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A bem da Nação

SILVESTRE E O IDIOMA

 

Silvestre quer saber

Por que razão eu estrago o português

Escrevendo palavras que nem há.

Silvestre quer saber...

 

Não é a pessoa que escolhe a palavra,

É o inverso.

Isso eu podia ter respondido.

 

Mas não.

O tudo que disse foi:

É um crime passional, Silvestre.

É que eu amo tanto a Vida

Que ela não tem cabimento

Em nenhum idioma.

 

Silvestre sorriu.

Afinal, também ele já cometera

O idêntico crime:

Todas as mulheres que amara

Ele as rebaptizara, vezes sem fim.

 

Amor se parece com a Vida:

Ambos nascem na sede da palavra,

Ambos morrem na palavra bebida.

Mia Couto.pngMia Couto

in "Idades, Cidades, Divindades", Lisboa: Editorial Caminho

CARTA ABERTA DE MIA COUTO AO PRESIDENTE DA ÁFRICA DO SUL

 

 

Jacob Zuma.png

Senhor Presidente Jacob Zuma

 

Lembramo-nos de si em Maputo, nos anos oitenta, nesse tempo que passou como refugiado político em Moçambique. Frequentes vezes nos cruzámos na Avenida Julius Nyerere e saudávamo-nos com casual simpatia de vizinhos. Imaginei muitas vezes os temores que o senhor deveria sentir, na sua condição de perseguido pelo regime do apartheid. Imaginei os pesadelos que atravessaram as suas noites ao pensar nas emboscadas que congeminavam contra si e contra os seus companheiros de luta. Não me recordo, porém, de o ter visto com guarda-costas. Na verdade, éramos nós, os moçambicanos, que servíamos de seu guarda-costas. Durante anos, demos-lhe mais do que um refúgio. Oferecemos-lhe uma casa e demos-lhe segurança à custa da nossa própria segurança. É impossível que se tenha esquecido desta generosidade.

 

Nós não a esquecemos. Talvez mais do que qualquer outra nação vizinha, Moçambique pagou caro esse apoio que demos à libertação da África do Sul. A frágil economia moçambicana foi golpeada. O nosso território foi invadido e bombardeado. Morreram moçambicanos em defesa dos seus irmãos do outro lado da fronteira. É que para nós, senhor Presidente, não havia fronteira, não havia nacionalidade. Éramos, uns e outros, irmãos de uma mesma causa e quando tombou o apartheid a nossa festa foi a mesma, de um e de outro lado da fronteira.

 

Durante séculos, emigrantes moçambicanos, mineiros e camponeses, trabalharam na vizinha África do Sul em condições que pouco se distinguiam da escravatura. Esses trabalhadores ajudaram a construir a economia sul-africana. Não há riqueza do seu país que não tenha o contributo dos que hoje são martirizados.

 

Por todas estas razões, não é possível imaginar o que se está a passar no seu país. Não é possível imaginar que esses mesmos irmãos sul-africanos nos tenham escolhido como alvo de ódio e perseguição. Não é possível que moçambicanos sejam perseguidos nas ruas da África do Sul com a mesma crueldade que os polícias do apartheid perseguiram os combatentes pela liberdade, dentro e fora de Moçambique. O pesadelo que vivemos é mais grave do que aquele que o visitava a si quando era perseguido político. Porque o senhor era vítima de uma escolha, de um ideal que abraçou. Mas os que hoje são perseguidos no seu país são culpados apenas de serem de outra nacionalidade. O seu único crime é serem moçambicanos. O seu único delito é não serem sul-africanos.

 

Senhor Presidente:

 

A xenofobia que se manifesta hoje na África do Sul não é apenas um atentado bárbaro e cobarde contra os “outros”. É uma agressão contra a própria África do Sul. É um atentado contra a “Rainbow Nation” que os sul-africanos orgulhosamente proclamaram há uma dezena de anos. Alguns sul-africanos estão a manchar o nome da sua pátria. Estão a atacar o sentimento de gratidão e solidariedade entre as nações e os povos. É triste que o seu país seja hoje notícia em todo o mundo por tão desumanas razões.

 

É certo que medidas estão a ser tomadas. Mas elas mostram-se insuficientes e, sobretudo, pecam por serem tardias. Os governantes sul-africanos podem argumentar tudo menos que estas manifestações os tomou se surpresa.

 

Deixou-se, mais uma vez, que tudo se repetisse. Assistiu-se com impunidade a vozes que disseminavam o ódio. É por isso que nos juntamos à indignação dos nossos compatriotas moçambicanos e lhe pedimos: ponha imediatamente cobro a esta situação que é um fogo que se pode alastrar a toda a região, com sentimentos de vingança a serem criados para além das suas fronteiras. São precisas medidas duras, imediatas e totais que podem incluir a mobilização de forças do exército. Afinal, é a própria África do Sul que está a ser atacada. O Senhor Presidente sabe, melhor do que nós, que ações policiais podem conter este crime mas, no contexto atual, é preciso tomar outras medidas de prevenção. Para que nunca mais se repitam estes criminosos eventos.

 

Para isso urge tomar medidas numa outra dimensão, medidas que funcionam a longo prazo. São urgentes medidas de educação cívica, de exaltação de um passado recente em que estivemos tão próximos. É preciso recriar os sentimentos solidários entre os nossos povos e resgatar a memória de um tempo de lutas partilhadas. Como artistas e fazedores de cultura e de valores sociais, estamos disponíveis para de enfrentar juntos com artistas sul-africanos este novo desafio, unindo-nos às inúmeras manifestações de repúdio que nascem na sociedade sul-africana. Podemos ainda reverter esta dor e esta vergonha em algo que traduza a nobreza e dignidade dos nossos povos e das nossas nações. Como artistas e escritores queremos declarar a nossa disponibilidade para apoiar a construção de uma vizinhança que não nasce da geografia mas de um parentesco que é da alma comum e da história partilhada.

 

Maputo, 17 de Abril de 2015

 

 Mia Couto.png Mia Couto

Presidente da Fundação Fernando Leite Couto

O PRIMEIRO BRANCO


Os portugueses são o povo mais atrasado da Europa porque há séculos que se misturam com os negros.  Quem o afirma é o jornal National Vanguard Tabloid, publicação oficial de uma organização inglesa que defende a “pureza da raça branca”.  É curioso que o editorial da publicação tenha escolhido Portugal como o exemplo dos malefícios da contribuição do “sangue negro” para as sociedades europeias e americanas.  Racismo assim, às claras, é já muito pouco frequente.  O caso é tão raro que vale a pena visitá-lo. 

 

O jornal assenta a sua argumentação em “factos históricos”.  Portugal recebeu os primeiros escravos negros em meados do século XV.  

 

Dezenas de anos depois, os negros já eram 10 por cento do total da população lisboeta.  Essa percentagem viria a crescer para 13 por cento no século seguinte.  A pergunta imediata é a seguinte: estes africanos que destino tiveram? Regressaram a África? A resposta é não.  Eles foram absorvidos, misturaram-se do ponto de vista genético, social e cultural.  Eles ajudaram a construir a Portugalidade.

 

Introduziram valores e dados de cultura.  A palavra minhoca é apenas uma de dezenas de outras marcas no domínio linguístico. 

 

O autor de tal prosa racista do tal tablóide inglês não tem dúvida em identificar nesta mistura de raças e de culturas a razão daquilo que ele chama de “declínio da sociedade portuguesa". Passo a citar: Os portugueses eram, até então, uma raça altamente civilizada, imaginativa, inteligente e corajosa.  Mas devido ao rápido crescimento da população negra e o correspondente declínio dos brancos (cujos machos estavam em viagem longe da Europa) todo esse património de pureza foi adulterado. Falo deste caso como forma de reconhecer que os preconceitos rácicos são múltiplos e de múltiplas facetas.  

 

O mundo não obedece a uma fronteira simples que divide os racistas dos não racistas e que separa vítimas e culpados.  Vale a pena, pois, continuar a citar as razões invocadas pelo “National Vanguard”, para a chamada degradação da cultura e enfraquecimento da raça : O que se vê hoje em Portugal é o resultado de uma mistura não selectiva e uniforme de 10 por cento de pretos e 90 por cento de brancos num todo o homogéneo.

 

Trata-se de, facto, de uma nova raça – uma raça que estagnou na apatia e nada produziu de novo em 400 anos de História. A culpa desta estagnação, segundo estes neonazis, reside na liberdade com que os portugueses se “cruzaram” com os africanos.  Isso resultou numa mudança profunda do carácter e da psicologia da nação lusitana.  

 

O “National Vanguard” não tem nenhuma dúvida ao afirmar: “os portugueses do século XVII e os dos séculos seguintes são duas raças diferentes”. Os articulistas advogam obviamente a favor da separação racial.  Sociedades como a americana contiveram e contêm uma percentagem considerável de negros.  Mas essas “souberam” manter uma céptica fronteira entre os grupos raciais.  Não houve cruzamento nem mestiçagens.  Assim diz o jornal. Foi essa separação que, segundo a racista publicação, ajudou a manter a capacidade de progresso em países como os Estados Unidos da América.  E conclui: não existe evidência nenhuma que a integração dos negros e dos judeus tenham trazido alguma vantagem em qualquer parte do mundo. Embora estas publicações sejam casos isolados e representem uma faixa desprezível da opinião pública, a verdade é que não é por acaso que o jornal escolheu Portugal como um caso paradigmático.  

 

Os trópicos como evidência de degradação e desumanização é um estereótipo antigo.

 

Essa atitude de arrogância não é sequer nova.  Uma parte da Europa há muito que lança sobre Portugal um olhar distante e de superioridade racial.  Portugal é, afinal, o país de Eusébio, de Ricardo Chibanga, de Sara Tavares. Um episódio antigo ligado ao explorador britânico Livingstone ilustra bem como essa Europa olhava e olha para Portugal.

  f_david_livingstone.jpg

 

Livinsgtone vangloriava-se ter sido o primeiro branco a atravessar a África Austral.  Um dia alguém lhe chamou publicamente a atenção que isso não era verdade. Antes dele já o português Silva Porto tinha realizado tal travessia. Imperturbável, o inglês ripostou: - Eu nunca disse que fui o primeiro homem a fazê-lo.  Disse apenas que fui o primeiro branco.

 

29 Janeiro 2011

 

 Mia Couto

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