir as tensões? É você? Então entre e diga-me qual é o seu problema?
- Sabe, senhora enfermeira, o meu problema é ter uma doença "arrendatária" que "arrendei" do meu pai e já me levou uma vez aos cuidados "utensílios" do hospital. Afecta-me as "cruzes renais" e por isso dá-me muita "humidade à volta do coração". Aliás, o doutor pediu-me uma "pilografia" e um "aerograma" que aqui trago e recomendou-me beber pouca água.
Finalmente, chega o médico, que logo dá início às consultas:
- Então de que se queixa?
- De uma angina de peito, senhor doutor. Tudo começou há uma semana quando fui às urgências. O médico disse-me que era uma angina na garganta, mas a angina começou a descer e agora apanha-me o peito todo!
Aos poucos, os utentes iam entrando e saindo, com melhor ou pior cara.
Alguns perguntavam à Inês onde era o "pechiché da retrosaria" para pagarem a taxa moderadora
Na recepção de um salão de convenções em Fortaleza, Brasil
- Por favor, gostaria de fazer a minha inscrição para o Congresso. - Pelo seu sotaque vejo que o senhor não é brasileiro. O senhor é de onde? - Sou de Maputo, Moçambique. - Da África, né? - Sim, sim, de África. - Aqui está cheio de africanos, vindos de toda parte do mundo. O mundo está cheio de africanos. - É verdade. Mas se pensar bem, veremos que todos somos africanos, pois a África é o berço antropológico da humanidade... - Pronto, tem uma palestra agora na sala meia oito. - Desculpe, qual sala? - Meia oito. - Pode escrever? - Não sabe o que é meia oito? Sessenta e oito, assim, veja: 68. - Ah, entendi, *meia* é *seis*. - Isso mesmo, meia é seis. Mas não vá embora, só mais uma informação: A organização do Congresso está cobrando uma pequena taxa para quem quiser ficar com o material: DVD, apostilas, etc., gostaria de encomendar? - Quanto tenho que pagar? - Dez reais. Mas estrangeiros e estudantes pagam *meia*. - Hmmm! que bom. Ai está: *seis* reais. - Não, o senhor paga meia. Só cinco, entende? - Pago meia? Só cinco? *Meia* é *cinco*? - Isso, meia é cinco. - Tá bom, *meia* é *cinco*. - Cuidado para não se atrasar, a palestra começa às nove e meia. - Então já começou há quinze minutos, são nove e vinte. - Não, ainda faltam dez minutos. Como falei, só começa às nove e meia. - Pensei que fosse as 9:05, pois *meia* não é *cinco*? Você pode escrever aqui a hora que começa? - Nove e meia, assim, veja: 9:30 - Ah, entendi, *meia* é *trinta*. - Isso mesmo, nove e trinta. Mais uma coisa Senhor, tenho aqui um folder de um hotel que está fazendo um preço especial para os congressistas, o Senhor já está hospedado? - Sim, já estou na casa de um amigo. - Em que bairro? - No Trinta Bocas. - Trinta bocas? Não existe esse bairro em Fortaleza, não seria no Seis Bocas? - Isso mesmo, no bairro *Meia* Boca. - Não é meia boca, é um bairro nobre. - Então deve ser *cinco* bocas. - Não, Seis Bocas, entende, Seis Bocas. Chamam assim porque há um encontro de seis ruas, por isso seis bocas. Entendeu? - Acabou? - Não, Senhor. É proibido entrar no evento de sandálias. Coloque uma meia e um sapato...
Foi então que o africano se fartou… e porque era educado, não disse o que pensou.
Eu sei, o assunto — o Acordo Ortográfico de 1990 — é uma chatice, ninguém está para se preocupar com ele e dá algum trabalho tentar perceber melhor do que se trata. E também sei, mais de um quarto de século decorrido (!), que o destino já está traçado de há muito e a batalha perdida, por natureza: manda quem pode, obedece quem deve. Todavia, porque estas coisas da língua pátria e da pátria não me são indiferentes, e para memória futura, volto ao assunto, agora que ele voltou à actualidade pela mão de Marcelo Rebelo de Sousa.
Quando o acordo foi tornado público, eu fui um dos subscritores do primeiro manifesto contra o AO, assinado entre, vários outros, por Marcelo. Mais de vinte anos depois, entre adormecimentos e ressurreições, escutados e voltados a escutar todos os argumentos de ambos os lados (sobretudo, os argumentos contra, porque do outro lado se dispensaram soberbamente de contra-argumentar), a minha posição de início mantém-se inalterável: não sei quem pediu o acordo, não sei que necessidades reais ele veio satisfazer, não sei em que aproveita a Portugal e à língua portuguesa, não sei o que o justificou, o que o permitiu e o que o fez impor-se à força. Nas inúmeras vezes, aqui ou no Brasil, em que fui chamado a pronunciar-me sobre ele, o que sempre disse e mantenho, hoje mais a sério do que a brincar, foi que o AO nasceu porque um restrito grupo de académicos portugueses queria fazer umas viagens à borla ao Brasil e o pretexto encontrado foi o de negociar um acordo ortográfico — que os brasileiros nunca tinham pedido, nunca tinham sugerido e nunca tinham imaginado. E, por isso, os nossos auto nomeados embaixadores da língua chegaram lá e disseram aos brasileiros: “Estamos aqui para fazer um AO em que todos os falantes de português passarão a escrever como vocês”. Um acto colonial ao contrário.
Em 2006, e subitamente, o AO, então conhecido pelo nome de Aborto Ortográfico, foi ressuscitado por um governo socialista e, sem mais, mandado entrar em vigor rapidamente. E porque para tal faltavam as ratificações necessárias, conforme o próprio acordo previa, a minoria militante alterou unilateralmente as regras, dizendo que ele se tornava vinculativo desde que apenas três países falantes de português o ratificassem. É essa golpada política que torna o AO juridicamente inexistente. À data de hoje, nem Angola nem Moçambique o ratificaram e o Brasil, que suspendeu durante dois anos a sua entrada em vigor, vive numa espécie de limbo jurídico em que ninguém sabe se o aplica conforme as suas regras ou apenas na parte que lhe interessa e que não o obriga a mudar o que quer que seja na sua grafia (entre outras coisas, o AO não previu que, na situação actual do Brasil, o único tema que lhes interessa seja traduzido por essa palavra tão portuguesa que é o impeachement…). Com a súbita ressurreição de 2006, o AO começou então a ser discutido mais a sério. Do lado dos oponentes, produziu-se uma larga série de textos, conferências e até livros, todos demonstrando, ou pretendendo demonstrar, a irracionalidade linguística, a nulidade jurídica e a falsidade dos argumentos sobre as alegadas vantagens do acordo. Do lado oposto, nada: sempre umas vagas e repetitivas declarações do professor Malaca Casteleiro e do doutor Carlos Reis, cuja argumentação, na essência, pode ser resumida a duas palavras: “Porque sim”.
Fizeram-se abaixo-assinados, petições à Assembleia da República e até se conseguiu que esta nomeasse uma comissão, dirigida pelo deputado Michael Seufert, para analisar o bom ou mau fundamento dos opositores do AO. A comissão concluiu pela absoluta razão destes, dizendo que o AO não podia estar em vigor juridicamente, que fora imposto ao país sem nenhuma discussão prévia e séria e que não se demonstrava quaisquer das vantagens que ele aduzia: não unificou a grafia da língua, antes a dividiu mais — entre países que escrevem segundo a grafia anterior, os que escrevem segundo a grafia do acordo (praticamente só Portugal), e o Brasil, que escreve como muito bem entende; separou, em Portugal, a grafia por gerações, coincidindo várias que escrevem com regras diferentes; e, quanto à tão invocada unificação do mercado editorial, seguindo as novas regras e em todos os países falantes de português, revelou-se a ficção que qualquer ser minimamente inteligente esperaria que fosse (e eu sou disso exemplo concreto: tenho cinco livros editados no Brasil e, por expressa vontade minha, nenhum deles de acordo com a grafia brasileira ou do AO, sem que tal me tenha prejudicado minimamente, em termos de mercado).
É arrepiante que, por vontade de uma vanguarda auto nomeada para tal, um país se disponha a mudar uma língua que tem oito séculos de existência sem o consultar e à revelia daqueles que são os principais utilizadores dessa língua. No “DN” de anteontem, li um artigo do constitucionalista Jorge Bacelar Gouveia, em defesa do AO, que é eloquente da leviandade com que uma verdadeira questão de soberania nacional foi e é tratada por quem pode e manda. Com o devido pedido prévio de desculpas, eu afirmo que esse texto é um chorrilho de asneiras filhas da ignorância, de falsas verdades, de banalidades argumentativas e de uma arrogância intelectual, expoente de um certo terrorismo académico que tolhe e verga os políticos às suas ameaças. Mas o rei vai nu. Toda a abundante produção de razões que contrariam as apregoadas vantagens do AO é reduzida por ele a um rol de “queixas, queixumes, remoques ou piadas” — o que quer dizer que não leu nada nem se deu ao trabalho de pensar em nenhum dos argumentos da parte contrária. E esta — a parte contrária — é arrumada por ele na categoria de “velhos” ou então de “uma certa elite bem pensante (incapaz) de terçar armas por coisas mais substanciais que verdadeiramente interessam a Portugal”. Seria caso para responder que não se percebe, então, por que razão o jovem Bacelar Gouveia perde, ele próprio, tempo a terçar armas pelo AO e não por coisas bem mais importantes… Mas a acusação é notável: a tal “elite bem pensante” é apenas a larguíssima maioria dos principais interessados e utilizadores da língua, que não foram nunca consultados sobre o assunto e que rejeitam o AO: escritores, jornalistas, professores, editores. E que, como disse o presidente da Academia das Ciências de Lisboa, Artur Anselmo, foram submetidos à força por um “acto despótico e ditatorial”, às mãos de outra elite, que não sei se é bem pensante ou apenas bem mandante. Por isso, pode Bacelar Gouveia, como “argumento” final, afirmar que a aceitação do AO “será uma questão de tempo” — como todas as imposições ditatoriais. Porque, embora vivamos em democracia, a nossa classe política está aqui tolhida pelo medo de enfrentar o terrorismo académico e pela chatice de ter de se ocupar de um assunto “menor”, que (mal) julgavam resolvido. Mas é sem dúvida arrepiante que, por vontade de uma vanguarda auto nomeada para tal, um país se disponha a mudar uma língua que tem oito séculos de existência sem o consultar e à revelia daqueles que são os principais utilizadores dessa língua. É uma lição de democracia para não esquecer.
Para terminar, não resisto a dizer ao constitucionalista que usar argumentos tão estafados como o de Farmácia com F e não ph para tentar demonstrar as vantagens dos acordos ortográficos, é apenas ridículo: a palavra não tem origem na língua portuguesa nem latina, mas sim grega e por isso é que em línguas tão despiciendas como a inglesa e francesa se continua a escrever com ph. E se quer realmente saber como nem sempre os acordos ortográficos contribuem para enriquecer a língua, recomendo-lhe a releitura de Camilo: aí poderá constatar como, vários acordos e século e meio depois, a língua portuguesa se empobreceu.
Quando eu escrevo a palavra acção, por magia ou pirraça, o computador retira automaticamente o C na pretensão de me ensinar a nova grafia.
De forma que, aos poucos, sem precisar de ajuda, eu próprio vou tirando as consoantes que, ao que parece, estavam a mais na língua portuguesa.
Custa-me despedir-me daquelas letras que tanto fizeram por mim.
São muitos anos de convívio.
Lembro-me da forma discreta e silenciosa como todos estes CCC's e PPP's me acompanharam em tantos textos e livros desde a infância.
Na primária, por vezes gritavam ofendidos na caneta vermelha da professora: - não te esqueças de mim!
Com o tempo, fui-me habituando à sua existência muda, como quem diz, sei que não falas, mas ainda bem que estás aí.
E agora as palavras já nem parecem as mesmas.
O que é ser proativo?
Custa-me admitir que, de um dia para o outro, passei a trabalhar numa redação, que há espetadores nos espetáculos e alguns também nos frangos, que os atores atuam e que, ao segundo ato, eu ato os meus sapatos.
Depois há os intrusos, sobretudo o R, que tornou algumas palavras arrevesadas e arranhadas, como neorrealismo ou autorretrato.
Caíram hifenes e entraram RRR's que andavam errantes.
É uma união de facto, e para não errar tenho a obrigação de os acolher como se fossem família. Em 'há de' há um divórcio, não vale a pena criar uma linha entre eles, porque já não se entendem.
Em veem e leem, por uma questão de fraternidade, os EEE's passaram a ser gémeos, nenhum usa (^^^) chapéu.
E os meses perderam importância e dignidade; não havia motivo para terem privilégios. Assim, temos janeiro, fevereiro, março, são tão importantes como peixe, flor, avião.
Não sei se estou a ser suscetível, mas sem P, algumas palavras são uma autêntica deceção, mas por outro lado é ótimo que já não tenham.
As palavras transformam-nos.
Como um menino que muda de escola, sei que vou ter saudades, mas é tempo de crescer e encontrar novos amigos.
Sei que tudo vai correr bem, espero que a ausência do C não me faça perder a direção, nem me fracione, e nem quero tropeçar em algum objeto.
Porque, verdade seja dita, hoje em dia, não se pode ser atual nem atuante com um C a atrapalhar.
Só não percebo porque é que temos que ser NÓS a alterar a escrita, se a LÍNGUA É NOSSA...? ! ? ! ?
Os ingleses não o fizeram, os franceses desde 1700 que não mexem na sua língua e porquê nós?
Quase todos os portugueses sofrem de pleonasmite, uma doença congénita para a qual não se conhecem nem vacinas nem antibióticos. Não tem cura, mas também não mata. Mas, quando não é controlada, chateia (e bastante) quem convive com o paciente.
O sintoma desta doença é a verbalização de pleonasmos (ou redundâncias) que, com o objectivo de reforçar uma ideia, acabam por lhe conferir um sentido quase sempre patético.
Definição confusa? Aqui vão quatro exemplos óbvios “Subir para cima”, “descer para baixo”, “entrar para dentro” e “sair para fora”.
Já se reconhece como paciente de pleonasmite? Ou ainda está em fase de negação? Olhe que há muita gente que leva uma vida a pleonasmar sem se aperceber que pleonasma a toda a hora.
Vai dizer-me que nunca “recordou o passado”? Ou que nunca está atento aos “pequenos detalhes”? E que nunca partiu uma laranja em “metades iguais”? Ou que nunca deu os “sentidos pêsames” à “viúva do falecido”?
Atenção que o que estou a dizer não é apenas a minha “opinião pessoal”. Baseio-me em “factos reais” para lhe dar este “aviso prévio” de que esta “doença má” atinge “todos sem excepção”.
O contágio da pleonasmite ocorre em qualquer lado. Na rua, há lojas que o aliciam com “ofertas gratuitas”. E agências de viagens que anunciam férias em “cidades do mundo”. No local de trabalho, o seu chefe pede-lhe um “acabamento final” naquele projecto. Tudo para evitar “surpresas inesperadas” por parte do cliente. E quando tem uma discussão mais acesa com a sua cara-metade, diga lá que às vezes não tem vontade de “gritar alto”: "Cala a boca!”?
O que vale é que depois fazem as pazes e vão ao cinema ver aquele filme que “estreia pela primeira vez” em Portugal.
E se pensa que por estar fechado em casa ficará a salvo da pleonasmite, tenho más notícias para si. Porque a televisão é, de “certeza absoluta”, a “principal protagonista” da propagação deste vírus.
Logo à noite, experimente ligar o telejornal e “verá com os seus próprios olhos” a pleonasmite em directo no pequeno ecrã. Um jornalista vai dizer que a floresta “arde em chamas”. Um treinador de futebol queixar-se-á dos “elos de ligação” entre a defesa e o ataque. Um “governante” dirá que gere bem o “erário público”. Um ministro anunciará o reforço das “relações bilaterais entre dois países”. E um qualquer “político da nação” vai pedir um “consenso geral” para sairmos juntos desta crise. E por falar em crise!
Quer apostar que a próxima manifestação vai juntar uma “multidão de pessoas”?
Ao contrário de outras doenças, a pleonasmite não causa “dores desconfortáveis” nem “hemorragias de sangue”. E por isso podemos “viver a vida” com um “sorriso nos lábios”. Porque alguém a pleonasmar, está nas suas sete quintas. Ou, em termos mais técnicos, no seu “habitat natural”.
Mas como lhe disse no início, o descontrolo da pleonasmite pode ser chato para os que o rodeiam e nocivo para a sua reputação. Os outros podem vê-lo como um redundante que só diz banalidades. Por isso, tente cortar aqui e ali um e outro pleonasmo. Vai ver que não custa nada. E “já agora” siga o meu conselho: não “adie para depois” e comece ainda hoje a “encarar de frente” a pleonasmite!
Ou então esqueça este texto. Porque afinal de contas eu posso estar só “maluco da cabeça”