GLOBALIZAÇÃO DE ROSTO HUMANO
“A utopia é boa enquanto não se torna realidade. Não é um objectivo, é um horizonte em movimento.”
(...)
Apraz-nos recordar dois importantes autores portugueses que, um no século XVI e outro no século XVII, contribuíram com uma reflexão analítica sobre essa primeira globalização em curso e com uma proposta de humanização, assente em critérios cristãos, desse processo que estava a assumir rumos desumanizantes e pouco tendentes à construção de um mundo pacífico e harmónico. Fernando Oliveira, na sua obra Arte da Guerra do Mar editada em 1555, louvando o pioneirismo português na criação de conhecimento inédito e global, ao qual atribui uma verdadeira epopeia gnosiológica que superou e corrigiu os dados científicos gregos e romanos, denunciou as novas redes de opressão global que as potências cristãs europeias estavam a criar, nomeadamente o comércio esclavagista em que se fazia de seres humanos, livres por natureza, objectos de comércio e de exploração laboral. É o primeiro intelectual português a denunciar de forma veemente e absoluta a escravatura e a qualificá-la como inaceitável enquanto prática de reinos cristãos.
Outro grande autor foi António Vieira que, no século seguinte, percebeu os limites e as contradições desumanizantes do processo de globalização promovido pela Europa cristã. O Padre António Vieira foi em Portugal um dos mais argutos críticos preocupados com o estado do mundo e a sua deriva desumanizante. Um desses diagnósticos literariamente geniais pode ser encontrado nos “Sermões” que dedicou ao “proto-missionário” jesuíta do oriente e do extremo oriente. De facto, ficou para a história a vida extraordinariamente excessiva de São Francisco Xavier, guiada pela sua “santa loucura” de Deus, que inspirou reflexões não menos extraordinárias como as de Vieira. Tendo por referência a experiência de Xavier, comparou o mundo a um hospital de loucos, num sermão dedicado às doudices deste missionário: os loucos que estão acima da razão e os loucos que estão abaixo da razão.
“Debaixo desta breve prefação, o assunto que hoje hei de pregar são as doudices de São Francisco Xavier. E para que os escrúpulos, que espero se hão de converter panegíricos, entretanto tenham mão em si, suponho brevemente que assim como há doudices que argúem falta de juízo, assim há doudices que o qualificam e acreditam; assim como há doudices vãs, assim há doudices santas. Texto expresso de David: Qui non respexit in vanitates, et insanias falsas [Sl 39, 5][1]. Fala de um homem sábio e sisudo que toda a sua esperança pôs em Deus e diz que se não deixou enganar das vaidades e doudices falsas. Logo, há doudices falsas e doudices verdadeiras? Assim é. E quais as verdadeiras e quais as falsas? As falsas são as dos doudos que seguem a vaidade: Vanitates et insanias falsas; as verdadeiras são as dos doudos que seguem o contrário das mesmas vaidades, que é a verdade. Mas se seguem a verdade, por que são doudos? Porque toda a doudice se opõe ao uso da razão diferentemente. Os excessos dos maus obram contra a razão, por isso são viciosos e vãos; os excessos dos Santos obram sobre a razão e por isso são sólidos e verdadeiros. Uns e outros, doudos nesta grande casa de loucos, que é o mundo, têm o seu hospital separado: o dos Santos está nos arrabaldes do Céu, para onde sobem; o dos maus nos arrabaldes do inferno, aonde se precipitam; uns e outros andam fora de si como doudos: os maus fora de si porque se buscam; os Santos fora de si porque se deixam.”
Neste sermão célebre dedicado às “doudices” de Francisco Xavier, o primeiro missionário global de que Vieira se considerava uma espécie de heterónimo e seguidor, agora nas Índias Ocidentais, o grande pregador jesuíta diagnosticou pela primeira vez aquilo a que podemos chamar a doença da globalização, caracterizada pelo enlouquecimento, pela desorientação ética decorrente da cobiça e da ambição humana sem limites. Sentiu o drama de um mundo em guerra, em relações de opressão e em desorientação moral, simbolizado nos loucos que estão abaixo da razão e que desfiguram o rosto humano da vida na terra. A sua utopia do Quinto Império, herdeira da velha aspiração medieval, é precursora do sonho de uma era de fraternidade universal que seria realizada pelos loucos que estão acima da razão: os missionários, os heróis que defendem, até à prova da própria vida, a dignidade humana espelhada na diversidade dos povos e das culturas.
(...)
José Eduardo Franco
In «Da globalização à glocalização – Educar para uma globalização de rosto humano», José Eduardo Franco – BROTÉRIA, Março de 2016, pág. 271 e seg.
[1] Tradução Google: “Aqueles que não tomam em conta as vaidades, caem em loucuras”