RUI KNOPFLI - AUTO-RETRATO
De português, tenho a nostalgia lírica de coisas passadistas,
de uma infância amortalhada entre loucos girassóis e folguedos,
a ardência árabe dos olhos, o pendor para os extremos:
da lágrima pronta à incandescência súbita das palavras contundentes,
do riso claro à angústia mais amarga.
De português, a costela macabra, a alma enquistada de fado,
resistente a todas as ablações de ordem cultural
e o saber que o tinto, melhor que o branco, há-de atestar a taça na ortodoxia
de certas vitualhas de consistência e paladar telúrico.
De português, o olhinho malandro, concupiscente e plurirracial,
lesto na mirada ao seio entrevisto, à nesga de perna, à fímbria de nádega,
a resposta certeira e lépida a dardejar nos lábios,
o prazer saboroso e enternecido da má-língua.
De suíço tenho, herdados de meu bisavô, um relógio de bolso antigo
e um vago, estranho nome.
RUI KNOPFLI
(1932–1997), viveu em Moçambique até 1975, um dos nomes mais importantes da vida cultural moçambicana. Consciente do labor poético, nunca cedeu a imediatismos portadores de ideologias, mantendo a sua independência artística, autonomia e, decerto, exclusividade. Autor bipátrida, cuja obra, para além de outros temas, denuncia uma procura sempre aflita de raízes e identidade (a nível pessoal e literário). Hoje em dia recuperado pela voz de novas gerações de poetas. Dentro da sua obra destacam-se as coletâneas «O País dos Outros» (1959), «Mangas Verdes Com Sal» (1969), «Memória Consentida», «20 Anos de Poesia – 1959/1979» (1979), «O Monhé das Cobras» (1997).