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A bem da Nação

ALEXANDRE CASTRO CALDAS – Neurologista – 5

 

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Aos 65 anos, neurologista rejeita uma idade para a reforma e defende mais oportunidades para idosos terem os seus projectos

 

Não vê virtude nenhuma na austeridade?

Não vejo virtude na austeridade. Querer transformar isso e dar-lhe um ar que pode ser óptimo para a evolução da sociedade é perverso. Não é pelo sofrimento que as pessoas resolvem o problema.

Que marca deixou esta crise na nossa saúde mental?

É preciso ter algum cuidado nessa análise. Podemos dizer o que achamos mas isso tem pouco valor. Já ouvi pessoas a dizer que aumentou a depressão e outras que não. Acho que as pessoas estão mais tristes e tristeza não é depressão. Afecta o nosso dia-a-dia mas não se resolve com remédios mas integrando as pessoas.

Mas induz uma espiral negativa, que não ajuda a recuperar?

O negativismo pega-se. Agora também temos de ter alguma memória. A minha família é do Norte, de Arcos de Valdevez, e lembro-me de ver crianças nuas da cintura para cima e sem sapatos na rua, a tuberculose matava a família toda.

As pessoas sabem lá o que é fome comparando com esses tempos. O problema é que tivemos uma geração de abundância que criou expectativas e ficou sem elas. Isso é o pior que se pode fazer a uma pessoa, mesmo que a situação do país não seja a pior.

Se mandasse, como é que saía desta situação?

Não era capaz de mandar. Não sei como é que eles dormem.

Fala-se do cérebro de quem manda, de haver mais psicopatas na política.

O político tem de ter um cérebro autónomo, um pouco autista.

Consegue ver esses traços de autismo nos nossos governantes?

Às vezes consigo.

Por exemplo?

Não vou exemplificar mas há alguns particularmente autistas, de ambos os lados. Mas repare-se, é uma adaptação. Num contexto em que se ouve muitas opiniões, é muito difícil tomar decisões. É natural que quem tem de tomar decisões tenda a restringir quem ouve.

O que é que antevê para o país?

É muito difícil fazer previsões. O período da guerra do Ultramar foi horrível para a minha geração, tive amigos que morreram aos 20 anos. São coisas horríveis que a sociedade ultrapassa. Penso que acontecerá o mesmo.

A sua geração ainda está mais marcada por isso de que por esta crise?

Ainda há pessoas muito marcadas. É uma experiência profundíssima e o cérebro jovem guarda-as. As gerações mais novas não o recordam, têm uma visão histórica, é como pensar na batalha de Aljubarrota. Mas há outros momentos que marcaram. O primeiro 1.º de Maio foi uma coisa única.

Como viveu o 25 de Abril?

Foi um período complicado em que era difícil perceber o que ia acontecer. Houve acontecimentos dramáticos, foi dificílimo para mim perceber coisas como a invasão da embaixada de Espanha. Como é que se entra lá, despeja-se as pessoas e queima-se tudo cá fora, obras de arte, tudo. Tudo era possível naquela fase. Antes do 25 de Abril havia manifestações na rua, reuniões mais ou menos clandestinas e controlo policial. Mas apesar de tudo sabíamos as regras. A polícia marchava sobre a manifestação mas sabíamos como fugir. Quando se criou aquela situação sem governo, deixou de haver regras.

Correu bem mas naquele momento a sensação que tive era que podia ter corrido mal. Tinha uma filha pequena e estava aflito.

Quarenta anos depois, o que faz falta?

Uma figura capaz de intervir a nível europeu e marcar uma viragem. Precisamos de uma figura na Europa que consiga perceber para onde vamos. Porque é que Churchill foi a Atenas na guerra civil da Grécia? Foi ali que nasceu a cultura, a Europa não pode olhar para a Grécia como se fosse uma coisa qualquer. Portugal foi um país fundamental para a Europa, abriu as rotas do mundo. Não podemos ser os coitadinhos. O que é que os alemães andavam a fazer enquanto a gente andava a descobrir? Eram bárbaros. Portugal tem um capítulo importante na história da Europa e por isso não tem nada que ser considerado um país da periferia.

Para esta sociedade isto não interessa?

Mas a história está nos genes das pessoas. O que aconteceu em Portugal é muito secundário em relação ao que está a acontecer no resto do mundo. Voltamos ao dinheiro: o modelo de funcionamento da sociedade provavelmente não está bem.

Não está no nosso cérebro perseguir o dinheiro, querer mais?

O problema é que as áreas do cérebro associadas à recompensa, que activam com dinheiro ou com outras coisas, são as mesmas. Isso é que é chato. Se houvesse uma areazinha para o dinheiro e outra para as outras coisas boas era mais fácil.

É mais fácil compensar com dinheiro?

É mais fácil, é mais imediato. Agora a bolha rebentou e isso vai ter uma solução com certeza. Precisávamos de perceber que os valores das pessoas são outros, precisam de uma sociedade diferente que não as encare como coisas. Hoje em dia até já há pessoas capazes de responder quanto vale a vida humana. É um perfeito absurdo.

Começa a falar-se disso na saúde e no SNS.

Na saúde portuguesa vejo uma catástrofe, desapareceu o interesse pela pessoa. Como é possível uma pessoa ter um exame marcado e não o deixarem fazer por faltar um papel? Ou não se justifica o exame ou depois leva o papel.

Na procura de um maior controlo da despesa esqueceu-se as pessoas.

Mas antes havia mais desperdício.

Com certeza, mas isso resolvia-se com organização. Conseguiu-se isso sacrificando o respeito pela pessoa e o conhecimento. Quando se impõe que uma consulta tem de demorar 15 minutos acabou. Uma consulta demora o tempo que tem de demorar. Assim as consultas só correm o risco de sair mais caro porque vão exigir mais exames.

Tem saudades do hospital?

São coisas diferentes. Neste momento não conseguia viver no hospital. A dizerem-me para pôr o doente na entrada. Não pode haver horário de trabalho. Temos de fazer o que é preciso.

Como se torna o SNS sustentável?

O problema está nos recursos humanos. É preciso criar condições para contratar bem e trabalhar. O sistema público não se pode pôr em paralelo com o sistema privado porque sai mais barato. Enquanto o SNS quer prevenir a doença, o privado vive da doença. Estão em conflito e é muito difícil serem parceiros. O privado é hospitalocêntrico, é uma oficina que vive de haver carros avariados.

Não se revê na estratégia do governo de encarar o sistema de saúde como um todo?

De todo. A questão reside na capacitação dos recursos humanos no sistema público. Isto resolve-se com contratações inteligentes em que as pessoas sabem o que vão fazer e cumprem ou não. A reforma do Estado era passar-se uma vez por todas a dizer o senhor está cá para fazer isto. Qualquer pessoa aceita este negócio. Ao fim de um período, três anos ou o que for, não fez vai embora. Tem de haver uma avaliação séria.

A reforma foi uma oportunidade perdida?

Gostava que tivesse havido alguma reforma do Estado mas não houve nenhuma.

 

FIM

ALEXANDRE CASTRO CALDAS – Neurologista – 4

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Aos 65 anos, neurologista rejeita uma idade para a reforma e defende mais oportunidades para idosos terem os seus projectos

 

Neste curso sobre o cérebro também sentiu isso?

Em algumas coisas sim. Uma das surpresas foi por que é que as pessoas de idade não conseguem falar enquanto andam. É simples: já perderam o piloto automático da marcha, pelo que o pensamento e a conversa interferem com o equilíbrio. Uma Senhora ficou muito surpreendida, costumava zangar-se com a mãe por terem de parar para ela responder.

E porque é que os mais velhos se repetem tanto?

É como as crianças, quando se repete a mesma história os miúdos ficam tranquilos, quando se muda ficam aborrecidos. A repetição é um caminho conhecido, é a verdade da pessoa. Ao contar a mesma história muitas vezes, a pessoa sente-se com confiança.

A violência contra os idosos nas famílias parece ser mais comum do que pensávamos. Tem percepção desses casos?

Há muitas famílias disfuncionais, tive situações em que percebi que os filhos não eram a melhor companhia. Agora, hoje em dia há uma geração difícil que está a tomar conta dos pais e tem filhos pequenos, tem de fazer opções. Percebo que os filhos optem pelos mais novos, pelos filhos deles. O que faz com que não haja um investimento na qualidade de vida dos mais velhos, é mais fácil pôr num lar baratinho.

Tem-se falado dos incentivos à natalidade. Devia haver também incentivos à terceira idade?

É forçoso investirmos na natalidade até porque há uma idade em que ser pai e mãe faz parte da nossa biologia. Negar a procriação pode ser uma atitude intelectual e aí as pessoas organizam a sua vida de outra maneira. Mas na maioria das situações traz sofrimento. Em muitos casos as pessoas limitam-se a um filho único porque não podem ter mais, não é por razões de carácter intelectual. Isso é um constrangimento numa fase da vida que não podemos querer. Agora, sem dúvida, temos de apoiar as duas coisas.

E o dinheiro chega?

Não estou nada de acordo com esse argumento de que a roupa está curta e ou se puxa para um lado ou para o outro. Muitas vezes a roupa dá para todos, tem é de estar bem distribuído.

É preciso fazer desaparecer as pregas a meio.

Onde vê as pregas?

Não vou discutir economia e política mas acho que o mundo anda todo ao contrário. Felizmente o Papa tem dito as coisas certas: a humanidade existe há milhares de anos e o dinheiro tem pouco tempo. Não faz sentido este culto dos mais ricos. Para que serve isto? Não estou a dizer tirar aos ricos para dar aos pobres, mas tem de haver um padrão de vida mais equilibrado, que não crie tanto sofrimento.

Dizia-se que esta crise, ao vivermos com menos, podia ditar essa mudança

Acho que a exploração disto do ponto de vista político é inaceitável. Espremer a ver se sai alguma coisa. Acho que quem deve ter ideias é quem quer ter poder: tem de arranjar uma solução para a economia que não faça sofrer as pessoas. Do meu ponto de vista, vai ser muito difícil recuperar do estado em que está o país neste o momento. As pessoas estão desmotivadíssimas. Não há família que não tenha pessoas emigradas e é uma emigração diferente da que aconteceu há uns anos em que se voltava. Estes estão a ir novos, instalam-se em situações mais confortáveis e ficam lá. O país não ganha nada com esta emigração.

 

(continua)

ALEXANDRE CASTRO CALDAS – Neurologista – 3

 

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Aos 65 anos, neurologista rejeita uma idade para a reforma e defende mais oportunidades para idosos terem os seus projectos

 

Perdemos capacidade intelectual quando envelhecemos?

A linguagem mantém-se mas há curvas de perda de memória. Mas é uma perda de episódios e não de procedimentos. Isso acontece porque há zonas do cérebro que reduzem a sua actividade. Mas mais uma vez: não sabemos se resulta de menos uso. Enquanto sou miúdo preciso de ir guardando informação para me adaptar à vida. Quando começo a ver que «isto já sei e aquilo já sei», tendo a guardar menos. Se não usar, o cérebro é económico, desactiva. Acho que a perda é secundária, se as pessoas insistirem em aprender, conseguem. 

Portanto é falso que burro velho não aprende línguas.

Sim. As pessoas mais velhas aprendem e se não aprendem mais é porque talvez não tenhamos desenvolvido metodologias adaptadas. É interessante que mesmo pessoas com problemas cognitivos graves têm reacções que revelam o cérebro a processar mesmo coisas subtis. Tenho casos em que um filho se queixa que o pai ou a mãe passa muito mal as noites e na casa do irmão isso não acontece. Há situações mais dramáticas em que morre o marido ou a mulher e a pessoa fica tranquila. De alguma forma processava a ansiedade do outro. Uma coisa que se tem percebido é que o contacto físico é muito importante na relação com as pessoas com demência. 

Falta informação sobre como cuidar nessas circunstâncias?

Não há um livro de instruções mas cada vez mais temos de ter técnicos preparados e isso é um problema gravíssimo em Portugal. Estamos de costas voltadas para o problema das demências. Há alguns projectos pontuais mas não há uma visão geral.

Mas há um programa prioritário de saúde mental da DGS e um Conselho Nacional de Saúde Mental.

Mas o que é que está feito? O que é que está no terreno? Nada. Uma pessoa que se vê com um familiar com uma demência neste momento, não sabe o que há-de fazer à vida.

Sobretudo não tendo dinheiro?

Mesmo tendo dinheiro. Há poucas instituições que sabem o que estão a fazer. As instituições nem sempre vão buscar os profissionais mais habilitados. Não têm formação e reagem à pessoa com demência como a uma pessoa sem demência. Com estas pessoas tem de se ser actor de teatro, perceber o papel a desempenhar. A pessoa que entra com demência numa instituição ou num lar tem uma história de vida que é deitada fora para ficar normalizado. Querem lá saber se foi calceteiro ou professor catedrático...

Faz diferença no contacto?

Claro que sim. Se tiver sido toda a vida professor, não me identifico por Senhor João, não me reconheço, não percebo que é comigo. É preciso ter noção do passado cultural da pessoa. Mas há um problema mais grave: na maioria das instituições não há planos de trabalho individual. Uma pessoa não pode ir para uma instituição para se sentar à frente da televisão e ter refeições à hora certa. Estar ali vai passar a ser a vida daquela pessoa. O plano tinha de estar escrito, ser pensado e revisto.

Esses planos de vida deviam ser obrigatórios nos lares e instituições?

Está previsto e devia ser mas há uma grande falta de conhecimento. Ainda há dias conversava com uma Senhora que tem uma instituição. Dizia-lhe que era benéfico haver rotinas numas coisas mas não de outras. Por exemplo, não faz sentido os lugares marcados para almoçar, faz sentido ir mudando de mesa, conhecer pessoas novas. Ela respondia que isso era muito complicado: assim têm sempre o guardanapo e a medicação no mesmo sítio. Então mas não podem antes de se sentar ir buscar o guardanapo e a medicação?

Pedem-lhe muitas vezes conselho?

Às vezes e ficam muito admiradas. As pessoas percebem muito pouco de comportamento humano, há uma ideia errada de normalização.

(continua)

ENTREVISTA A JOSÉ TOLENTINO MENDONÇA

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Outubro de 2014

O seu nome foi recentemente proposto pelo CDS-PP para a Comissão Nacional de Ética e para as Ciências da Vida (CNECV), mas José Tolentino Mendonça é conhecido como sacerdote ligado à Cultura e como escritor e poeta. A mística do instante: O tempo e a promessa é o seu mais recente livro e sai com o PÚBLICO a partir desta segunda-feira. O vice-reitor da Universidade Católica explica por que razão faz sentido falar sobre mística no século XXI, fala da convivência dos povos e, claro, sobre qual poderá ser o seu papel na CNECV.

Escreve que a História do Ocidente teria sido diferente se a teologia de São Boaventura, uma visão mais centrada nos sentidos, tivesse triunfado. Em que é que podia ter sido diferente? Penso que teria sido diferente no entendimento de nós próprios, na forma como temos uma visão integrada e integradora da Humanidade. A História do Ocidente é muito feita a partir das ideias e será diferente quando valorizarmos outros elementos como os da humanidade, emoções, sentimentos. Se essa fosse a gramática comum, sem dúvida que as nossas competências para construir um mundo mais partilhado seriam outras.

No livro refere que a relação de Jesus com os outros é muito feita a partir dos sentidos. Isso foi-se perdendo. Foi um erro teorizar demasiado a religião? Eu penso que houve um excesso de doutrinação das religiões, que se tornaram, mais do que experiência e relato de vida – como a catequese narrativa que encontramos nos evangelhos e textos cristãos das origens –, muito escolásticas, doutrinais, apologéticas, com todo o respeito por Santo Agostinho e São Tomás de Aquino.

Há uma mudança de paradigma na Igreja, de um Papa como Bento XVI que era um teólogo para outro como Francisco que sente, que toca e que está muito ligado aos sentidos? Agora percebemos as diferenças [entre os dois Papas], mas um dia vamos perceber a linha de continuidade. Mas sem dúvida que representam dois paradigmas, até pelas suas biografias. Uma coisa é um professor de uma universidade alemã, com o peso do conhecimento de que é herdeiro e criador; outra coisa é a linha mais existencial de alguém que se sente um pastor; onde uma conversa como esta, mais ligada aos sentidos, está mais próxima das suas práticas.

Refere no livro que o “místico é aquele que não pode deixar de caminhar”. Bergoglio, antes de ser Papa disse: “antes uma Igreja acidentada do que paralisada”. Esta ideia de caminho é o início de uma mudança na Igreja? Uma das imagens do Papa Francisco que mais me dá que pensar é a de uma Igreja como hospital de campanha, que é o contrário de uma Igreja isenta que evita correr o risco do jogo de viver, dos seus combates, das grandes problematizações, mas que aceita ser ferida e acolher o homem ferido. Não a pessoa idealizada mas a pessoa na sua circunstância. O hospital de campanha é sempre um espaço improvisado, precário. Esta é uma imagem nova que não se opõe à imagem de uma igreja consolidada, mas é complementar e constitui para toda a Igreja, nomeadamente a europeia, um desafio muito grande. Há um entendimento da sua missão que é diferente. O Papa também nos desafia para uma visão que tem uma novidade grande.

O Papa tem insistido muito nos mais fracos, doentes, nos velhos. No tocar o outro. É essa igreja que é diferente? É a Igreja como casa aberta a todos. O tocar e amparar o outro, a disponibilidade para acolher. Só depois disso, é possível fazer um caminho. Para a compreensão do fenómeno Papa Francisco são importantes dois aspectos: primeiro, a concepção de Povo de Deus que ele tem, é muito próxima da realidade que se pode ter quando se viaja nos transportes públicos, quando se vive num bairro ou se visita as periferias. Trazer essa noção para o coração da Igreja é um gesto muito importante. Outro é desassossegar, desacomodar a Igreja. O discurso para o interior da Igreja tem sido de uma rara exigência e clareza. Ele tem vergastado os acomodamentos, as instalações numa forma de vida que nos torna insensíveis ao sofrimento dos outros.

Quando descreve as mudanças e exigências deste Papa, de uma Igreja mais próxima do outro, faz sentido falar de mística? Precisamos de redescobrir a mística. Karl Rahner, um dos grandes teólogos do século XX, diz que “o cristão do futuro ou será um místico ou nada será!”. É preciso dar um conteúdo novo a essa palavra e isso passa por entender a mística não como sentido de interioridade estrita e de fuga do mundo, como foi a de tantas espiritualidades, mas por ser um exercício de reconciliação com o mundo, assumindo o humano como lugar de construção do itinerário crente. Gosto muito da definição de Michel de Certeau, que pus na epígrafe: “É místico aquele ou aquela que não pode deixar de caminhar.” É uma definição minimalista. Quando pensamos em mística, pensamos que não é para nós porque tem um grau de sofisticação, que não tem nada a ver connosco, e esta definição reconduz-nos ao essencial que é compreender que, com o que somos, somos chamados a caminhar.

Com o individualismo em que vivemos, somos chamados a caminhar isolados ou com o outro? Este é um livro contra o individualismo, mas na certeza que a comunidade só se faz no reconhecimento dos sujeitos. Hoje, um dos problemas nas comunidades é a massificação, em que estarmos juntos implica um apagamento total do indivíduo. Uma comunidade é um encontro no interior das nossas singularidades irredutíveis, que se conjugam em toda uma experiência comum. A diversidade é inapagável, se quisermos fazer uma experiência verdadeira de comunidade.

No seu livro fala da mística dos sentidos. Por exemplo, o olfacto: lembra que nos Evangelhos os perfumes eram importantes na relação de Jesus com os outros. O islão permaneceu mais próximo dos cheiros e dos odores, o incenso é um ritual de fé importante mas também de relação com os outros. O Ocidente afastou-se? As nossas sociedades ocidentais afastaram-se da Natureza e criámos grandes plataformas de vida e de vida artificial – os ares condicionados, os ambientes neutros. Esse afastamento – que também trouxe vantagens que nos permitem rentabilizar espaços, criar condições favoráveis ao desenvolvimento dos nossos quotidianos –, priva-nos de elementos fundamentais que são a abertura dos próprios sentidos. Há uma espécie de interdito cultural que nos faz viver adiados, aquilo que Ingmar Bergman chama “analfabetos emocionais”, e que não nos faz valorizar dimensões da humanidade que são cruciais para uma experiência plena.

Escreve sobre o espanto das crianças porque vivem todos os sentidos. Manter em nós a capacidade do espanto das crianças é um dos principais desafios? Uma das perdas mais trágicas é a capacidade do espanto. Quando perdemos a abertura ao desconhecido, a capacidade de encantamento com o real, quando entramos numa espécie de indiferença que não está longe do cinismo... O modelo da criança, da infância, é o contrário do cinismo, é a construção de uma inocência, de um olhar desarmado da realidade, que seja capaz de acolher o perfume que nos chega através da multiplicidade de portas que cada instante tem.

Estamos a conversar num novo momento que se vislumbra ser de desentendimento entre o mundo cristão e o islão devido ao extremismo. Está a aumentar a intolerância de parte a parte? Este Verão estive no Brasil a dar aulas em Belo Horizonte e há lá um fenómeno urbano em algumas cidades que é o ‘agarra o ladrão’ – há um assaltante que rouba por esticão e os transeuntes têm uma atitude diferente da neutralidade e da indiferença; juntam-se, agarram o ladrão, neutralizam-no e castigam-no, fazem um primeiro castigo ali, em directo. Eu lembro-me de ter passado de carro, ter assistido a uma cena destas e ter sentido que o nosso mundo sucumbe. Se nós aceitamos esta lógica do ‘agarra o ladrão’, do fazer justiça pelas nossas mãos, do responder à agressão com agressão, o nosso mundo, os nossos valores sucumbem, e deixamos, no fundo, de ter uma plataforma comum de entendimento. Nesse sentido, a resposta que o Ocidente possa dar à violência injustificável de alguns pressupostos políticos que vêm daquela zona do mundo, penso que tem de ser uma resposta muito bem reflectida, para que não nos percamos e não percamos dimensões fundamentais de civilização numa anulação, que sendo a anulação do outro é também a anulação de nós próprios. E depois penso que é preciso valorizar outras dimensões, mais do que apostar num arsenal bélico de armamento e numa indústria de violência, é preciso, de facto, apostar numa indústria da paz, apostar mais na cultura, nas relações, valorizar as dimensões comuns e isso, digamos, é um trabalho que é desempenhado por pessoas individualmente, por missionários, por organizações que muitas vezes fazem isso quase por carolice, com uma falta de apoio muito grande. As pontes que a paz, a aceitação do outro, a curiosidade pelo outro são capazes de tecer são muito mais duradouras e trazem muito mais futuro do que estas respostas que se dão. Respostas que, no fundo, também a nós não podem deixar de nos colocar questões.

Falou de cultura. Nós temos uma história comum que não é bem ensinada, onde só se realçam conquistas e reconquistas militares e muito pouco as relações, a convivência. Talvez parte do problema se pudesse resolver com uma História que realçasse a partilha. Essa para mim é uma questão fundamental. De que ponto de partida se conta a História? E uma das grandes falhas neste momento é não termos encontrado uma História que envolva todos os actores. As histórias que nós contamos são em grande medida histórias nacionais, que deixam o mundo de fora. E são histórias com hipertrofrias e anomalias disfarçadas, submersas, mas que desfiguram o próprio relato histórico. Está ainda por encontrar uma História que corresponda verdadeiramente à História do mundo, à História dos homens, do seu encontro. Esse é um trabalho por fazer.

E seremos capazes de o fazer? Penso que não temos alternativa.

E nas universidades, isso começa a ser feito? Hoje, as universidades vivem num limiar novo das suas histórias, e isso passa pelo apelo muito grande à internacionalização, às redes de saber, ao acolhimento de outras nacionalidades. Na Universidade Católica temos dezenas de nacionalidades entre alunos e professores, mas esse é o retrato da maior parte das universidades portuguesas e das do mundo, e isso dá-me muita esperança. O futuro será muito menos parcial do que aquilo que foi o passado e o presente.

Estamos a falar desse encontro com o outro, mas para isso também é preciso que o outro esteja disponível. No caso do extremismo islamista não há essa disponibilidade. Os extremismos e a intolerância são sempre maus, venham de onde vierem. Mas é aqui que penso que as religiões jogam um papel muito importante. Como é que as sociedades se resolvem? No fundo, é perguntar como é que a vida se resolve, como é que a vida se salva. Eu acho que se salva por um desequilíbrio de amor, por um excesso de amor. Se queremos encontrar uma solução para a vida individual ou para a vida colectiva unicamente como um ajuste, como a construção de uma reciprocidade exactamente igual de parte a parte, nunca chegamos verdadeiramente a encontrarmo-nos. Aquilo que resgata a vida é um gesto unilateral de amor. E não sei em que medida é que nós somos educados para esta capacidade de, a um dado momento, como dizia Francisco de Assis, amarmos sem ser amados. Não é só uma questão religiosa, é uma questão política fundamental. Mas, infelizmente, as nossas sociedades reduziram as questões políticas apenas à luta pelo poder e não àquilo que edifica a cidade e a civilização.

Sem essa capacidade de amarmos sem ser amados nunca sairemos deste ciclo de desentendimento? Há sempre pessoas que fazem coisas horríveis. Há sempre e, nesse sentido, para mim, o elemento político mais importante é o perdão. A ausência de perdão é o fim da esperança. Não é por acaso que nos primeiros livros da Bíblia, que também são livros políticos, se diz que de 49 em 49 anos era preciso haver um perdão, um perdão das dívidas, uma libertação dos prisioneiros. Porque se a justiça se mantém imóvel também se torna injusta.

A certa altura, disse que esta crise ia ajudar a que nos recentrássemos. Já aconteceu? Penso que hoje nos faltam mestres e mestres de humanidade. Uma sociedade onde o principal discurso é um discurso económico ou economicista é uma sociedade que facilmente entra num beco sem saída e numa desesperança. Tem de haver uma complementaridade de saberes, de olhares, de cruzamentos científicos, e tem de haver uma coisa que nos falta muito que é uma sabedoria de viver. Nós temos muitos saberes, mas em que medida é que eles nos ajudam realmente a ser felizes, a construir uma felicidade e a identificar o que é a felicidade? A identificar por nós próprios, muitas vezes contra-corrente, o que é que verdadeiramente nos faz felizes e lutando por isso. Nesse sentido, a crise é um momento de grande turbulência, de grande sofrimento, mas era importante também que fosse um momento de grande procura, de grande debate, questionamento. E isso, infelizmente, tem acontecido pouco. É muito importante debater o Orçamento do Estado e o orçamento das famílias mas é muito importante não deixar de lado um debate sobre as grandes questões humanas e, no fundo, sobre a construção de uma ética comum.

No livro fala de uma crise de interpretação, de pertença, de nos faltar partilha sobre o essencial. É isso que quer dizer com essa ética comum? Um dos grandes problemas da nossa sociedade é pensar o que é que nos traz juntos, o que é que nos aproxima dos outros, o que é que nos liga, para além de parecemos cada vez mais dispostos, como denuncia o Papa Francisco, a considerar camadas de população como pessoas descartáveis. No fundo, a grande questão é se queremos estar todos juntos e o que é que nos liga verdadeiramente como sociedade. E aqui precisamos de facto de uma reflexão profunda que passa por pensarmos um ideário nacional, mas também por colocarmos as questões do ponto de vista humano. E isso é uma tarefa que temos diante de nós irrecusável.

E essa tarefa, de alguma maneira, vai conseguir fazê-la na Comissão Nacional de Ética e para as Ciências da Vida (CNECV)? Eu não sei se irei para lá, o nome foi proposto. Para mim, é muito claro a necessidade de criarmos consensos, de nos escutarmos mais uns aos outros até ao fim e de afirmarmos valores comuns, e essa área precisamente, da ética, da vida, parece-me que é fundamental, não só do nosso presente mas do caminho que juntos queremos fazer. Sem dúvida que é um dos debates fundamentais que uma sociedade tem de travar.

Foi proposto pelo CDS e isso criou alguma celeuma. Não será o primeiro padre na comissão mas é o primeiro que não é cientista ou ligado à área da saúde. Até que ponto sabe de Ciências da Vida para estar na CNECV? A ponderação dos percursos e das competências caberá a outros. Eu mostrei a minha disponibilidade no sentido de ter consciência do valor muito grande da causa em si mesma, do que ela representa e pela vontade muito grande de estabelecer diálogos, de procurar a construção de consensos sociais numa área que me parece extraordinariamente sensível para a coesão do nosso projecto humano e social e também por aquilo em que acredito. Aquilo em que acredito não me opõe aos outros e abre-me à escuta e ao caminho comum com os outros.

Mas haverá debates mais complexos, de choque, entre as posições da Igreja e as posições de outros. Uma comissão é uma comissão, é diferente de uma assembleia eclesiástica ou de uma comunidade eclesial. Hoje, na modernidade, a Igreja sabe ser parceira do diálogo civil, sabe que é uma das componentes de um diálogo mais vasto, onde ela está presente e representada e sabe que é chamada a caminhar ao lado dos outros e que precisa também do olhar e da voz dos outros para poder ser artesã de um mundo mais humano.

Falou da escuta. Pode ser essa a sua contribuição? A mim a diferença não me intimida, complementa-me e fascina-me.

Mas, no final, vai sempre dizer o que a Igreja diz. Não, se eu estou num órgão no final o que o órgão vai dizer é o que sair do órgão. E o que se espera de um conselho é que os vários conselheiros reflictam as suas proveniências, as suas experiências, os seus modos de viver e construam linhas comuns de entendimento. A construção social não se faz no apagamento das singularidades, das experiências próprias, pelo contrário, faz-se no contar com isso, no perceber como isso é uma riqueza, um potencial. Será que alguém tem dúvidas que estes 2000 anos de história da Igreja a tornaram numa perita em humanidade? Mesmo com todos os erros e, muitos deles, trágicos. Mas alguém tem dúvidas que a Igreja dá o contributo para a coesão social, está numa proximidade fundamental com as populações desfavorecidas, é muitas vezes a instituição que reconhece a vida mais frágil e que é capaz de a defender, de lhe dar lugar. A posição de um homem da Igreja na cultura não é de superioridade nem de menoridade, a Igreja é um parceiro e um parceiro que sabe respeitar as regras do jogo.

Há muitos lugares do mundo onde ninguém está a não ser a Igreja. Onde ninguém quer estar. Vimos, por exemplo, neste surto de ébola, a quantidade de missionários. Isto é, quem é que está na ponta última, na fronteira da humanidade mais frágil? A Igreja não é a única, mas há aqui também um capital, um património humano que é no fundo a grande riqueza da Igreja neste convívio humano, nesta conversa humana que ela é.

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