(N)OS CAMINHOS DE ABRIL (1)
1 – No aproximar de Abril, julguei interessante escrever alguma coisa sobre os caminhos que nos levaram a este mês de grande significado nacional. Para uns, de forma positiva. Para outros, de forma bem negativa. Mas não a um único Abril, mas sim a dois. O primeiro nos idos de 1961 e a 13, o segundo a 74 mas a 25. No meu entender bem modesto eles são a chave da explicação do nosso regresso às fronteiras europeias. E só uma Nação como a nossa e um Povo como o nosso podem explicar a existência de uma Pátria que ,no espaço de um ano, perde praticamente todo o território que considerava seu e regressava cabisbaixo às fronteiras iniciais. E que fronteiras. Uma travada pelo castelhano (abençoado travão), a outra virada para o infinito, para o longínquo, para a vastidão oceânica que nos levaria para longe, muito longe, tanto a Terras de Vera Cruz, como a Terras Africanas Atlânticas e Índicas, não esquecendo Terras Abexins, e longe, bem longe, Terras de Diu, na Índia que, quando perdida, foi séculos mais tarde chorada por esse gigante que a amava, de seu nome Churchill.
2 – Mas vamos ao que interessa. O regime do Estado Novo, com os seus altos e baixos, nunca esteve em causa até 1958. Neste ano, pela primeira vez e de forma subtil, o timoneiro era posto em causa. Salazar, para alguns, não poucos, começava a ser um incómodo e por isso os seus mais fiéis preferiram jogar a carta Américo Tomás, para pôr fora do baralho Craveiro Lopes. Em texto anterior já referi isso mesmo. Só que a escolha, com divisões bem marcadas no terreno dos apoiantes do EN, iria provocar o primeiro grande abalo não só nas fileiras da União Nacional, como pela primeira vez AOS era questionado na autoridade da sua liderança.
3 – Estava aberto o caminho para a primeira tentativa de derrube de AOS, que ocorreria dois anos mais tarde em 13 de Abril de 1961. Quando escrevo derrube, significa que Salazar seria mesmo apeado do poder, isto porque as forças em presença eram muito poderosas. Considerou-se que o que se tinha passado com a eleição presidencial,e suas consequências, tinha sido grave, muito grave. E o primeiro aviso vem de dentro do próprio governo. E dois jovens “turcos” vão ser protagonistas, no chamar a atenção, para a atmosfera doentia que o País enfrentava. Foram eles o subsecretário de Estado do Exército, coronel Almeida Fernandes, e o subsecretário de Estado da Aeronáutica, tenente-coronel Kaúlza de Arriaga.
Os dois elaboram memorando conjunto (na altura muito secreto) para ser presente ao Ministro da Defesa Nacional, a fim de este dar conhecimento ao Presidente do Conselho.
4 – Ao que consta, o memorando era muito pormenorizado, identificando as causas do mal-estar nacional. E as palavras não se ficavam pelos meios-termos. Nada disso. Ou se arrepiava caminho, ou vinha aí grave “convulsão” nacional, se não mesmo um “pronunciamento” militar. Da oficialidade superior e generais poderia estar tudo controlado, agora capitães, oficiais subalternos, sargentos e praças, era só chegar fogo à peça e não estariam ali para outra coisa. Pessoal para o gatilho já havia. Faltava só liderança com projecção nacional. E, naquele 58, Botelho Moniz ainda não era Spínola de 74.
Botelho Moniz confidencia a AOS o que preocupa os dois subsecretários de Estado e Salazar promete o seu empenho pessoal junto de Ministérios e departamentos do Estado para que a situação seja de imediato corrigida. Num ponto, tanto Almeida Fernandes como Kaúlza de Arriaga, estão totalmente de acordo: SALAZAR não está em causa. Curiosamente, dois anos depois, Kaúlza mantém esta disposição; Almeida Fernandes diz basta, logo AOS tem de sair. Mas isto fica para outro texto. Se me deixarem (tenho a certeza que deixam).
5 – Só que… só que, aos problemas do Terreiro do Paço e de S. Bento juntam-se os problemas ateados pela Assembleia-Geral das Nações Unidas. Portugal teimava em não dar seguimento às recomendações para os seus Territórios Africanos. Mas a África, lenta, mas seguramente, caminhava para a sua emancipação, com os nossos territórios cercados pelas novas independências. E esta situação levantava grandes preocupações tanto nas lideranças militares como nas lideranças civis. E, aqui, começam as clivagens entre os que “o Ultramar não se discute” e os que afirmam que é melhor “olhar para a casa do(s) vizinho(s)”, neste caso a Inglaterra e França, sobretudo esta com o problema argelino.
6 – Penso, que as lideranças civis, tanto do EN como da Oposição estão de acordo. Quem está ligado ao EN não quer ouvir falar num possível abandono, mesmo que a prazo, do Ultramar. Quem está ligado à Oposição, nomeadamente os herdeiros de Bernardino Machado e Afonso Costa, que consideravam África “Chão Sagrado”, apenas pretendiam discutir a melhoria da administração ultramarina e o bem-estar dos povos ultramarinos portugueses. Na liderança militar o caso era mais complicado. E compreende-se. Porque se a casa entra em dificuldades os militares são de imediato chamados. Por isso até são militares. Mas também são cidadãos. E daí… duas linhas distintas: a atlantista e a africanista. A atlantista tinha já pé firme dentro do Conselho de Ministros na pessoa do ministro da Defesa Nacional general Botelho Moniz.
A linha africanista a nível muito poderoso continuava a ter como o mais acérrimo defensor o coronel Santos Costa, o substituído ministro da Defesa Nacional. E tanto assim é, que em 1959, em reunião do Conselho Superior de Defesa Nacional, o general Botelho Moniz entra em colisão com o Chefe do Governo. Botelho Moniz pede atenção para a futura situação em África para evitar que o país entre em guerra. Oliveira Salazar chama a atenção do ministro para o prescrito na Constituição da República Portuguesa, e sendo assim, todos deviam estar preparados para os tempos que se avizinhavam. Salazar respondia desta forma às dúvidas levantadas. Só havia portanto uma coisa a fazer: uma mão na charrua e a outra na espingarda.
7 – E aqui é de abrir, talvez, as razões de dois portugueses que amavam profundamente o seu País. Comecemos por Botelho Moniz. Antes de ser ministro da Defesa, tinha sido CEMGFA e Ministro do Interior de Salazar. Como CEMGFA conhecia bem as Forças Armadas de terra, mar e ar. Como Ministro do Interior conhecia bem a máquina administrativa e policial e sobretudo os relatórios que lhe chegavam do sentir do povo português. Na questão ultramarina não lhe tinham passado ao lado incidentes muito graves em África. Nomeadamente a “Revolta de Batepá” em S. Tomé e Príncipe” em 1953, quando as populações se revoltaram contra a obrigatoriedade do cultivo do cacau e da cana-de-açúcar que, por baixo, teria custado um milhar de vitimas. O governador de STP é chamado a Lisboa sendo de imediato demitido das suas funções. Em 1956, no porto de Lourenço Marques, estivadores entraram em greve por melhores condições de trabalho e salariais e, chamada a polícia, fecham-se as saídas e entradas, e o cálculo ronda as cinquenta vítimas, fora as prisões efectuadas. Na Guiné, em 1959, no porto de Pidjiguiti, os estivadores reclamam por melhores condições no seu trabalho e como consequência, sem olhar a meios, foram duramente reprimidos.
Em Angola bastava ler os relatórios do Professor Doutor Silva Cunha, que acompanhou Marcello Caetano na sua primeira visita a África na década de 40, para ficar ciente que as associações africanas de cariz secreto e religioso, tudo já faziam para que as populações de Angola se revoltassem.
8 – Do lado de António de Oliveira Salazar também encontramos razões para que sentisse que África não era passível de discussão e não estarmos tão angustiados com possíveis complicações. Ele lá tinha, sem sair do País, as suas velhas cumplicidades. Uma era o Secretário de Estado norte-americano Jonh Foster Dulles (muito poderoso) da administração Eisenhower que, face à intenção de Pandita Nehru invadir Goa, muito simplesmente o avisou que, para os americanos, Goa era província portuguesa. O Pandita nem se mexeu face ao aviso. Mas há mais. Oliveira Salazar sabia da grande admiração que o Imperador da Etiópia tinha por Portugal e pelos feitos dos portugueses de antanho. Pois convide-se o Imperador para visitar Portugal.
E Hailé Selassié visita Portugal de 26 a 31 de Julho de 1959. Mas o melhor estava para vir. O Imperador passava primeiro por França e dali vinha para Portugal. E suprema honra que Salazar lhe deu, perante o espanto dos líderes da altura. Manda a fragata Nuno Tristão, da Marinha de Guerra, ao porto francês de Bayonne, onde ele embarca para visitar o nosso País. Mas para que ele, Imperador, se sentisse mais honrado, a Marinha de Guerra envia mais dois contratorpedeiros para escoltar a fragata em que ele estava embarcado. Hailé Selassié não cabia em si de tanta satisfação. E tudo aceitou, sabendo o que Portugal pensava do seu Ultramar.
9 – Mas também o organizador da Conferência de BANDUNG, o Presidente Soekarno da Indonésia, o político que tinha dado o pontapé de saída para uma descolonização em larga escala, também conhecendo bem o pensamento de Salazar, passa por Portugal em 15 de Maio de 1959 a caminho do Brasil e teve a recebê-lo no aeroporto da Portela o Presidente Américo Tomás que lhe ofereceu um jantar no Palácio da Ajuda, tendo-o condecorado com a grã-cruz da Ordem de Santiago da Espada. Podemos dizer: foi um acaso. Não. Não foi. Porque é o mesmo Soekarno, que em 5 de Maio de 1960, vem de novo a Portugal, em Visita de Estado de três dias, ficando alojado no Palácio de Queluz. E sabia bem o que estava a fazer, ele que era o Padrinho e porta-voz dos “povos mudos” no dizer do Professor Doutor Adriano Moreira. Portanto todos, mas todos, tinham noção das consequências políticas dos actos oficiais em que estavam envolvidos. E a “amnésia” ainda não estava tão espalhada como nos dias de hoje. E Salazar ia marcando pontos na cena internacional. E quem disser o contrário… factos são factos.
10 – Mas, e para finalizar, voltemos ao “confronto” entre o Chefe do Governo e o seu Ministro da Defesa Nacional. O ambiente é tenso. Muito tenso. Pela primeira vez um membro do governo ousava enfrentar Salazar, e logo foi o responsável pela Defesa Nacional. Que não se calou perante o Presidente do Conselho. Salazar apesar do sucedido entende mais uma vez, que as Forças Armadas, tal como no século XIX e princípios do século XX, terão de responder à chamada caso necessário. E, entendo, que aqui, está aberto rumo para um qualquer Abril. Porque não havendo entendimento, um dos dois está a mais. No Governo. Mas não é para já. Mas vai acontecer. Estava aberto o caminho para um almoço, no Tavares Rico, entre o embaixador americano Charlles Burke Elbrich e o general Botelho Moniz. Mas só em 61. E a convite do diplomata. Convite feito em Fevereiro. Mas só “praticado” em Março. Prato principal: Salazar tem de ser afastado, se não quiser mudar a política africana. Sobremesa: o general pode contar com a compreensão dos americanos, caso seja ele a chefiar o afastamento do Presidente do Conselho. Mas fica para próximo texto. Que prometo ao Henrique para muito breve.
Base Documental e Investigação (entre outros): Coronel Viana de Lemos, Embaixador Franco Nogueira, Embaixador Calvet de Magalhães, Professor Doutor Adriano Moreira, Almirante Américo Tomás, Mestre José Freire Antunes, AHM.