Hoje, 28 de Maio de 2020, lembrei-me do conceito nietzschiano de ressentiment (que ele usa na grafia francesa) e que liga ao sentimento de superação de uma situação de constrangimento associada à inveja e à necessidade de culpabilização de alguém por esse sofrimento.
Historicamente, entre nós, temos duas formas de sublimação desse ressemtiment: a emigração, nomeadamente aquela que erigiu o Império; as revoluções, de que destaco as mais recentes, a da implantação da República, a do 28 de Maio de 1926 e a do 25 de Abril de 1974, uma sucessão ao estilo dos alcatruzes – alarga, aperta, alarga.
A Monarquia, tipicamente o regime em que uns nasciam destinados ao mando e os outros à obediência, foi substituída por um outro em que todos se achavam com direito ao mando, a sublimação do ressentiment numa explosão dos recalcamentos acumulados e de vingança pelas expectativas frustradas´- daí, a instabilidade social, as constantes revoltas de facção, os Governos de curta duraçã0o, a ausência de soluções sensatas ou eficazes, a bancarrota, a criação da ansiedade e da aspiração por uma paz entretanto perdida.
Foram os militares humilhados na Flandres, no norte de Moçambique e no sul de Angola que decidiram «pôr ordem no quartel» e em 28 de Maio de 1926 disseram que, a partir dali, eram eles que mandavam. Mas os traumas eram muitos e também eles não se entenderam como queriam. Lá tiveram que ser «arrumados» Gomes da Costra e Mendes Cabeçadas até que Carmona se sentou na poltrona. E foi depois duma negaça que tiveram que ir de novo pedir-lhe que regressasse. A quem? Àquele que definiria a vida portuguesa de 1933 a 1974, o Doutor Salazar.
E foram duas as missões que o levaram a agir: o reequilíbrio das Finanças Públicas e a oposição à determinação dos soviéticos de tomarem conta da Península Ibérica para subjugarem a Europa entre os Pirinéus e a futura cortina de ferro e, simultaneamente, tomarem conta das colónias portuguesas.
O desenvolvimento económico foi nesse longuíssimo período apenas o que o equilíbrio financeiro permitisse e as frustrações políticas dos que se sentiam constrangidos criaram tensões que a PIDE ia «gerindo» mas que, acumuladas, não podiam ser contidas.
O 28 de Maio perdurou tempo demais, não quis evoluir e quando o Proifessor Marcelo Caetano o tentou fazer, foi boicotado pelos «ultras» e viu-se apeado por um golpe comunista no dia 25 de Abril de 1974.
E aí, novamente, o povo saiu às ruas a berrar nem ele próprio sabia para quê e vá de se ver envolto num processo revolucionário soviético que só tardiamente derrubou. E só então é que o ressentiment pôde dar largas às invejas, às frustrações.
E já lá vão 46 anos em que a bancarrota regressou repetidamente, a bagunça alternou com a austeridade até que Stalin foi claramente substituído por Gramci na viabilização de uma geringonça governativa.
Segue-se o quê? Não sei mas gostaria que não fosse algo parecido com o que aconteceu ao inspirador destas linhas, Friedrich Nietzsche, a loucura.
Eis do que, «sans ressentiments», me lembrei hoje.
A denúncia é internacional contra a limitação da liberdade de acção da Amnesty India por parte das Autoridades indianas.
Camuflada de nacionalismo, a proibição de as ONG’s operando na Índia se financiarem no estrangeiro e se deverem limitar aos financiamentos indianos. E como os financiamentos privados internos são extremamente escassos, a acção das ONG’s só se torna eficaz com o financiamento público. Então, todas aquelas que critiquem as Autoridades indianas, não recebem financiamento público e aproximam-se da extinção ou, pelo menos, da ineficácia.
Eis como o Governo Indiano castra muitas das vozes que se lhe opõem.
E por que é que se lhe opõem?
No caso da Amnesty India, porque denunciam os atropelos aos Direitos Humanos, prática muito mais vulgar na Índia do que a comunicação social deixa transparecer. Prática essa exercida tanto a nível das Autoridades centrais como das estaduais uma vez que tanto Delhi como muitos Estados da União são governados pelo mesmo Partido, esse para quem os Direitos Humanos parece terem que seguir um padrão que se molde aos interesses da nomenklatura no Poder.
Sim, em Portugal a Amnistia Internacional actua em total liberdade e também é por isso que eu prefiro ser cidadão duma pequena democracia que se constrói diariamente do que da «maior democracia do mundo» que se avilta a todo o momento.
Fevereiro de 2019
Henrique Salles da Fonseca
(no Tamil Nadu, Maio de 2017)
Publicado também no «NIZ GOENKAR», Fevereiro de 2019
Sim, reconheço que «cá fora»[1] também há casos lastimáveis de quem trabalha sem condições de dignidade, remuneração, higiene e segurança. Dizer o contrário seria mentir e ocultá-lo seria escandaloso.
No comentário de «Anónimo» no «CHAO-MIN – 3» a que ora me refiro, a crítica incide sobretudo na minha frase relativa aos produtos resultantes do trabalho prisional na China que concorrem com os "homólogos produzidos por quem tem direitos humanos".
Com diplomática ironia, o Comentador calcula que eu me esteja a referir à «civilizadíssima mercadoria com etiqueta "ocidental" (que concorre com a chinesa nos mercados mundiais), produzida em condições laborais fabulosas, com um não menos fabuloso respeito pelos direitos humanos, em países como o Vietname, Bangladesh, Paquistão, Tunísia, Marrocos e mais alguns felizardos, denodada e alegremente enquadrados e defendidos por organizações, sindicais e outras, que lhes conseguem gordíssimas remunerações e condições de vida absolutamente invejáveis».
A este cenário – lastimavelmente real - eu acrescentaria ainda a questão do trabalho infantil que a essa condição, a da infantilidade, soma todas as descritas acima.
Contra factos, os únicos argumentos que poderão vingar serão os que conduzam à correcção das ditas condições de miséria.
A diferença que existe entre a China e os outros países «cá de fora» nessas práticas vergonhosas é a de que na China se trata duma política de Estado enquanto, nos outros, se trata de desleixo de Estado.
Conheço uma parte da China onde não me foi possível verificar o que afirmo porque não é suposto os turistas sequer saberem dessas realidades e muito menos vê-las e conheço outros países «cá de fora», nomeadamente a Índia em grandíssimas extensões. Dos países citados acima, posso mesmo dizer que conheço a Índia, Marrocos e o Vietname melhor do que, respectivamente, a maior parte dos indianos, dos marroquinos e dos vietnamitas. Quanto à Indonésia, não me arrogo um conhecimento tão extenso mas, mesmo assim, pude conhecer a ilha de Java (assim como Bali) numa extensão apreciável, tanto urbana como rural e respectivos matizes intermédios.
Vamos por partes:
Na Indonésia não vi miséria e mais não me ocorre dizer nesta circunstância;
Em Marrocos vi uma sociedade medieval que como tal deve ser considerada, mas onde o investimento estrangeiro (nomeadamente português) vem criando condições de vida bastante mais favoráveis do que as que se imagina existissem anteriormente;
No Vietname, vi instalações industriais que me informaram serem o resultado da deslocalização da China mas como constatei um nível médio de vida muito superior ao chinês, presumo que a deslocalização não tenha ocorrido em busca de condições laborais mais abjectas do que no local de onde foram deslocalizadas.
O problema «cá fora do Império do Meio» chama-se Índia onde, aí sim, tudo raia o abjecto. O cúmulo do desprezo dos políticos para com os respectivos «eleitores» verifica-se, dentre as amplas regiões que conheço, em Estados tão populosos como o Rajastão, o Uttar Pradesh e, sobretudo e no seu maior “esplendor”, no Tamil Nadu. Duvido que haja no resto do mundo locais onde o desprezo pela dignidade humana toque mais baixo na escala dos Valores concebidos por uma qualquer Civilização. Talvez só em Auschwitz ou em Treblinka tenham chegado a maior rigor.
E onde quero eu chegar com estes últimos considerandos? Muito simplesmente à constatação de que tudo o que o investimento – especialmente o estrangeiro - faça nessas zonas seja da maior importância para a sobrevivência imediata de alguns (sempre poucos) desgraçados que estavam encaminhados para a morte ao abandono nas lixeiras que são as ruas das cidades e aldeias indianas. Então, apesar de muito abaixo do que se exige nas sociedades ocidentais, os novos padrões de sobrevivência de que os funcionários dessas empresas estrangeiras na Índia passam a usufruir são tão melhores do que os que tinham antes, que tudo lhes parece um «el dorado» apesar de, para nós, tudo continuar a ser horrível.
Há quem diga que essas condições abjectas de sobrevivência resultam de conceitos civilizacionais, que não podemos fazer comparações com aquilo que a nós, ocidentais, nos parece correcto, desejável ou apenas razoável.
Não, eu creio que esse entendimento não corresponde à essência da questão pois, na mesma Índia, vamos por exemplo ao Estado do Kerala e não vemos um papel no chão, não vemos hordas de desamparados nem sequer de mendigos famintos, vemos as obras públicas em andamento e não paradas por falta de financiamento atempado como no Tamil Nadu, vemos uma classe média tranquila e firme.
Creio, pois, que a diferença não é civilizacional; à diferença chama-se corrupção dos políticos que desprezam os respectivos «eleitores» e não se cansam de enriquecer enquanto lhes dura o mandato. E, no final, não olham a meios para se eternizarem no Poder como acontece um pouco por toda a parte nessa a que há quem chame a maior democracia do planeta.
Exactamente: na Índia, o bem comum não é um conceito tão comum como o bem individual dos políticos e essa é uma questão que nada tem a ver com a Civilização mas sim com a qualidade da democracia que por lá dizem existir.
Finalmente, creio que o investimento, nomeadamente esse que por lá faz produtos de «etiquetas ocidentais», deve ser aplaudido por estar a minorar as condições degradantes daqueles desgraçados que, em alternativa, morreriam ao abandono no sítio onde deveria haver uma sargeta se, ao menos, houvesse saneamento básico.
Quanto ao trabalho infantil, por muito horrível que nos pareça, sempre são menos essas crianças destinadas à morte abjecta na selva humana.
Eu vi, sei do que falo.
E é para continuar assim? Sim, será, sobretudo se nós nada fizermos para mudar a condição que criticamos. Anjezë Gonxhe Bojaxhiu[2] não se ficou pela crítica, agiu.
Dezembro de 2018
Henrique Salles da Fonseca
(Tamil Nadu, em Trichy, nas margens do rio Cauvery, local de peregrinação e purificação dos hindus na que é chamada de «a Varanasi do sul»)
Há acções que nos surpreendem pela positiva, como prova de coragem, de paciência, de sentido de missão ou de sangue-frio; justamente por isso os seus autores se tornam heróis aos nossos olhos. E gostaríamos de os ver sempre assim, heróis! Sem baixezas… ou abstraindo mesmo das pequenas escorregadelas.
A não ser que tenha havido um esforço sério por praticar o bem, para fazer o que é correcto, arraigando virtudes no proceder habitual, eles não estarão isentos de deslizes, alguns fortes, cedendo a paixões, à sêde do poder ou a mesquinhas vinganças.
Ao ler o livro The end of poverty, de Jeffrey Sachs, tinha-me chamado a atenção, esta frase: “A maior ilustração da irresponsabilidade imperial britânica foi a sua resposta às repetidas fomes e doenças epidémicas durante a segunda metade do século XIX e a primeira metade do século XX” (Penguin Books, pg. 174). Que exagero, pensava eu, ou apenas força de expressão.
Alguns autores britânicos como William Darlymple ou Angus Maddison, nos seus estudos histórico-económicos tinham evidenciado como a riqueza que a Índia produzia fôra sendo destruída abruptamente a ponto de passar de mais de 24% antes da colonização, para menos de 4% na retirada dos ingleses. É muito de louvar que os investigadores britânicos não se tenham deixado levar por fábulas e superficialidades, na linha da exaltação nacionalista tão frequente na Europa, muitas vezes fomentadas pelo governo ou algum sector fascista. Intrigado com as afirmações de Sachs, tentei saber do alcance de tal ‘irresponsabilidade’.
Na verdade, segundo relatos históricos, na 2ª parte do século XIX e na 1ª do século XX, entre 15 a 29 milhões de pessoas terão morrido de fome e epidemias na Índia, sem que os dominadores colonialistas tenham mexido um dedo! E só no ano de 1943, quando Churchill era primeiro ministro, a situação era muito grave, com extrema falta de mantimentos na região de West Bengal, de capital em Kolkota. A fome apertava e os chefes colonizadores locais mandaram telegramas urgentes a Churchill chamando a atenção para a gravíssima situação e queriam proceder à distribuição de mantimentos armazenados para o efeito. Churchill opôs-se, com veemência, alegando uma justificação, que nada justifica, senão um ódio mal-contido aos indianos: ‘que poderiam fazer falta aos britânicos’, anafados e bem-alimentados.
E no papel do telegrama recebido anotou esta frase cínica e cruel: ‘Como é que Gandhi não morreu ainda?’ (de fome, por suposto). Impediu que se acudisse à fome. Deixou que morressem, em consequência, 4 milhões de cidadãos Indianos, em 1943 (cfr. Shashi Tharoor,https://www.youtube.com/watch?v=f7CW7S0zxv4 at Oxford Union)
Desenterrar atrocidades coloniais? Sim, para reavivar a memória e aprender dos erros do passado e, no mínimo, para se ter a humildade de os reconhecer e pedir desculpas! ‘Purificar a memória’, chamou o Santo Papa João Paulo II. Foram 4 milhões de vidas humanas ceifadas pelo capricho de um ‘herói’, com poder e com armas! Qualquer juiz sensato classificaria, sem hesitar, de crime com premeditação.
Desgraçadamente, na colonização britânica na Índia, estes casos macabros nem foram um acto isolado, nem infrequente… O desrespeito pelos cidadãos indianos foi acompanhado de ódio mal contido; talvez por os ingleses se sentirem humilhados com a superioridade moral e intelectual dos indianos que não davam importância ao colonizador. Recorde-se o massacre de Jallianwalla Bagh, no Amritsar, em que centenas de indianos foram mortos a sangue-frio e muitos mais feridos quando se manifestavam pacíficamente, sem nenhumas armas na sua posse!
As seguintes palavras pronunciadas no Parlamento britânico, são atribuídas a Lord Macaulay, proferidas em 2 de Fevereiro de 1835 (ele foi membro do Supreme Council of India, quando W. Bentick era Governador-Geral): “Viajei ao longo da Índia e tomei o pulso: não vi nenhum mendigo ou ladrão. Vi tal riqueza no país, tais valores morais, pessoas de tal calibre que não penso que alguma vez consigamos conquistar este país se não partimos a coluna vertebral desta Nação, que é a sua herança espiritual; por isso, proponho substituir o seu velho e antigo sistema de educação e a sua cultura…”
Churchill é um herói para os europeus. Mas como pessoa de forte personalidade não admitirá que não seja recordado com todos os seus atributos, em corpo inteiro, sem camuflagens, como sempre foi: herói e assassino de 4 milhões de indianos!
Quando comentava a grande eficiência do funcionamento do ‘número de emergência’, EMRI (108), que é um sucesso na Índia, pelo alívio que leva a quem está em apuros, veio-me ao pensamento uma frase de André Maurois, respeitante a si próprio, que li há tempos: “Não digais que sou forte ou fraco; realmente sou forte e fraco.” (Diálogos sobre o mundo – André Maurois, membro da Academia Francesa).
Quem criou o EMRI? Foi iniciativa pessoal de Ramalinga Raju, empresário, fundador da Satyam, empresa de TI, que chegou a ser a 4ª maior empresa de Tecnologias de Informação da Índia, em faturação. Convidou Changavalli para ser o Director Geral e concretizar a ideia do EMRI - Emergency Management and Research Institute, financiado por Ramalinga Raju, em 2005.
Depressa o 108 demonstrou ser a resposta ansiada pelo cidadão, tão necessária, operando em parceria público-privada nos diferentes Estados (da Índia). Em menos de 6 anos, prestava serviço a uma população de 400 milhões; hoje, na Índia, mais de 900 milhões têm o benefício da sua acção rápida, no local da emergência.
Em 2009, Changavalli recebeu uma chamada urgente de Ramalinga Raju. Pedindo desculpas, anunciava que se iria demitir de Presidente; havia convocado uma conferência de imprensa para denunciar a sua fraude de ter criado $1.000 milhões fictícios na contabilidade da Satyam, empresa cotada na bolsa. E pedia que Changavalli continuasse no seu posto, procurando novo financiador, para que a EMRI não se desmoronasse e continuasse a expandir-se pelo país, com serviços tão apreciados, em especial pelos mais pobres.
De facto, dois dias depois, Raju era preso. Dada a dimensão da Satyam e da fraude, o Governo nomeou uma Comissão gestora, para que a empresa não se desfizesse com a deserção de clientes e colaboradores.
Era uma situação única: Raju, transbordante de iniciativas, cria um conglomerado valioso, no qual brilha a Satyam; promove uma ‘entidade social’, público-privada, para acudir às emergências, algo que ninguém se lembrara de fazer, nem o Governo, que tinha tal obrigação!
Dado o vibrante espírito empreendedor, Raju necessitou de dinheiro para entrar em novos negócios que criariam mais riqueza e trabalho no país. Se fosse um burocrata sem iniciativa a administrar um bem privado ou público, poderia viver sossegado e ser condecorado.
Tudo o que Raju fizera de grandioso, num instante se desvaneceu… Raju é um escroque! – disseram muitos… Pouco antes, era um herói!
Raju foi condenado a 7 anos de prisão, donde saiu sob fiança.
É certo que só o empreendedor cria riqueza. Quando a iniciativa é muita, a ponto de ultrapassar a linha divisória, para procurar dinheiro, ele não mereceria ser desculpado, face ao bem feito antes? Talvez… Mas, se assim fosse, não se estaria a dar asas à corrupção? Por causa dela, há países onde o dispêndio de enormes recursos para elevar a vida dos pobres redunda em nada. Veja-se o Brasil…
Em contraste, Singapura tem ‘corrupção zero’, dizem; e progrediu da situação miserável no fim da colonização inglesa até ser hoje um dos países mais ricos e organizados, com regras que todos cumprem com rigor; parece um exagero, mas é um sucesso, pois é muito rica!
Singapura e Brasil mostram como não é nada indiferente conviver com a fraude; ela tem altíssimos custos: o país fica encalhado e os pobres ficam mais pobres ainda!
A fraude impune cria um ambiente de pirataria: tudo está a saque e é ‘inteligente’ quem mais rouba! Espalha-se como uma gota de óleo à superfície da água e pode fazer esquecer as exigências éticas, generalizando um clima permissivo.
Pelo contrário, a justiça célere reforça a ideia de que não compensa tomar decisões incorretas. Na Índia ou na Europa…
Há quem tenha prestado grandes serviços à Sociedade, dignos de louvar. Se teve debilidades, nada mais natural do que responder por elas… e arcar com as responsabilidades todas. A vontade deve ser educada pelo cultivo das virtudes, para se decidir mais facilmente por aquilo que é correto fazer, sempre. E evitar o que atrai e dá vantagens materiais, sacrificando o que é justo.
Decisões injustas prejudicam muito mais o seu autor, em primeiro lugar; mas também os outros e a sociedade inteira.
A exportação de jóias e pedras preciosas da Índia representou 16.7% do total das exportações, ou $43.000 milhões no Ano 2011/12. A Índia exportou 95% dos diamantes polidos do mundo, no valor de $ 28,300 milhões. Com alta probabilidade o cliente final poderá ser uma mulher da diáspora indiana. Diversas marcas nacionais estão a emergir neste domínio, mas a que prende a atenção é a India.
A Bharat Diamond Bourse, instituída em 2011, representa um notável upgrade à antiquíssima arte de lapidar e polir diamantes, na Índia, tão conseguida mercê do manuseio exclusivo do diamante desde a sua descoberta, vários séculos antes da nosso era (séc. 9 aC) até à sua redescoberta no Brasil, no século XVIII. A Bolsa de diamantes da Índia, situada em Mumbai, na zona de Bandra-Kurla, zona amplamente ‘semeada’ de nomes portugueses, em particular nas pedras tumulares das antigas e majestosas Igrejas, que recordam os primórdios da fundação de Bombaim, há cerca de 3 séculos.
A Bolsa espraia-se numa área de oito hectares, com nove torres interligadas, onde se albergam mais de 2.500 escritórios para importadores/exportadores de diamantes brutos e polidos, amplas áreas de exposição e montras, auditórios, restaurantes, etc., com uma área construída de 220,000 m2, num ambiente de alta segurança.
Há 26 bolsas de diamantes registadas no mundo. Elas correspondem ao estádio final da cadeia de fornecimento, fortemente controlada, onde os grossistas e retalhistas podem comprar lotes muito limitados de diamantes –para os preparar para a venda ao comprador final–, como forma de manter os preços ‘artificialmente altos’. Por si só, a de Beers de Joanesburgo e Londres, controla uma fatia importante do comércio.
Impressionante e triste era a sorte das centenas de milhar que trabalham na lapidação e polimento, recebendo em troca umas migalhas, quando os que dominavam o comércio, incluindo os intermediários, ficavam com a parte de leão. Mais de 850,000 trabalham nos variados centros de polimento, em Surat, Coimbatore e Mumbai.
A bolsa é o ponto de encontro de comerciantes, que tem um grande impacte nas vendas, com mais de 30.000 visitantes diários, por variados motivos.
Os diamantes foram descobertos na Índia, nos depósitos aluviais do Rio Krishna, no século IX aC. Hoje, cerca da metade dos diamantes em bruto vem da África Central e do Sul e o remanescente do Canada, Índia, Russia, Brazil e Australia.
As grandes empresas comercializadoras – Rio Tinto (Austrália), De Beers (Inglaterra e Africa do Sul), Alrosa (Russia) –, decidiram participar no Indian Diamond Trading Centre (IDTC), que é uma Zona Especial Notificada. Esta adesão vem na sequência do empenhamento pessoal do PM Modi em dar vida ao Programa ‘Make in India’, para facilitar a criação de postos de trabalho. Aquelas empresas realizaram variados testes, que foram plenamente satisfatórios, para depois decidirem sobre as suas transacções através da bolsa de Mumbai. O IDTC vai reduzir/eliminar a intermediação e permitir aos industriais negociar directamente com os mineiros.
Para se ter uma ideia, o Grupo Rio Tinto produziu e entregou ao mercado, em 2002, diamantes em bruto valorizados em US$9.000 milhões; depois de lapidados e polidos valiam US$14.000 milhões; quando vendidos por grosso nas joalharias de diamantes, alcançavam US$28.000 milhões; e US$57.000 milhões na venda a retalho.
Atualmente a mina indiana de diamantes mais importante é a de Panna, no Estado de Madya Pradesh. E o diamante mais antigo e famoso é o Koh-i-Noor, indiano, ‘subtraído’ pela Corôa Britânica.
Deveria investigar-se mais nas técnicas de lapidação, com aplicação dos conhecimentos avançados de cristalografia, para se valorizar ainda mais o diamante em bruto, e também para dar mais conteúdo ao trabalho dos lapidadores e polidores. A bolsa de diamantes de Mumbai e a sua afirmação gradual parecem a via natural de completar o ciclo do diamante, interrompido e mesmo desfeito pelos colonizadores britânicos.
Akbar (1542-1605), terceiro Imperador mogul da Índia (1556-1605), geralmente considerado o verdadeiro fundador do Império Mogul era filho do Imperador Humayun, nasceu em Umarkot, Sind (no actual Paquistão), subiu ao trono com 13 anos de idade e começou por ter um Regente, Bairam Kahn. Este regente reconquistou para o jovem Imperador grande parte dos territórios que tinham sido usurpados pelos vizinhos aquando da morte do seu pai até que em 1560 Akbar assumiu o poder de facto.
Compreendendo que a heterogeneidade e a cooperação seriam fundamentais para o governo e consolidação de um Império, obteve a colaboração dos rajputanos – que eram os mais belicosos de todos os hindus – utilizando uma sagaz mistura de tolerância, generosidade e força. Ele próprio tomou a iniciativa de casar com duas princesas de Rajput.
Assegurando a lealdade dos hindus, pôde então prosseguir para o alargamento do seu reino até que alcançou uma extensão tão vasta quanto a que vai do actual Afeganistão até à baía de Bengala e até ao rio Godavari, no sul.
Contudo, o seu maior feito foi o estabelecimento de um sistema administrativo que conseguiu manter o Império uno e que estimulou o comércio e o desenvolvimento económico.
Notável foi também a promulgação que fez de uma nova religião, a Dini-Ilahi (Fé Divina) que consistiu na tentativa de conciliação do Islão com o Bramanismo, Cristianismo e Zoroastrismo. Apesar de este seu projecto ter falhado, Akbar fez-se rodear de sábios dessas religiões e, se bem que ele próprio fosse quase analfabeto, fez da sua corte um centro de artes e letras.
E, contudo, recordamo-lo hoje pelo Taj Mahal, obra muito vistosa, sem dúvida, mas bem pequena perante a grandeza do seu trabalho mais importante, a consolidação do Império que, com algumas variantes, corresponde grosso modo à actual Índia.
Henrique Salles da Fonseca
(à porta do palácio de Samode nos arredores de Jaipur, Rajastan)
Há abordagens inteligentes que mostram o profundo entendimento das realidades humanas. A Gilead Sciences Inc descobriu um remédio eficaz e curativo em 90% dos casos da hepatite C. O seu custo para um tratamento completo de 12 semanas à razão de um comprimido diário ronda os 94 500 dólares.
Cerca de 54% dos que têm este tipo de hepatite vivem nos países pobres com um rendimento per capita de 1900 dólares. Só na Índia, cerca de 4,5 milhões estão infectados com a hepatite C, genotipo 1, para o qual aquele remédio é indicado.
Laboratórios indianos recorrem às cláusulas da OMC (Organização Mundial do Comércio) para terem autorização de fabricar produtos genéricos com os mesmos princípios activos a um custo muito baixo, acessível aos utilizadores locais. Antes da adesão à OMC, a cópia só se podia fazer ao expirar a patente. Antes disso, parte dos doentes pobres estaria condenada sem esperança de cura a não ser que algum laboratório não respeitasse a patente por respeito aos doentes.
Em 2001 Yussuf Hamied presidente da CIPLA, laboratório indiano de grande prestígio, convocou uma conferência de imprensa em Londres para anunciar que o seu laboratório iria vender o genérico para o HIV por 350 dólares a dose para o ano
Inteiro. Só ouviu protestos dos laboratórios ocidentais que tinham descoberto o remédio pois eles vendiam-no por 10 000 dólares a dose para um ano. Hamied foi para a frente com a sua pois eram muitos os doentes dos países pobres que poderiam sucumbir a breve trecho sem o remédio.
A decisão da Gilead foi de dar licença de fabricação não exclusiva a mais de dez laboratórios indianos pagando estes um royalty de 7% das vendas podendo distribui-lo na Índia e em mais 91 países pobres especificados.
É uma decisão muito esclarecida e felicito o seu presidente. Não cria atritos nem uma detestação por parte dos pobres e ao mesmo tempo revela um grande sentido de justiça.
Não vai agradar o que digo mas pense-se quais são os países pobres. São quase toda a Ásia espoliada pelos colonizadores ingleses, franceses e holandeses, a África despedaçada pela colonização europeia e a América Latina e do Sul, colónias sempre pobres. Daí que os países ricos, em geral colonizadores com meios para investigar, devam no mínimo ter em conta o passado para actuarem como o fez agora a Gilead. Esta abriu um novo caminho cooperante e de compreensão que espero venha a ter seguidores. Merecerá o reconhecimento de todos os pobres e pode ser que a desconfiança gananciosa dos laboratórios ocidentais face aos indianos venha a esbater-se, confrontados com a generosidade da Gilead.
O preço de venda do genérico desse produto na Índia é de 1000 dólares. É muito tentador mesmo nos países com um Sistema Nacional de Saúde que paga parte dos custos mas não tudo ou nos países ricos onde há uma faixa de pessoas sem cobertura dos custos de saúde nem seguros à altura e mesmo havendo se eles têm um tecto muito baixo para ir à Índia comprar ou tratar-se localmente.
Na pior hipótese de ter de passar as 12 semanas na Índia confirmado que os genéricos são de alta qualidade e eficácia, as pessoas de reduzidos rendimentos dos países ricos poderão ter os custos totais abaixo de 12 000 dólares incluindo viagens para o próprio doente e cônjuge, estadia e alimentação num bom hotel de três ou quatro estrelas e o custo dos remédios.
Se a escolha for Goa, terá ainda vantagens adicionais de estar num local paradisíaco onde cada recanto recorda factos históricos, um destino privilegiado de turistas indianos e ocidentais, de ocupar o tempo em algo interessante como aperfeiçoar o inglês, recordar a história de Goa e em especial aprender o manejo de computadores e da Internet. Tudo isso com lições particulares a bons preços.
Um complemento à estadia pode ser um check up completo nos modernos hospitais de Goa e eventualmente adquirir óculos novos com lentes das melhores marcas e tratar dos dentes ou pôr implantes, tudo a preços muito bons - menos de 50% dos
Europeus.
27JAN16
Eugénio Viassa Monteiro
Professor da AESE – Business School
Dirigente da AAPI-Associação de Amizade Portugal-Índia
«Não há bem que não acabe nem mal que sempre dure» – assim reza o ditado. E a viagem tinha mesmo que chegar ao fim. Eis-nos, pois, na última etapa, a de Bombaim a que agora está na moda chamar Mumbai.
Meia dúzia de horas, apenas, o suficiente para uma volta pela cidade. Guia turística castelhanófona, ao que já nos vimos habituando apesar de Espanha nada ter a ver com a Índia e nós, Portugal, sim, termos muito. Mas é claro que a culpa é das nossas Agências de Viagens que nada fazem para dar emprego a tanta gente que na Índia (ainda e já) fala português.
Um guia turístico é, por definição, um Embaixador do país em que reside e que o exibe a forasteiros. É, portanto, um agente cultural da maior importância que se deve adaptar aos interesses dos clientes, esses tais forasteiros, turistas.
No caso particular de Bombaim, aos turistas portugueses poderiam os guias turísticos apresentar locais e factos históricos que tivessem algo a ver com os tantos anos que por lá andámos mas, na realidade, passamos ao largo de toda essa temática e só por acaso nos apontam um ou outro edifício com características especiais a que chamam «estilo colonial» ou qualquer outra designação a atirar para o imbecil.
Por exemplo, a nossa guia local, que não deve sequer saber quem foi Garcia de Orta nem Catarina de Bragança, dissertou longamente sobre os lavadores de roupa, a «Porta do Oriente» por onde entraram e saíram os ingleses, os edifícios de estilo gótico, as praias ao pôr-do-sol e... mais não sei pois desliguei-me da conversa.
Mas Bombaim deve ser uma cidade bem boa para se viver, sobretudo se se puder ter um daqueles apartamentos miríficos numa das avenidas marginais com o Mar Arábico a dançar ali à frente.
Contudo, numa panorâmica geral, a Índia ainda tem os seus quês...
A fechar esta série de crónicas, resta a certeza de que muito ficou por referir mas também não era minha intenção escrever algum «Colóquio da Índia e do Sri Lanka». Até porque sempre esteve longe de mim a ideia de fazer sombra ao «Colóquio dos simples e drogas e coisas medicinais da Índia».
Finalmente, uma curiosidade: na Índia, os motoristas conduzem descalços mantendo as chanatas ali ao lado dos pedais para a eventualidade de terem que se apear sobre alguma cama de picos à moda dos faquires. Então, foi em Madurai, no Tamil Nadu, que a certa altura vimos o Director do hotel vir todo engravatado e pressuroso até ao hall receber um importantão (parece que era o Chefe da Polícia do Estado que se fazia acompanhar de dois polícias paralelipipédicos empunhando metralhadoras e de duas mulheres-polícia de beleza quase deslumbrante) cujo motorista, “vestido de ponto em branco” como soe dizer-se, se apresentava descalço no que, para todos eles, era a coisa mais natural da vida.
Aqui fica uma sugestão aos nossos industriais de calçado: não percam muito tempo com os motoristas na Índia.
De Bombaim voámos até ao Dubai e daí a Lisboa onde chegámos em condições de curar a constipação que o ar condicionado do autocarro nos pregou na viagem entre o Tamil Nadu e o Kerala. E os micróbios indianos devem estar cheios de piri-piri pelo que foi difícil dar-lhes cabo.
E não esquecer que o título desta série de crónicas é de inspiração medieval no sentido de que então se considerava desvairado todo aquele que agia segundo padrões diferentes dos do observador. E nesta viagem, para além de muita, vi gentes desvairadas.
E pronto, até à próxima que, parece, vai ser navegando pelo Amazonas...
Foi logo à entrada do Kerala que começámos a ver bandeirolas comunistas engalanando as ruas e, começando por ficar estupefacto, passei-me depois para a apreensão logo que me informaram de que naquele Estado a governação alterna tradicionalmente entre o Partido do Congresso e o Partido Comunista. Pensei – mas não disse – que os gatunos de esquerda alternam com os gatunos de direita. Ainda bem que calei esse meu pensamento pois já não estava no Tamil Nadu onde, aí sim, o raciocínio poderia ter algum fundamento. No Kerala não vi vergonhas dessas. Pelo contrário, fiquei a saber que é o Estado com o segundo mais elevado PIB per capita da União (o primeiro continua a ser Goa) e, por contraste com o Inferno de que acabáramos de sair, as ruas estavam limpas e as obras públicas em andamento. Por coincidência, a obra mais emblemática por que passámos foi a do metro aéreo de Cochim com trabalhos numa enorme extensão a contrastar com a paralisação do homólogo de Chennai.
Claramente contrário ao comunismo e a todas as demais formas de ditadura, abri bem os olhos a ver se via alguma coisa que me fizesse lembrar a Cortina de Ferro. Mas não vi nada que me chocasse e lá fomos todos navegar na baía de Cochim em barcos privados que antigamente devem ter tido alguma função no transporte de mercadorias mas que agora estão muito bem adaptados ao turismo. No que usei, havia dois belos quartos com casa de banho privativa para além, claro está, da sala de estar e de refeições que era o deck da vante. A cozinha e instalações da tripulação eram na ré e tivemos todos muito mais que fazer do que ir até lá.
Bela passeata que deu para lembrar o delta do Paraná, junto a Buenos Aires, com belas casas ao longo das margens a fazer lembrar uma muito boa qualidade de vida, «vaporetti» a lembrar Veneza e calor a fazer-nos lembrar que estávamos mesmo no sul da Índia.
Calecute foi o porto de chegada de Vasco da Gama em 17 de Maio de 1498 e Cochim foi a localização, em 1505, do 14º hospital de apoio às nossas navegações na rota entre Tavira (cujo hospital já existia em 1430) e Goa (hospital já existente em 1512) num total de 17 estabelecimentos.
E porquê a substituição de Calecute por Cochim nas preferências portuguesas? Porque o rei de Cochim pediu a ajuda portuguesa contra o seu rival tradicional de Calecute a cuja jurisdição se abrigaram entretanto todos os descontentes com a nossa chegada, ou seja, os mouros que até então dominavam o comércio entre a Índia e Alexandria, porto onde os venezianos iam buscar as mercadorias orientais. Pois bem, todos esses viram as barbas a arder e procederam com a maior hostilidade contra o rei de Cochim por este nos ter abrigado. Esta inimizade perdurou até recentemente e não podemos esquecer que Krishna Menon, ministro de Nehru em 1961 e grande entusiasta da extinção do Estado Português da Índia, era natural de Calecute.
Recordemos que Cochim acabou por ser integrada no Estado Português da Índia entre 1503 e 1663 e que foi lá que Vasco da Gama morreu aos 55 anos de idade no dia 25 de Dezembro de 1524 ficando enterrado na igreja de S. Francisco donde acabou por ser trasladado para a Vidigueira em 1539. Contudo, as populações acorrem à campa, onde sabem que o seu corpo já não está, com a maior solenidade e tocam na laje como num talismã. E a intensidade das emoções é ainda hoje tão visível que eu não tive coragem de perturbar ninguém perguntando o que os leva a tanta veneração pelo nosso primeiro Vice-rei da Índia.
A malha urbana de Cochim conta actualmente com cerca de milhão e meio de habitantes sendo que mais de metade professa o catolicismo.
É no Instituto Vasco da Gama, sedeado na Diocese de Cochim, às portas do Museu Indo-Português, que a Irmã Carmo de Jesus (ao centro na foto) ministra aulas de português desde 2008. Eis mais uma heroína da lusofonia que emocionadamente saúdo. Pena que lá não estivesse quando por lá passei. Mas deixei um recado ao porteiro para que lhe dissesse que um turista tinha perguntado por ela. Fui eu, Irmã!
(continua)
Lisboa, 5 de Dezembro de 2015
Henrique Salles da Fonseca
(junto à que foi a sepultura de Vasco da Gama em Cochim)