SEM RANCORES
Fortaleza portuguesa de Baçaim, Índia
Portugal sentia-se esmagado pelo vizinho que não lhe reconhecia a autonomia política e logo percebeu que ou ganhava dimensão ou deixava de existir como Nação soberana. Por isso iniciou em 1415 a expansão para o Ultramar, senda na qual construiu um Império de dimensão suficiente para lhe garantir a existência.
E foi em 1430 que os monges da Ordem da Trindade se instalaram definitivamente em Tavira ali construindo o «Hospital do Espírito Santo» para apoio aos navegantes e combatentes no norte de África. De tal modo a sua acção se destinava a apoiar os agentes da conquista que há quem considere este como sendo o primeiro «Hospital do Ultramar» português.
Dará para imaginar no que nessas épocas remotas consistiam os hospitais e que medicina neles se praticava?
Fossem quais fossem, eram os tratamentos que à época se conheciam mas a higiene devia ser bem duvidosa. Normalmente, aproveitavam-se umas casas que estivessem livres e de que o Alcaide ou Governador militar pudessem dispor nelas autorizando a entrada de doentes que se recolhiam a montes de trapos a que chamavam enxerga. Era sobre esses trapos que se derramavam os humores sempre fétidos só que alguns purulentos e outros apenas orgânicos. Dá para imaginar...
Quem desses doentes tratava eram religiosos que tudo faziam por amor a Deus pois outro sentimento não poderá ser invocado no meio de tanta pústula, escara, febre e gemido. Era pois necessário que os religiosos seguissem os mareantes. Sobretudo a partir do momento em que pelo ano de 1434 Gil Eanes dobrou o Cabo Bojador e em que a evacuação de doentes para Portugal deixava de ser possível sem acrescidos riscos na sobrevivência do infeliz. A expansão da Fé passou a ser anunciada como um objectivo das descobertas portuguesas mas não restam muitas dúvidas de que só assim é que se conseguiria convencer a Igreja a acompanhar esses meio azougados aventureiros que estavam certamente muito mais interessados no ouro da Mina e nos curativos hospitalares do que na piedade inspirada no crucifixo.
Não cabendo aqui resumir o que foi o percurso imperial português, basta referir que foram três os valores que perenemente resultaram como distintivos dos povos colonizados: a religião, a língua e os genes.
E se a componente religiosa começou por se justificar no âmbito do apoio sanitário aos mareantes nos 17 hospitais edificados entre Tavira e Goa, logo passou a constituir principal motivo oficial da expansão, pia cobertura do prosaico comércio de ouro e de outras cobiças nessas épocas hoje distantes. Estando então a sede do Direito Internacional Público localizada na Roma papal, foi a bênção obtida para protecção do negócio privado e assim alcançada a plena legitimidade do processo imperial.
Eis como, de meros auxiliares, os religiosos passaram a desempenhar um papel fulcral na epopeia imperial portuguesa: de humildes limpadores de pústulas, ei-los alcandorados a guardiães da legitimidade em sede de Direito Internacional Público.
Mas a introdução do pensamento europeu nas longínquas paragens dos Vedas significou uma verdadeira revolução com a Índia posta na necessidade de dialogar com um tipo de raciocínio completamente diferente do seu. Ainda hoje em curso, esse relacionamento nem sempre dialogante, oscila entre a aceitação completa do pensamento ocidental e a perseverança rígida nas doutrinas antigas, encontrando os partidários destas últimas um forte apoio nas correntes nacionalistas. Na discussão com o Ocidente e no terreno das concepções tradicionais hindus, assumiu a maior relevância o filósofo Sarvepalli Radhakrishnan que foi o primeiro Vice-Presidente e segundo Presidente da União Indiana de 1962 a 1967.
Mas hoje, o pós colonialista português, já não arvorado em conquistador nem se julgando superior, estabelece ligações para o diálogo em total equidade com os povos que governou por esse mundo além e algures na História. Sem espingardas ou canhões para ameaçar com a morte nem tampouco com crucifixos para gerir o temor da morte.
Apesar de, na hora da partida da Índia, termos visto as costas da Igreja que lá deixámos, não guardamos rancores mas o diálogo hoje é sobretudo laico. E que Sarvepalli Radhakrishnan sirva de exemplo dialogante a bem da sã convivência entre os povos. Mas, se disso for alguma vez o caso, que tudo se passe em serena convenção ecuménica sem as velhas arrogâncias, afinal espúrias em quem «assentou praça» a limpar humores fétidos.
Março de 2015
Henrique Salles da Fonseca