MULTICULTURALISMO E RECONHECIMENTO EM PAUL RICOEUR
O ponto de partida da reflexão de Ricoeur sobre o multi-culturalismo acha-se no texto publicado em 1961 pela revista Esprit, “Civilização universal e culturas nacionais”.
Nele, o filósofo assinala o nascimento de uma civilização planetária, uma civilização
mundial, apoiada na difusão da técnica e da ciência e na unificação do mundo sob a égide do saber científico.
O surgimento dessa civilização fez com que as descobertas que ocorreram nesse campo pertençam, de direito, a toda a humanidade. O correlato dessa situação é que o enclausuramento cultural não é mais possível, dada a participação de todos na civilização técnica única.
A civilização mundial implica em progresso, melhoria de vida e universalização, trazendo à luz, para a consciência colectiva, a ideia de uma única humanidade e promovendo a ascensão de imensas massas humanas a um bem-estar ao menos mínimo.
A contrapartida desse progresso é que a universalização pode acarretar a destruição das culturas tradicionais, ameaçando o núcleo ético e mítico, o núcleo criador das civilizações e da humanidade. Mais ainda: a multiplicidade de culturas, com a qual somos hoje confrontados, põe o problema de encontrarmos valores universalmente aceites, que ofereçam novos paradigmas de acção. O obstáculo para alcançar esses novos paradigmas: não há, imediatamente, entre as diferentes culturas, denominadores comuns evidentes, para apreciarmos as acções humanas.
Trata-se, para Ricoeur, de buscá-los; o critério universal para a apreciação das acções e que possibilita distinguir entre o que é aceitável e o que é intolerável, no âmbito da avaliação das acções dos indivíduos que pertencem a culturas diversas é a noção de respeito à pessoa humana.
Reconhecendo o outro como interlocutor e parceiro na megapólis em que o mundo se tornou, assinala o valor da razão e da palavra como condição da vida propriamente humana.
A aceitação da pluralidade é a antítese (e o antídoto) do dogmatismo, do fanatismo;
é afirmação da igualdade e da paz, reconhecimento da unidade da humanidade e de seu destino comum.
Ricoeur tenta apontar valores universais, mostrando o debate, a discussão, como caminhos para desvelar os universais em contexto ou potenciais, que possibilitem a emergência de uma comunidade metafórica entre culturas distintas.
A tematização dos conflitos culturais e da exigência de sua superação mediante a formulação de parâmetros éticos universais reaparece em Ce qui nous fait penser. La nature et la règle, obra, na qual o filósofo estuda as questões da fundamentação da ética, o problema da violência e do mal, e reflecte sobre a tolerância e a reconciliação.
Para o nosso autor, é preciso que muitas tradições encontrem modos de dialogar, desvelando a possibilidade de se considerarem co-fundadoras de uma vida propriamente humana, “se quiserem sobreviver, numa situação de contenda, às forças exteriores e internas de destruição”.
A superação das oposições entre religiões e culturas distintas não pode consistir numa unificação niveladora que reduz todas a um parâmetro único. Supõe o reconhecimento mútuo do melhor dessas tradições de modo que cada uma renuncie à posse da verdade, compreendendo que “o fundamental passa também por outras [culturas, está além] de suas “múltiplas” oposições, alcançando, assim, denominadores éticos comuns, através da razão.
Os obstáculos a serem superados, para que se possa alcançar esse mínimo ético, são: o da pretensão, em cada cultura, à posse da verdade ou a afirmação de uma verdade única, pois a verdade é plural; o da violência no plano da linguagem, pela ruptura de pactos e pela desconfiança na palavra do outro; o da violência no plano da acção que leva a atentar contra a “integridade física e psíquica dos outros“; o da violência no plano das instituições, que se expressa pela “guerra de uns contra os outros”; os conflitos económicos e políticos.
O recurso imediatamente disponível para se superar a oposição entre os homens, seria “o tesouro simbólico das grandes religiões”, capaz de oferecer um elemento unificador, dialógico, ao nível de uma sabedoria prática. A deliberação, os debates, a proliferação de comités de ética reforçariam um acto essencial de confiança, de recurso a um fundamento originário, de reafirmação da “coragem de viver, fazendo prevalecer a bondade sobre o mal”, reconhecendo o “melhor do cristianismo e do judaísmo, o melhor do budismo, etc.”, estabelecendo, assim, um denominador ético comum às diferentes culturas.
A ética da deliberação e a arte da reconciliação seriam os instrumentos para ultrapassarmos os conflitos graves em que nos encontramos, fazendo surgir a face plural e multifacetada da verdade, assim como a possibilidade da colaboração de todos em direcção a um destino comum, reconhecido por todos.
Uma última vez, na obra Parcours de la reconnaissance, publicada dois anos antes da sua morte, o filósofo retoma a meditação sobre o multi-culturalismo, no terceiro estudo que compõe o livro.
É no contexto da reflexão sobre: o reconhecimento de si e o reconhecimento do outro; a memória e a promessa; a atestação no plano social das identidades colectivas; a relação direitos-responsabilidades, passando “da ideia de capacidades individuais à de capacidades sociais, através de uma complexificação crescente da ideia de capacidades sobre o fundo estável do tema antropológico do poder de agir (...)”, que Ricoeur aborda o tema em questão.
Se a experiência imediata nos põe em face do conflito das culturas, como as análises do filósofo a respeito do paradoxo do político e do paradoxo do religioso evidenciaram, é uma nova cadeia conceptual que é posta à luz, no exame do problema do multi-culturalismo, na perspectiva ética.
É nesta reflexão que são retomadas, uma vez mais, “as ideias de pluralidade, de alteridade, de acção recíproca, de mutualidade”, que constituem o cerne do terceiro estudo do Parcours. Aí o filósofo aborda o tema do horizonte de uma política do reconhecimento, capaz de fundar a paz entre as culturas na lógica da reciprocidade e do dom.
Se nos escritos anteriores, Ricoeur enfatizou a consideração dos obstáculos ao convívio pacífico de povos diversos, apontando a dissimetria original entre as religiões, as culturas – na sua obra testamento assinala as condições da passagem da oposição à reciprocidade. A confissão da dissimetria e o reconhecimento das diferenças são condição de recordarmos o “carácter insubstituível de cada um dos parceiros envolvidos na troca; um não é o outro; trocam-se dons, mas não lugares”.
Mais ainda: o reconhecimento das diferenças “protege a mutualidade das armadilhas da união fusional (...)”, em escala comunitária ou cosmopolita, promovendo a justa distância e o respeito entre os povos.
A valorização da pessoa, que no plano interpessoal serve de fundamento à ética, assume, na meditação do filósofo francês, o carácter de referência, de baliza para distinguir o tolerável do intolerável, quando nos deparamos com tradições e costumes muito distintos entre si, num mundo caracterizado pela multiplicidade e pelo conflito das culturas. Assim, passa-se da pessoa natural à pessoa fictícia ou artificial, representante da humanidade uma, e sujeito de direitos. A extensão do qualificativo de pessoa a todo ser humano implica a ideia de reconhecimento mútuo, de “junção entre ipseidade e alteridade na ideia do Direito”.
A reflexão sobre o multi-culturalismo, no Parcours ..., está vinculada à proposição de uma política e uma luta pelo reconhecimento, análoga aos combates levados a efeito pelos movimentos feministas, minorias negras ou conjuntos culturais minoritários (...)”, mas não se confundindo com estes.
A questão do multi-culturalismo põe em relevo a exigência de igualdade e de respeito às culturas, “desenvolvida no interior de um mesmo quadro institucional”, com a afirmação da identidade das minorias, mediada por instituições públicas. Desse modo, as minorias podem superar imagens depreciativas e aviltantes de sua dignidade.
A reflexão de Charles Taylor sobre o assunto serviu de ponto de apoio à aproximação do tema, em Ricoeur.
O multi-culturalismo, diz respeito, num primeiro momento, às condições de convivência de culturas e de grupos distintos no interior da mesma sociedade. A convivência, para ser harmónica, supõe o reconhecimento da igualdade de direitos dos grupos componentes dessa comunidade institucional.
Uma segunda aproximação ao tema, feita pelo nosso autor, comporta o exame das contribuições de Habermas e de Honneth ao assunto. A versão universalizante da ideia da dignidade das diferentes culturas envolve a consideração do “carácter marcadamente ‘dialógico’” que o reconhecimento de suas identidades assume apoiado numa política de aceitação das diferenças.
Fugindo da noção de igualdade entendida como anulação das diferenças entre as culturas, o filósofo põe em relevo a dignidade destas, propondo uma nova concepção do termo. Igualdade é o direito à diferença; afasta-se, desse modo, o risco de identificação da dignidade universal do humano com a homogeneidade ou subordinação de todas as culturas a um modelo hegemónico.
O problema urgente para os Estados é a sua reconfiguração, levando em conta as diferenças etno-culturais e o problema das minorias nelas inscritas. Trata-se pois de definir uma política do reconhecimento que produza como resultado benéfico o crescimento da estima de si e da estima do outro, por parte dos indivíduos que compõem as sociedades de modo a promover a confiança e o respeito, entendidos como capacidades novas que favorecem a superação dos conflitos e a instauração da paz.
Expressão do amor, mais que da justiça, a lógica da reciprocidade apresenta contudo, paradoxos na sua manifestação. O primeiro deles é expresso pelo laço entre dar, receber e devolver; o segundo, pela contraposição entre justiça e amor.
A mutualidade recobre as trocas entre os indivíduos; a reciprocidade, o carácter sistemático da troca e da partilha de valores bem como o sem preço do dom. Instaura-se desse modo um reconhecimento simbólico do bem sem preço, dos bens não vendáveis – como, por exemplo, a dignidade moral, a integridade e a beleza.
A boa partilha implica não apenas dar, mas o bem receber. A reciprocidade assim instaurada, possibilita a superação da violência e da vingança, por uma generosidade que está além da justiça e da lei, na proposição da equidade. Na vida das culturas, as trocas simbólicas, mediante o reconhecimento da dignidade do outro, abrigam fecundas possibilidades de coexistência pacífica, pelo respeito mútuo que se imporia.
Uma justa distância, bem como a afirmação do direito à diferença e à dissimetria em escala cosmopolita, acentuariam o sentido da dialéctica da reciprocidade entre os parceiros.
Em resumo, para o nosso filósofo, um único princípio serve de apoio à coexistência pacífica de culturas distintas, num mundo plural: o respeito pela pessoa humana, pela sua dignidade sem preço.
Tal é o parâmetro, para Ricoeur, de qualquer diálogo que se pretenda ético.
Constança Marcondes César
Pontifícia Universidade Católica – Campinas, Brasil