ENTRE O NADA E O IMPOSSÍVEL
“Como vivo num país em que a norma é não ler e o leitor é considerado uma espécie de aberração, não posso senão respeitar as afectações, as obsessões e as pretensões dos poucos que lêem e criam bibliotecas no meio do tédio e da grosseria gerais”.
in “Como eu me desfiz de alguns dos meus livros”, «OUTRAS CORES – Ensaios sobre a vida, a arte, os livros e a cidade», EDITORIAL PRESENÇA, 1ª edição, Março de 2009, pág. 119 e seg.
Orhan Pamuk, turco ocidentalizado de Istambul, escritor profissional, ganhou o prémio Nobel da Literatura em 2006.
Toda a tónica da sua obra se centra na falta de enquadramento de alguém pertencente a uma família com várias gerações ocidentalizadas a viver num país predominantemente muçulmano, cheio de tensões internas entre os laicos que puxam para a Europa e os outros, os que puxam para o Corão. O drama reside na alternativa entre a perda de valores civilizacionais e a prevalência destes, tidos por retrógrados. E como não há outra transcendência que localmente tenha direito à vida, a desorientação navega entre o nada e o impossível.
O pior é quando o nada está associado à miragem europeia e quando o tradicionalismo muçulmano é tido como uma ameaça por uma parcela crescente de europeus. Onde fica a Turquia? Haverá alguma “ponte sobre o Bósforo” que una estas duas margens da sociedade turca, ou tudo não passa duma fricção entre duas placas tectónicas civilizacionais?
Terão os turcos ocidentalizados um código moral e ético próprio, laico, fundamentado em princípios não obrigatoriamente ligados ao Decálogo judaico-cristão que lhes permita algum posicionamento frente ao Islão?
Sim, não nos podemos esquecer que a base estaminal de cada civilização é uma religião associada. Como poderão, então, os agnósticos e ateus turcos posicionar-se num cenário em que numericamente são esmagados por uma multidão crente numa religião que vem dando provas de grande proselitismo?
Temo que, por muito imponentes que sejam, as pontes sobre o Bósforo não terão qualquer influência numa futura secessão da Trácia relativamente à Ásia Menor. E já não sei o que dizer de um Curdistão independente...
Que têm os turcos ocidentalizados a ver com as políticas de Erdogan de regresso à islamização e ao banimento de muito do que fez Atatürk?
Os turcos não têm o hábito da leitura? Temo que cada vez mais seja impossível ser-se escritor na Turquia pois cada vez mais haverá cada vez menos leitores de leituras pagãs.
Eis o tipo de problemas por que passei quase incólume das duas vezes que visitei a Turquia. Mas Erdogan ainda fazia cerimónia e Orhan Pamuk ainda não chegara à minha leitura.
Hoje, temo pela Turquia.
Maio de 2016
Henrique Salles da Fonseca
(MAI11, Afrodisias, Turquia)