OS SAIS DE LITIO
Conheci intimamente um xeque venerável, grande sábio em ciências religiosas, mestre de prodigiosa memória que recitava sem esforço trechos da tradição e que consultava quotidianamente o Corão de que foi um exegeta avisado. Era um homem todo ele prudência, gradação e subtileza nas suas interpretações quando se encontrava num estádio médio, longe das aflições melancólicas da depressão e não encorajado pela excitação colérica do maníaco. Mas bastava que a regulação química se perturbasse e que à aproximação da sua fase maníaca os sais de lítio mal doseados não conseguissem aplainar as asperezas que conduzem o indivíduo à crise, para que nele o regime da referência corânica mudasse. O xeque já não evocava então os versículos delicados, tolerantes, cheios de compaixão pelo outro na fé; era incitado pela parte guerreira e redutível do Corão, começava a zurzir os vestígios de jâhiliyya e a idolatria que perturbam ainda a idade contemporânea. Se o tivéssemos deixado agir, teria destruído os vestígios arqueológicos, estátuas ou outros sinais de qualquer culto pagão das imagens. Na sua excitação, atingia o mesmo estado que levou os talibãs a destruir os budas de Bamiyan bem como as peças arqueológicas conservadas no museu de Cabul.
Este retrato deverá ser entendido como uma alegoria que revela a dupla face que a palavra corânica encerra e que confirma que a doença do Islão se referencia a partir da figura do maníaco.
Deste ponto de vista, o Corão é um livro análogo à Bíblia tal como a redescobre Voltaire no seu Tratado sobre a Tolerância.
Existe nas revelações monoteístas uma parte guerreira, fanática, violenta, redutível. É esta face que a doença favorece. E a doença assinalada por Voltaire entre os seus correligionários releva, também ela, do estado maníaco:
«A melhor forma de diminuir a quantidade de maníacos, para não ir mais longe, é a de entregar esta doença do espírito ao regime da razão, que ilumina lenta mas infalivelmente os homens.»
(...) O zelo fanático dos [almóadas] está provavelmente na origem da extinção do cristianismo autóctone no Magrebe[1] que era tão antigo e estava tão enraizado quanto o cristianismo copta do Egipto, ou árabe, sírio e caldeu do Próximo Oriente.
E é sempre o mesmo trecho corânico que é invocado por aqueles que instauram o fanatismo e a intolerância no coração do Islão deles[2].
Abdelwahab Meddeb
In “A DOENÇA DO ISÃO” – ed. Relógio D’Água Editores, Março de 2005, pág. 186 e seg.
[1] -Lembremo-nos de que Santo Agostinho era tunisino.
[2] - Corão (2:191-193)