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A bem da Nação

CONVERSA OU DESCONVERSA?

 

Fortaleza, Brasil.jpg

 

Na recepção de um salão de convenções em Fortaleza, Brasil

- Por favor, gostaria de fazer a minha inscrição para o Congresso.
- Pelo seu sotaque vejo que o senhor não é brasileiro. O senhor é de onde?
- Sou de Maputo, Moçambique.
- Da África, né?
- Sim, sim, de África.
- Aqui está cheio de africanos, vindos de toda parte do mundo. O mundo está cheio de africanos.
- É verdade. Mas se pensar bem, veremos que todos somos africanos, pois a África é o berço antropológico da humanidade...
- Pronto, tem uma palestra agora na sala meia oito.
- Desculpe, qual sala?
- Meia oito.
- Pode escrever?
- Não sabe o que é meia oito? Sessenta e oito, assim, veja: 68.
- Ah, entendi, *meia* é *seis*.
- Isso mesmo, meia é seis. Mas não vá embora, só mais uma informação: A organização do Congresso está cobrando uma pequena taxa para quem quiser ficar com o material: DVD, apostilas, etc., gostaria de encomendar?
- Quanto tenho que pagar?
- Dez reais. Mas estrangeiros e estudantes pagam *meia*.
- Hmmm! que bom. Ai está: *seis* reais.
- Não, o senhor paga meia. Só cinco, entende?
- Pago meia? Só cinco? *Meia* é *cinco*?
- Isso, meia é cinco.
- Tá bom, *meia* é *cinco*.
- Cuidado para não se atrasar, a palestra começa às nove e meia.
- Então já começou há quinze minutos, são nove e vinte.
- Não, ainda faltam dez minutos. Como falei, só começa às nove e meia.
- Pensei que fosse as 9:05, pois *meia* não é *cinco*? Você pode escrever aqui a hora que começa?
- Nove e meia, assim, veja: 9:30
- Ah, entendi, *meia* é *trinta*.
- Isso mesmo, nove e trinta. Mais uma coisa Senhor, tenho aqui um folder de um hotel que está fazendo um preço especial para os congressistas, o Senhor já está hospedado?
- Sim, já estou na casa de um amigo.
- Em que bairro?
- No Trinta Bocas.
- Trinta bocas? Não existe esse bairro em Fortaleza, não seria no Seis Bocas?
- Isso mesmo, no bairro *Meia* Boca.
- Não é meia boca, é um bairro nobre.
- Então deve ser *cinco* bocas.
- Não, Seis Bocas, entende, Seis Bocas. Chamam assim porque há um encontro de seis ruas, por isso seis bocas. Entendeu?
- Acabou?
- Não, Senhor. É proibido entrar no evento de sandálias. Coloque uma meia e um sapato...

Foi então que o africano se fartou… e porque era educado, não disse o que pensou.

 

 

ACORDO ORTOGRÁFICO

 Letras.jpg

 

Eu sei, o assunto — o Acordo Ortográfico de 1990 — é uma chatice, ninguém está para se preocupar com ele e dá algum trabalho tentar perceber melhor do que se trata. E também sei, mais de um quarto de século decorrido (!), que o destino já está traçado de há muito e a batalha perdida, por natureza: manda quem pode, obedece quem deve. Todavia, porque estas coisas da língua pátria e da pátria não me são indiferentes, e para memória futura, volto ao assunto, agora que ele voltou à actualidade pela mão de Marcelo Rebelo de Sousa.

 

Quando o acordo foi tornado público, eu fui um dos subscritores do primeiro manifesto contra o AO, assinado entre, vários outros, por Marcelo. Mais de vinte anos depois, entre adormecimentos e ressurreições, escutados e voltados a escutar todos os argumentos de ambos os lados (sobretudo, os argumentos contra, porque do outro lado se dispensaram soberbamente de contra-argumentar), a minha posição de início mantém-se inalterável: não sei quem pediu o acordo, não sei que necessidades reais ele veio satisfazer, não sei em que aproveita a Portugal e à língua portuguesa, não sei o que o justificou, o que o permitiu e o que o fez impor-se à força. Nas inúmeras vezes, aqui ou no Brasil, em que fui chamado a pronunciar-me sobre ele, o que sempre disse e mantenho, hoje mais a sério do que a brincar, foi que o AO nasceu porque um restrito grupo de académicos portugueses queria fazer umas viagens à borla ao Brasil e o pretexto encontrado foi o de negociar um acordo ortográfico — que os brasileiros nunca tinham pedido, nunca tinham sugerido e nunca tinham imaginado. E, por isso, os nossos auto nomeados embaixadores da língua chegaram lá e disseram aos brasileiros: “Estamos aqui para fazer um AO em que todos os falantes de português passarão a escrever como vocês”. Um acto colonial ao contrário.

 

Em 2006, e subitamente, o AO, então conhecido pelo nome de Aborto Ortográfico, foi ressuscitado por um governo socialista e, sem mais, mandado entrar em vigor rapidamente. E porque para tal faltavam as ratificações necessárias, conforme o próprio acordo previa, a minoria militante alterou unilateralmente as regras, dizendo que ele se tornava vinculativo desde que apenas três países falantes de português o ratificassem. É essa golpada política que torna o AO juridicamente inexistente. À data de hoje, nem Angola nem Moçambique o ratificaram e o Brasil, que suspendeu durante dois anos a sua entrada em vigor, vive numa espécie de limbo jurídico em que ninguém sabe se o aplica conforme as suas regras ou apenas na parte que lhe interessa e que não o obriga a mudar o que quer que seja na sua grafia (entre outras coisas, o AO não previu que, na situação actual do Brasil, o único tema que lhes interessa seja traduzido por essa palavra tão portuguesa que é o impeachement…). Com a súbita ressurreição de 2006, o AO começou então a ser discutido mais a sério. Do lado dos oponentes, produziu-se uma larga série de textos, conferências e até livros, todos demonstrando, ou pretendendo demonstrar, a irracionalidade linguística, a nulidade jurídica e a falsidade dos argumentos sobre as alegadas vantagens do acordo. Do lado oposto, nada: sempre umas vagas e repetitivas declarações do professor Malaca Casteleiro e do doutor Carlos Reis, cuja argumentação, na essência, pode ser resumida a duas palavras: “Porque sim”.

 

Fizeram-se abaixo-assinados, petições à Assembleia da República e até se conseguiu que esta nomeasse uma comissão, dirigida pelo deputado Michael Seufert, para analisar o bom ou mau fundamento dos opositores do AO. A comissão concluiu pela absoluta razão destes, dizendo que o AO não podia estar em vigor juridicamente, que fora imposto ao país sem nenhuma discussão prévia e séria e que não se demonstrava quaisquer das vantagens que ele aduzia: não unificou a grafia da língua, antes a dividiu mais — entre países que escrevem segundo a grafia anterior, os que escrevem segundo a grafia do acordo (praticamente só Portugal), e o Brasil, que escreve como muito bem entende; separou, em Portugal, a grafia por gerações, coincidindo várias que escrevem com regras diferentes; e, quanto à tão invocada unificação do mercado editorial, seguindo as novas regras e em todos os países falantes de português, revelou-se a ficção que qualquer ser minimamente inteligente esperaria que fosse (e eu sou disso exemplo concreto: tenho cinco livros editados no Brasil e, por expressa vontade minha, nenhum deles de acordo com a grafia brasileira ou do AO, sem que tal me tenha prejudicado minimamente, em termos de mercado).

 

É arrepiante que, por vontade de uma vanguarda auto nomeada para tal, um país se disponha a mudar uma língua que tem oito séculos de existência sem o consultar e à revelia daqueles que são os principais utilizadores dessa língua. No “DN” de anteontem, li um artigo do constitucionalista Jorge Bacelar Gouveia, em defesa do AO, que é eloquente da leviandade com que uma verdadeira questão de soberania nacional foi e é tratada por quem pode e manda. Com o devido pedido prévio de desculpas, eu afirmo que esse texto é um chorrilho de asneiras filhas da ignorância, de falsas verdades, de banalidades argumentativas e de uma arrogância intelectual, expoente de um certo terrorismo académico que tolhe e verga os políticos às suas ameaças. Mas o rei vai nu. Toda a abundante produção de razões que contrariam as apregoadas vantagens do AO é reduzida por ele a um rol de “queixas, queixumes, remoques ou piadas” — o que quer dizer que não leu nada nem se deu ao trabalho de pensar em nenhum dos argumentos da parte contrária. E esta — a parte contrária — é arrumada por ele na categoria de “velhos” ou então de “uma certa elite bem pensante (incapaz) de terçar armas por coisas mais substanciais que verdadeiramente interessam a Portugal”. Seria caso para responder que não se percebe, então, por que razão o jovem Bacelar Gouveia perde, ele próprio, tempo a terçar armas pelo AO e não por coisas bem mais importantes… Mas a acusação é notável: a tal “elite bem pensante” é apenas a larguíssima maioria dos principais interessados e utilizadores da língua, que não foram nunca consultados sobre o assunto e que rejeitam o AO: escritores, jornalistas, professores, editores. E que, como disse o presidente da Academia das Ciências de Lisboa, Artur Anselmo, foram submetidos à força por um “acto despótico e ditatorial”, às mãos de outra elite, que não sei se é bem pensante ou apenas bem mandante. Por isso, pode Bacelar Gouveia, como “argumento” final, afirmar que a aceitação do AO “será uma questão de tempo” — como todas as imposições ditatoriais. Porque, embora vivamos em democracia, a nossa classe política está aqui tolhida pelo medo de enfrentar o terrorismo académico e pela chatice de ter de se ocupar de um assunto “menor”, que (mal) julgavam resolvido. Mas é sem dúvida arrepiante que, por vontade de uma vanguarda auto nomeada para tal, um país se disponha a mudar uma língua que tem oito séculos de existência sem o consultar e à revelia daqueles que são os principais utilizadores dessa língua. É uma lição de democracia para não esquecer.

 

Para terminar, não resisto a dizer ao constitucionalista que usar argumentos tão estafados como o de Farmácia com F e não ph para tentar demonstrar as vantagens dos acordos ortográficos, é apenas ridículo: a palavra não tem origem na língua portuguesa nem latina, mas sim grega e por isso é que em línguas tão despiciendas como a inglesa e francesa se continua a escrever com ph. E se quer realmente saber como nem sempre os acordos ortográficos contribuem para enriquecer a língua, recomendo-lhe a releitura de Camilo: aí poderá constatar como, vários acordos e século e meio depois, a língua portuguesa se empobreceu.

 

Miguel Sousa Tavares.jpg

Miguel Sousa Tavares

 

 

MODERNICES ORTOGRÁFICAS

 Letras.jpg

 

Quando eu escrevo a palavra acção, por magia ou pirraça, o computador retira automaticamente o C na pretensão de me ensinar a nova grafia.

 

De forma que, aos poucos, sem precisar de ajuda, eu próprio vou tirando as consoantes que, ao que parece, estavam a mais na língua portuguesa.

 

Custa-me despedir-me daquelas letras que tanto fizeram por mim.

 

São muitos anos de convívio.

 

Lembro-me da forma discreta e silenciosa como todos estes CCC's e PPP's me acompanharam em tantos textos e livros desde a infância.


Na primária, por vezes gritavam ofendidos na caneta vermelha da professora: - não te esqueças de mim!


Com o tempo, fui-me habituando à sua existência muda, como quem diz, sei que não falas, mas ainda bem que estás aí.


E agora as palavras já nem parecem as mesmas.

 

O que é ser proativo?

 

Custa-me admitir que, de um dia para o outro, passei a trabalhar numa redação, que há espetadores nos espetáculos e alguns também nos frangos, que os atores atuam e que, ao segundo ato, eu ato os meus sapatos.

 

Depois há os intrusos, sobretudo o R, que tornou algumas palavras arrevesadas e arranhadas, como neorrealismo ou autorretrato.

 

Caíram hifenes e entraram RRR's que andavam errantes.

 

É uma união de facto, e para não errar tenho a obrigação de os acolher como se fossem família. Em 'há de' há um divórcio, não vale a pena criar uma linha entre eles, porque já não se entendem.

 

Em veem e leem, por uma questão de fraternidade, os EEE's passaram a ser gémeos, nenhum usa (^^^) chapéu.

 

E os meses perderam importância e dignidade; não havia motivo para terem privilégios. Assim, temos janeiro, fevereiro, março, são tão importantes como peixe, flor, avião.

 

Não sei se estou a ser suscetível, mas sem P, algumas palavras são uma autêntica deceção, mas por outro lado é ótimo que já não tenham.

 

As palavras transformam-nos.


Como um menino que muda de escola, sei que vou ter saudades, mas é tempo de crescer e encontrar novos amigos.


Sei que tudo vai correr bem, espero que a ausência do C não me faça perder a direção, nem me fracione, e nem quero tropeçar em algum objeto.

 

Porque, verdade seja dita, hoje em dia, não se pode ser atual nem atuante com um C a atrapalhar.

 

Só não percebo porque é que temos que ser NÓS a alterar a escrita, se a LÍNGUA É NOSSA...? ! ? ! ?

 

Os ingleses não o fizeram, os franceses desde 1700 que não mexem na sua língua e porquê nós?

 

 

 

Autor não identificado, recebido por e-mail

 

 

PLEONASMOS

 

pleonasmo.jpg

 

Quase todos os portugueses sofrem de pleonasmite, uma doença congénita para a qual não se conhecem nem vacinas nem antibióticos. Não tem cura, mas também não mata. Mas, quando não é controlada, chateia (e bastante) quem convive com o paciente.

 

O sintoma desta doença é a verbalização de pleonasmos (ou redundâncias) que, com o objectivo de reforçar uma ideia, acabam por lhe conferir um sentido quase sempre patético.

 

Definição confusa? Aqui vão quatro exemplos óbvios “Subir para cima”, “descer para baixo”, “entrar para dentro” e “sair para fora”.

 

Já se reconhece como paciente de pleonasmite? Ou ainda está em fase de negação? Olhe que há muita gente que leva uma vida a pleonasmar sem se aperceber que pleonasma a toda a hora.

 

Vai dizer-me que nunca “recordou o passado”? Ou que nunca está atento aos “pequenos detalhes”? E que nunca partiu uma laranja em “metades iguais”? Ou que nunca deu os “sentidos pêsames” à “viúva do falecido”?

 

Atenção que o que estou a dizer não é apenas a minha “opinião pessoal”. Baseio-me em “factos reais” para lhe dar este “aviso prévio” de que esta “doença má” atinge “todos sem excepção”.

 

O contágio da pleonasmite ocorre em qualquer lado. Na rua, há lojas que o aliciam com “ofertas gratuitas”. E agências de viagens que anunciam férias em “cidades do mundo”. No local de trabalho, o seu chefe pede-lhe um “acabamento final” naquele projecto. Tudo para evitar “surpresas inesperadas” por parte do cliente. E quando tem uma discussão mais acesa com a sua cara-metade, diga lá que às vezes não tem vontade de “gritar alto”: "Cala a boca!”?

 

O que vale é que depois fazem as pazes e vão ao cinema ver aquele filme que “estreia pela primeira vez” em Portugal.

 

E se pensa que por estar fechado em casa ficará a salvo da pleonasmite, tenho más notícias para si. Porque a televisão é, de “certeza absoluta”, a “principal protagonista” da propagação deste vírus.

 

Logo à noite, experimente ligar o telejornal e “verá com os seus próprios olhos” a pleonasmite em directo no pequeno ecrã. Um jornalista vai dizer que a floresta “arde em chamas”. Um treinador de futebol queixar-se-á dos “elos de ligação” entre a defesa e o ataque. Um “governante” dirá que gere bem o “erário público”. Um ministro anunciará o reforço das “relações bilaterais entre dois países”. E um qualquer “político da nação” vai pedir um “consenso geral” para sairmos juntos desta crise. E por falar em crise!

 

Quer apostar que a próxima manifestação vai juntar uma “multidão de pessoas”?

 

Ao contrário de outras doenças, a pleonasmite não causa “dores desconfortáveis” nem “hemorragias de sangue”. E por isso podemos “viver a vida” com um “sorriso nos lábios”. Porque alguém a pleonasmar, está nas suas sete quintas. Ou, em termos mais técnicos, no seu “habitat natural”.

 

Mas como lhe disse no início, o descontrolo da pleonasmite pode ser chato para os que o rodeiam e nocivo para a sua reputação. Os outros podem vê-lo como um redundante que só diz banalidades. Por isso, tente cortar aqui e ali um e outro pleonasmo. Vai ver que não custa nada. E “já agora” siga o meu conselho: não “adie para depois” e comece ainda hoje a “encarar de frente” a pleonasmite!

 

Ou então esqueça este texto. Porque afinal de contas eu posso estar só “maluco da cabeça”

Autor não identificado, recebido por e-mail.

 

 

 

 

VÍRGULA, A PODEROSA

 

virgula_jpg.png

 

 

Vírgula pode ser uma pausa... ou não:

Não, espere.

Não espere.

 

Ela pode sumir com seu dinheiro:

23,4.

2,34.

 

Pode criar heróis:

Isso só, ele resolve.

Isso só ele resolve.

 

Ela pode ser a solução:

Vamos perder, nada foi resolvido.

Vamos perder nada, foi resolvido.

 

A vírgula muda uma opinião:

Não queremos saber.

Não, queremos saber.

 

A vírgula pode condenar ou salvar:

Não tenha clemência!

Não, tenha clemência!

 

Uma vírgula muda tudo.

 COLOQUE UMA VÍRGULA NA SEGUINTE FRASE:

 

SE O HOMEM SOUBESSE O VALOR QUE TEM A MULHER ANDARIA DE QUATRO À SUA PROCURA.

 

* Se você for mulher, certamente colocou a vírgula depois de MULHER...

* Se você for homem, colocou a vírgula depois de TEM...

 

 

 

 

EPITÁFIO À LÍNGUA DE CAMÕES

Este texto é da autoria de Teolinda Gersão. Escritora, Professora Catedrática aposentada da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa. Escreveu-o depois de ajudar os netos a estudar Português. Colocou-o no Facebook.

 

 

Redacção – Declaração de Amor à Língua Portuguesa

 

Vou chumbar a Língua Portuguesa, quase toda a turma vai chumbar, mas a gente está tão farta que já nem se importa. As aulas de português são um massacre. A professora? Coitada, até é simpática, o que a mandam ensinar é que não se aguenta. Por exemplo, isto: No ano passado, quando se dizia “ele está em casa”, ”em casa” era o complemento circunstancial de lugar. Agora é o predicativo do sujeito.”O Quim está na retrete”: “na retrete” é o predicativo do sujeito, tal e qual como se disséssemos “ela é bonita”. Bonita é uma característica dela, mas “na retrete” é característica dele? Meu Deus, a setôra também acha que não, mas passou a predicativo do sujeito, e agora o Quim que se dane, com a retrete colada ao rabo.

 

No ano passado havia complementos circunstanciais de tempo, modo, lugar etc., conforme se precisava. Mas agora desapareceram e só há o desgraçado de um “complemento oblíquo”. Julgávamos que era o simplex a funcionar: Pronto, é tudo “complemento oblíquo”, já está. Simples, não é? Mas qual, não há simplex nenhum, o que há é um complicómetro a complicar tudo de uma ponta a outra: há por exemplo verbos transitivos directos e indirectos, ou directos e indirectos ao mesmo tempo, há verbos de estado e verbos de evento, e os verbos de evento podem ser instantâneos ou prolongados; almoçar por exemplo é um verbo de evento prolongado (um bom almoço deve ter aperitivos, vários pratos e muitas sobremesas). E há verbos epistémicos, perceptivos, psicológicos e outros, há o tema e o rema, e deve haver coerência e relevância do tema com o rema; há o determinante e o modificador, o determinante possessivo pode ocorrer no modificador apositivo e as locuções coordenativas podem ocorrer em locuções contínuas correlativas. Estão a ver? E isto é só o princípio. Se eu disser: Algumas árvores secaram, ”algumas” é um quantificativo existencial, e a progressão temática de um texto pode ocorrer pela conversão do rema em tema do enunciado seguinte e assim sucessivamente.

 

No ano passado se disséssemos “O Zé não foi ao Porto”, era uma frase declarativa negativa. Agora a predicação apresenta um elemento de polaridade, e o enunciado é de polaridade negativa.

 

No ano passado, se disséssemos “A rapariga entrou em casa. Abriu a janela”, o sujeito de “abriu a janela” era ela, subentendido. Agora o sujeito é nulo. Porquê, se sabemos que continua a ser ela? Que aconteceu à pobre da rapariga? Evaporou-se no espaço?

 

A professora também anda aflita. Pelo visto, no ano passado ensinou coisas erradas, mas não foi culpa dela se agora mudaram tudo, embora a autora da gramática deste ano seja a mesma que fez a gramática do ano passado. Mas quem faz as gramáticas pode dizer ou desdizer o que quiser, quem chumba nos exames somos nós. É uma chatice. Ainda só estou no sétimo ano, sou bom aluno em tudo excepto em português, que odeio, vou ser cientista e astronauta, e tenho de gramar até ao 12º estas coisas que me recuso a aprender, porque as acho demasiado parvas. Por exemplo, o que acham de adjectivalização deverbal e deadjectival, pronomes com valor anafórico, catafórico ou deítico, classes e subclasses do modificador, signo linguístico, hiperonímia, hiponímia, holonímia, meronímia, modalidade epistémica, apreciativa e deôntica, discurso e interdiscurso, texto, cotexto, intertexto, hipotexto, metatatexto, prototexto, macroestruturas e microestruturas textuais, implicação e implicaturas conversacionais? Pois vou ter de decorar um dicionário inteirinho de palavrões assim. Palavrões por palavrões, eu sei dos bons, dos que ajudam a cuspir a raiva. Mas estes palavrões só são para esquecer, dão um trabalhão e depois não servem para nada, é sempre a mesma tralha, para não dizer outra palavra (a começar por t, com 6 letras e a acabar em “ampa”, isso mesmo, claro.)

 

Mas eu estou farto. Farto até de dar erros, porque me põem na frente frases cheias deles, excepto uma, para eu escolher a que está certa. Mesmo sem querer, às vezes memorizo com os olhos o que está errado, por exemplo: haviam duas flores no jardim. Ou: a gente vamos à rua. Puseram-me erros desses na frente tantas vezes que já quase me parecem certos. Deve ser por isso que os ministros também os dizem na televisão. E também já não suporto respostas de cruzinhas, parece o totoloto. Embora às vezes até se acerte ao calhas. Livros não se lê nenhum, só nos dão notícias de jornais e reportagens, ou pedaços de novelas. Estou careca de saber o que é o lead, parem de nos chatear. Nascemos curiosos e inteligentes, mas conseguem pôr-nos a detestar ler, detestar livros, detestar tudo. As redacções também são sempre sobre temas chatos, com um certo formato e um número certo de palavras. Só agora é que estou a escrever o que me apetece, porque já sei que de qualquer maneira vou ter zero.

 

E pronto, que se lixe, acabei a redacção - agora parece que se escreve redação.O meu pai diz que é um disparate, e que o Brasil não tem culpa nenhuma, não nos quer impôr a sua norma nem tem sentimentos de superioridade em relação a nós, só porque é grande e nós somos pequenos. A culpa é toda nossa, diz o meu pai, somos muito burros e julgamos que se escrevermos ação e redação nos tornamos logo do tamanho do Brasil, como se nos puséssemos em cima de sapatos altos. Mas, como os sapatos não são nossos nem nos servem, andamos por aí aos trambolhões, a entortar os pés e a manquejar. E é bem feita, para não sermos burros.

 

E agora é mesmo o fim. Vou deitar a gramática na retrete, e quando a setôra me perguntar: Ó João, onde está a tua gramática? Respondo: Está nula e subentendida na retrete, setôra, enfiei-a no predicativo do sujeito.

 

João Abelhudo.jpg João Abelhudo, 8º ano, setôra, sem ofensa para si, que até é simpática.

 

 

 

 

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