Jerónimo Lobo nasceu em Lisboa na primeira metade de 1595 no seio de família nobre. Admite-se que tenha frequentado o Colégio de Santo Antão, em Lisboa, que era então o maior estabelecimento de ensino jesuíta em Portugal; em Coimbra frequentou o Colégio das Artes; frequentava a quinta classe de Humanidades quando, com 14 anos de idade, entrou para a Companhia de Jesus; de 1613 a 1617 faz o curso de Filosofia; concluída a formação, foi colocado em Braga ministrando Gramática (latim) no Colégio de São Paulo durante dois anos; regressado a Coimbra, recebeu ordem em Abril de 1621 para ir trabalhar nas Missões do Oriente.
Foi por esta época que começou a redigir a sua obra Itinerário, espécie de diário que continuará nas duas décadas seguintes. Depois duma tentativa gorada, parte para o Oriente em Março de 1622 acompanhando D. Francisco da Gama que ia tomar posse do cargo de Vice-rei da Índia chegando ao destino, Goa, apenas em Dezembro desse ano.
Mas seria na Etiópia e na costa leste africana que o Padre Jerónimo Lobo se aplicaria como cientista, nomeadamente na Botânica.
Integrado num grupo de missionários que em Goa recebeu ordem de marcha para a Etiópia, desembarcou em Ampaza (Pate), ilha que se situa nas proximidades da actual fronteira entre o Quénia e a Somália mas, concluindo que o itinerário desse ponto da costa africana até ao destino etíope era muito difícil, navegou de regresso a Diu para, acompanhando o novo Patriarca Católico da Etiópia Afonso Mendes, tomar a rota do Mar Vermelho e aportar a Bailul. Foi por aí que se fizeram ao deserto salgado eritreu para alcançarem finalmente a corte abexim em Fremona, relativamente próxima do Lago Tana, nascente do Nilo Azul.
Chegada do Patriarca Afonso Mendes à côrte do Imperador etíope
(ilustração da capa da edição francesa do «Discurso das Palmeiras»)
Uma das primeiras missões do Padre Jerónimo Lobo foi a de recolher os restos mortais de D. Cristóvão da Gama, filho de Vasco da Gama, assunto que lhe fora encomendado pelo próprio Conde da Vidigueira. Escoltado militarmente por tropas do Vice-rei do Tigré, Tecla Georgis, em Outubro de 1626 dirigiu-se para Ofla, onde se dera a batalha em que Gama fora morto[1], [2]. Identificadas as relíquias, foram as mesmas trasladadas para Goa em Maio de 1627.
De todas estas viagens foi o Padre Jerónimo fazendo relato no seu quase-diário Itinerário donde resultaram o registo e a transmissão de um conhecimento inédito para a época de vastíssimas regiões africanas e asiáticas, das suas faunas, floras e gentes.
Tão missionário como os seus companheiros, o Padre Jerónimo pregava, confessava, celebrava, ungia e fazia todos os trabalhos inerentes a um sacerdote católico desde os baptismos aos casamentos e funerais mas na escrita a que metodicamente se dedicava, destacou-se como botânico com a sua obra Discurso das Palmeiras cuja redacção concluiu já em Lisboa onde regressou em 1657. Ali dá especial destaque à morfologia de cada espécie e também às múltiplas utilizações de todas as que encontrou nas suas deambulações pela Somália, Eritreia e Etiópia entre 1623 e 1634 e nos restantes anos da sua actividade missionária em diversas regiões da Índia. Desta obra constam também as principais patologias e pragas que observou. Por exemplo, o «escaravelho do Nilo» (bizouro negro, como lhe chama) de que só recentemente nós, comuns mortais portugueses destes inícios do século XXI, conhecemos como causador da morte de tantas das nossas palmeiras. E julgávamos nós que se tratava de moléstia dos nossos tempos.
Esta obra foi rapidamente traduzida para inglês e publicada em 1669 pela Royal Society ocultando o nome do verdadeiro autor apesar de o manuscrito em português se encontrar ainda hoje na posse daquela instituição.
Seria interessante esclarecer se esse manuscrito não está ainda hoje na posse da RoyalSociety por obra e graça de algum acto de gatunagem; é para mim óbvio que deveria estar na nossa Torre do Tombo, na Biblioteca Nacional, nos Arquivos Ultramarinos, nalguma outra instituição pública portuguesa ou, no mínimo, na posse da Província Portuguesa da Companhia de Jesus. Contudo, ainda posso admitir que estivesse à guarda da Academia das Ciências ou da Sociedade de Geografia.
Independentemente da conclusão da investigação que sugiro, fique aqui o registo de que essa tradução provém de um original em português da inequívoca autoria de Jerónimo Lobo, Padre jesuíta que viveu entre 1595 e 1678 tendo nascido e morrido em Lisboa e que toda essa investigação não é da autoria do impostor inglês que omitiu o nome do verdadeiro Autor.
Cumprindo o princípio ético e até moral de «o seu a seu dono», está na hora de os países europeus – oficialmente solidários – devolverem aquilo com que ao longo da História se abotoaram durante guerras e invasões.
Agosto de 2015
Henrique Salles da Fonseca
BIBLIOGRAFIA:
«Padre Jerónimo Lobo, SJ – um missionário e um naturalista no Índico», João Paulo Cabral e João Manuel da Silva Martins, BROTÉRIA, Maio/Junho de 2015, pág. 465 e seg.
Wikipédia
[1] - Na saída voluntária dos portugueses que anos antes tinham ido em missão de apoio ao Preste João e que este não queria que saíssem. Era norma que nenhum estrangeiro que visitasse a Etiópia pudesse abandonar o país, a menos que fosse expulso pelo próprio Imperador, o que aconteceu mais tarde com os jesuítas.
[2] - Companheiro de fuga de D. Cristóvão da Gama, o médico D. João Bermudes conseguiu chegar a Portugal e escreveu sobre a grande expedição portuguesa à Etiópia. Ver por exemplo em: http://abemdanacao.blogs.sapo.pt/562346.html
Frontispício, em ruínas, da igreja de São Paulo dos Arcos, construída na Velha Cidade de Goa pelos Jesuítas em 1541
Francisco Rodrigues, de Odemira, chamado «O Manquinho», entrou na Companhia de Jesus, em Coimbra, no ano de 1548 já sendo Doutor em Cânones. Foi professor de Teologia e de Matemática no Colégio de Stº Antão, em Lisboa e seguiu para a Índia por ordem do fundador, P. Inácio de Loiola, como Reitor do Colégio de Goa.
A sua deficiência física chamou, contudo, a atenção de alguns que questionaram a nomeação por se «fazer Reitor a um homem que se não podia ter de pé». Ao que o futuro Santo respondeu que «os Superiores não governam com os pés mas sim com a cabeça».
Foi no cargo de Provincial do Oriente da Companhia de Jesus que o P. Francisco Rodrigues morreu em 17 de Setembro de 1573.
Como observação complementar, anote-se que a Província do Oriente da Companhia de Jesus, sedeada em Goa, tinha então jurisdição desde o Cabo da Boa Esperança até Osaka, no Japão.
Julho de 2014
Henrique Salles da Fonseca
Fonte: “A carta de José de Anchieta aos irmãos enfermos do Colégio de Coimbra e o que tem de inédito”, Serafim Leite, SJ, in Revista BROTÉRIA, edição de MAIO/JUNHO de 2014, pág.502 e seg.
Filipe de Brito e Nicote nasceu em Lisboa cerca de 1566 e morreu em 1613 na Birmânia onde chegou a ser Rei com o nome de Nga Zingar.
Filho do francês Jules de Nicot (naturalizado português como Júlio de Nicote) e de Marquesa de Brito ("Marquesa" sendo aqui apenas um nome e não um título de nobreza), Filipe era fidalgo da Casa Real de Filipe II de Portugal. Cavaleiro da Ordem de Cristo, serviu na Índia e, na Birmânia, na conquista dos Reinos do Pegu e da Fortaleza de Sirião que reconstruiu, defendeu e sustentou.
Já na Birmânia pelos anos de 1590, dedicou-se ao comércio do sal na ilha de Sundiva mas passou de seguida ao serviço do rei de Arracão nas lutas pela defesa da capital, Pegu, contra as investidas dos siameses (tailandeses, actualmente).
Desejando o Rei, em 1599, mostrar a sua gratidão aos portugueses Salvador Ribeiro de Sousa e Filipe de Brito e Nicote que o tinham assistido, deu-lhes o porto de Sirião para "receber dobaixo da sua protecção os fugitivos que tivessem vontade de voltar."
Filipe de Brito convenceu o Rei a construir uma Casa de Alfândega para aumentar os seus rendimentos no comércio de Pegu. O seu intento era que, levantada a feitoria, se levantassem os portugueses com ela e, «melhorando-se de Fortaleza», a partir dali conquistassem mais terras. Mas estava tal ideia bem longe da astúcia do Rei e acabada a obra entregou-a a um vassalo seu chamado Banhadala.
Banhadala, suspeitando das intenções de Nicote, fortificou o lugar e não permitiu que nenhum português pudesse entrar. Nicote, "vendo que não o segundava a esperança conforme à sua imaginação, quiz executá-la antes que, crescidas as fortificações, lhe impossibilitasse mais a Empresa”. Assim, com os capitães João de Oliva, Paulo do Rego e Salvador Ribeiro de Sousa bem como com mais cinquenta portugueses, fizeram um ataque súbito ao forte. Vitoriosos, “alcançaram o nome de Fundadores do Domínio Português naquele Reino."
Salvador Ribeiro de Sousa também obteve uma vitória sobre o Rei Massinga na província de Camelão, na qual “o Rei foi morto e grande dano feito ao seu país, tanto por terra como por mar”. Devido a essas vitórias, a reputação dos portugueses foi tão grande junto da gente do Pegu que rapidamente quis ser empregada por eles, até que dentro de um tempo curto puderam receber os serviços de 20 mil naturais. Esses, em consideração ao êxito alcançado por Filipe de Brito e Nicote e o seu bom temperamento (por causa do qual eles o chamaram "Changá", ou "Homem Bom "), proclamaram-no Rei. Como ele estava ainda ausente, Salvador Ribeiro de Sousa aceitou a coroa em seu nome. Mas logo que voltou, Nicote recebeu o reino. Corria o ano de 1600.
Nicote parece que teve muito sucesso com o Vice-rei da Índia que o casou com sua filha, Luísa de Saldanha, que tinha nascido em Goa de uma mulher javanesa. Também lhe concede os títulos de "Comandante de Siriam” e de “General das Conquistas do Pegu". Nicote voltou então a Siriam com reforços e seis navios. Chegado a Siriam, refez o forte, construiu uma igreja e enviou um presente rico ao Rei de Arracão que tinha enviado uma delegação para o cumprimentar. Emitiu então ordens quanto à Casa da Alfândega conforme as instruções que tinha recebido em Goa directamente do Vice-rei: todos os navios que comerciavam na costa de Pegu devendo fazer as suas entradas lá. Como certos navios da costa de Coromandel recusaram obedecer a essas ordens, Nicote enviou seis navios para forçar a obediência, o que foi realizado com eficiência. Além disso, foram capturados dois barcos de Asseh com rica carga a bordo.
Anaukpetlun, filho do Rei d Alta Birmânia, lançou ua invasão da Baixa Birmânia apoderando-se de Prome em 1607. Em 1610 sitiou a cidade de Taungû que estava então nas mãos de Filipe de Brito e Nicote mas de que só se conseguiu apoderar em Setembro de 1613. Consumada a conquista, fez empalar Brito e escravizar os sobreviventes portugueses e euro-asiáticos (chamados bayingyi) que foram transferidos para duas aldeias perto de Shwebo onde ficaram a formar um corpo hereditário de artilheiros ao serviço dos reis da Birmânia. Ainda hoje, os bayingyi continuam a viver à volta do vale do rio Mu.
Eis como um português foi Rei da Birmânia entre c. 1600 e 1613 e ainda hoje por lá existem «portugueses abandonados» que bem poderíamos tentar contactar.
Porquê desmerecer os actos e feitos de João das Regras? Porquê fazer desaparecer no pó da História e no tumulto dos acontecimentos a figura e a memória do homem que ocupou no seu tempo o primeiro lugar e cuja acção condiciona tão prestimosamente as transformações do futuro?
Só se pode entender tão funda hostilidade ou pelas ideias que ele representou ou pela necessidade de dar relevo a outras personagens que não se veriam, que nada seriam, senão colocados sobre o sólido e alto pedestal da sua obra. Porque João das Regras inovou, reformou, administrou sobre princípios inteiramente diferentes daqueles até então adoptados na Administração portuguesa. E por isso feriu ideias pré-concebidas, prejudicou interesses poderosos, passou por cima de privilégios consagrados, introduziu no Governo pela primeira vez elementos novos provindos do anonimato das classes oprimidas ou desdenhadas.
Mas é preciso notar que João das Regras surgiu para a vida pública pelas imposições duma revolução e era natural que, na rigidez da sua probidade, quisesse realizar as ideias que a inspiraram e aproveitar os elementos que para ela contribuíram e satisfazer os interesses que ela sugerira.
A revolução de 1383 era a expressão da ansiedade dum povo que se via perdido no turbilhão das mais vis competições e que fazia aquele esforço desesperado para se salvar. O que ela continha de aspiração indefinida, de vontade desordenada e de força fecundante, só o espírito avisado e a sabedoria de João das Regras podiam compreender e realizar.
É por isso que ele é a figura primacial do Governo saído da revolução, o inspirador das suas reformas, o orientador da sua acção política e que impõe à sua organização um cunho nitidamente popular, livre de abusivas intromissões aristocráticas, liberto de todas as veleidades despóticas. E é ele ainda que comanda s última fase da revolução conduzindo com superior domínio as Cortes de Coimbra de 1385 donde saiu definitivamente consolidada a independência do novo Portugal.
E de que novo Portugal se tratava? Claramente, o resultante das novas ideias que João das Regras trouxera de Bolonha em cuja Universidade cursara Direito.
A Idade Média envolvia o mundo no manto das suas trevas. O poder era despótico, os princípios brutais, a Igreja absorvente e autoritária. A ciência e a instrução estavam nas mãos dos clérigos e dos monges e o pensamento livre rigorosamente proscrito.
Pelo contrário, Bolonha era uma cidadela do pensamento secular que se defendia asperamente das interferências e pressões das autoridades eclesiásticas. Os doutores que saiam das entranhas da sua sabedoria pertenciam a todas as classes e a todas raças e eram os homens que, por toda a parte, substituíam nos lugares de direcção política aqueles que até ali tinham ocupado por mero privilégio as nascimento. A Escola de Bolonha opunha, assim, à realidade precária do privilégio a realidade eterna do espírito científico.
Se no campo de Aljubarrota se feriu uma batalha decisiva no ponto de vista militar, nas Cortes de Coimbra feriu-se uma batalha não menos decisiva no ponto de vista político. Pode mesmo dizer-se que a vitória militar de Aljubarrota não seria possível sem a vitória política de Coimbra.
«Em Coimbra, o Grão Doutor é o general e o chefe. Essa batalha de discursos era diversa mas não menos brava de pelejar; porque uma grande parte da nobreza, decidida a defender o reino do castelhano, não o estava a aclamar Rei ao Mestre de Avis.» – Oliveira Martins, in História de Portugal
É ali [nas Cortes de Coimbra] que se opera, pela acção de João das Regras, a reconciliação da nobreza soba ideia que se tornou unânime da eleição do Mestre de Aviz e a união de todas as classes subordinadas ao pensamento comum e superior de salvar a independência do reino.
Apesar da incidência das suas acções, nunca o vencedor de Aljubarrota se pôde entender com o construtor do novo Estado. Eram dois temperamentos diversos e representavam duas doutrinas opostas.
Nun’Álvares era um cavaleiro medieval cuja visão se perdia nos horizontes longínquos da ilusão e da lenda e João das Regras um Doutor de cultura positiva que procurava no estudo das ideias e na compreensão dos factos a melhor forma de governar os povos. Um na aventura guerreira e o outro na acção política conquistaram duas glórias diferentes e antagónicas sendo certo que, pela natureza dos tempos, é a glória do Condestável que ensombra a glória porventura mais fecunda do homem de Estado.
Uma espada heróica e vitoriosa brandida no cenário agitado dum campo de batalha presta-se mais para os enaltecimentos teatrais da História do que as realizações governativas lentamente operadas no campo silencioso e árido da administração. O herói seduz as imaginações propensas às construções lendárias; o político apenas suscita a curiosidade dos estudiosos inclinados à crítica a à análise. O herói projecta na História a própria figura nimbada da luz das suas vitórias; a obra do político não mostra os seus efeitos senão nas morosas transformações que, com outros nomes e sob outras legendas, se operam nas épocas que se vão seguindo. Assim, o que ficou na História marcando a acção culminante deste período foi a epopeia de Aljubarrota cujo clarão ofuscou o valor mesmo dos actos que a prepararam e a tornaram possível.
Outra razão a considerar para explicar o ostracismo histórico a que foi condenado o grande legista é que os cronistas eram áulicos, pertenciam à domesticidade dos Reis e escreviam por encomenda e por ordem, assinalando-se-lhe a orientação e os feitos que deviam louvar nos seus escritos. E assim, Fernão Lopes exalta a glória de Nun’Álvares que não diminui a glória de D. João I mas vai engalanando o Rei com os louros que deviam pertencer a João das Regras. Para isso, é preciso esconder o Chanceler, desvanecê-lo, eclipsá-lo, ficando os resultados da sua magnífica influência política, que encheu de grandeza o reinado, no activo do Mestre de Aviz.
Henrique Salles da Fonseca
BIBLIOGRAFIA:
Carlos Olavo, «João das Regras – jurisconsulto e homem de Estado», Livraria Editora Guimarães & Cª, Lisboa, ed. 1941, pág. 10 e segs.
Todos nos lembramos da Passarola do Padre Bartolomeu de Gusmão, o primeiro português que sustentadamente levantou os pés do chão passando por cima de vilas e cidades, mas poucos saberão que ele tinha um irmão chamado Alexandre.
E quem foi esse tal Alexandre de Gusmão? Pois foi «só» Primeiro Ministro de Portugal.
À época, reinava D. João V, o título que se dava a quem chefiava o Governo era Escrivão da Puridade significando aquele que era confidente do Rei e lhe guardava os segredos. Há biografias que o apresentam como Secretário do Rei (ou até mesmo como Secretário Privado do Rei) mas não me parece que alguém que se limitasse a secretariar o Rei quer pública quer privadamente, organizando-lhe a agenda, mandando entrar nos aposentos reais quem se apresentasse a despacho ou enviasse ao destino missivas privadas mais ou menos secretas a alguma das favoritas de Sua Majestade, pudesse negociar Tratados internacionais. O Escrivão da Puridade não se encarregava da agenda nem da alcova reais e também não desempenhava funções meramente protocolares, ia a despacho com o Rei para assuntos de Estado da maior relevância para a Coroa e, portanto, não o podemos hoje equiparar a um Secretário mas sim a um autêntico Primeiro Ministro.
E se Alexandre de Gusmão foi nomeado para essas funções já depois de D. João V ter tido a trombose que o tolheu do lado esquerdo, note-se que o primeiro Escrivão da Puridade que D. João V tivera, logo após a coroação, fora D. Tomás de Almeida, então Bispo de Lamego, que mais tarde viria a ser o primeiro Cardeal Patriarca de Lisboa. Claramente, não estamos a referir Secretários.
A liderança de Alexandre de Gusmão foi decisiva na negociação do Tratado de Madrid assinado em 13 de Janeiro de 1750 ao abrigo do qual se obteve para Portugal o reconhecimento europeu da realidade das fronteiras do Brasil, pois o uti possidetis[1] e não Tordesilhas, traçavam as linhas de fronteira – a acção dos bandeirantes sendo reconhecida como mais forte do que as linhas imaginadas no século XV. Foi com base nesse Tratado que se estabeleceu o princípio do equilíbrio geográfico, ficando para Portugal a bacia fluvial do Amazonas e para Espanha a do rio da Prata.
Mas este Tratado implicou que Portugal cedesse a Espanha a Colónia do Santíssimo Sacramento (actualmente integrando o sudoeste do Uruguai) de modo a não mais navegar no rio da Prata e abdicando de acesso pelo rio Uruguai ao sul do Brasil mas garantindo que os espanhóis não navegariam pelo Amazonas a fim de alcançarem as suas terras interioranas nas faldas dos Andes.
«Tordesilhas» cortava o Brasil
Sem dúvida, um Tratado da maior relevância para a fixação das fronteiras brasileiras, grosso modo como actualmente as conhecemos.
Mesmo que nada mais tivesse feito como Escrivão da Puridade, bastaria este Tratado para merecer o nosso louvor em vez do esquecimento a que em Portugal o votámos.
Lisboa, Dezembro de 2012
Henrique Salles da Fonseca
NOTA FINAL:
Para saber mais acerca deste grande português, veja-se, por exemplo, a Wikipédia em
COLLECÇÃO DE VÁRIOS ESCRITOS INÉDITOS POLÍTICOS E LITTERÁRIOS DE ALEXANDRE DE GUSMÃO – editado em 1841 pela TYPOGRAFIA DE FARIA GUIMARÃES, Porto
[1] Ou uti possidetis iuris que é um princípio de Direito Internacional segundo o qual os que de facto ocupam um território possuem todos os direitos sobre este; a expressão advém da frase uti possidetis, ita possideatis, que significa "como possuís, assim possuireis"