Minha Aldeia, antigamente
Laborioso cortiço
Era colmeia de gente
Mourejando, sol a sol;
E da aurora ao arrebol
Sorria, tranquilamente...
Tinha gente, tanta gente
Que eu amei ou conheci!
A minha aldeia era aqui
Mas hoje, tudo é diferente;
Já lá vai a mocidade,
Já passou a ser cidade,
Já esqueceu essa gente!
Por isso, quero deixar
Antes que parta também
Aos que cá vivem agora,
A recordação d’outrora,
Tempo pra mim sem cuidado
E revivendo o passado
Dos que foram pró Além,
Quero trazer à memória
Alguns, de que seu a história!
Tinha o Crista, sapateiro
E o Perigoso, barbeiro.
Perto, o Barros da Capela,
Tinha a tasca da Malícia
A Benfolga do polícia
E a Laranja em Ventiela.
Tinha os Senras na carreira
A Ti Maria louceira
E feira no Largo da Cruz,
Onde a Olívia hortaliceira
De segunda a sexta feira
Abria a boca e Ai Jesus!...
Festa igual não há nenhuma
Mesmo rodando quilómetros
Será procurar debalde;
Só o “Senhor da Boua Fertuna”
Ou a festa dos gasómetros
Lá no Largo de Moalde.
Na rua atrás da Capela
Existia um Trovoada
Casado com uma Carneira
Que passava a vida inteira
Sempre a trovejar por nada,
Mas caladinho pra ela...
Havia um Olho de Vidro
E havia um grupo entretido
A jogar a vermelhinha;
Havia um Caramileiro
E o Manel Farrapeiro
Perto dessa Capelinha.
Quando havia um funeral,
Fosse de rico ou de pobre
O Quim tarracha é sabido
Compenetrado do acto,
Vestindo o seu melhor fato
Ia à Cruz, sem alarido.
E o Manel Vai Pr’á Guerra
Que a guerra não conhecia
Pra ganhar algum pataco
A fazer recados vivia.
Não dava pró que comia,
Ia dando pró tabaco!...
Havia um Cego na Asprela
Perto do Manel do Cabo
Havia a gente do Brinca
E havia a Vinte e Cinca
Sempre num “arranca rabo”.
Tinha os filhos do Cesila
E a casa do Basila
Que era o “Quartel General”;
Tinha uma Lina Caruja
E a família da Maruja
Gente do bem e do mal...
Havia o Manel d’Além,
Caramalhas, Saias Rotas
Gente descalça e com botas
Ou calçado rapelhado;
E a presa da Lavandeira
Com o Rio Novo à beira
Pra dar de beber ao gado...
Teve até um Regedor
O Baristo lavrador,
Que sempre que alguém prendia,
Levava o preso consigo
E era tal o castigo
Que ser solto, ninguém queria!
Teve um Juiz Julião
Um Professor Fabião
E um Padre Farinhote
Com a gata Consciência;
Teve a Senhora Clemência
Que arrastava o saiote...
A registar quem nascia,
Quem casava, quem morria
Havia uma Primavera
E havia uma Liberdade
Sem saber o que isso era
E escondida a vontade
Dum Abril que foi espera!
Frente à Loja do Cantinho
Vivia o Zeca Manquinho
Que de “piela” dizia
Para a casa onde morava
Sua “piscina” cruzava
A nado, quando chovia...
Pelos “Passos”, na Procissão,
Havia um grande sermão
Do “Encontro” assim chamado;
E “unhas”, que ninguém nos ouça,
Só o Ribeiro da Bouça
Pró estandarte mais pesado,
Tinha um Mestre-Escola pedreiro
Um Periquito barbeiro
Um padeiro Batatinha
Um lavrador Cabeleira
Tinha louças na Barbeira
E tabaco na Cacinha.
Tinha um Silva Regedor
E um Cordeiro Doutor
Um lavrador Fevereiro
Tinha Poupas e Pardais
E outros Pássaros mais
Muitos, gente de dinheiro.
Tinha um Pereira enfermeiro
Um Barros relojoeiro
Casado c’uma Barista
Tinha a casa Tianol
O Adelino Pitrol
E tinha a bouça do Brista.
Havia um Nocas pintor
Que era também actor
No Teatro de Revista;
E a Gertrudes parteira
E o Nina da Sarradeira
E um porqueiro Batista.
Tinha uma Fonte dos Alhos
E quem caísse em trabalhos
Na quelha da Caganita:
E o Domingos dos cavalos
Foguetes de 4 estalos
E a família do Pita.
E um Melro, na Igreja Velha
A caminho de Parada
Tinha a Maria Picada
E os” Fandinos” em passeio;
Tinha o Infesta jogando
A Maria Aurora cantando
E o eléctrico ao meio.
O Ginja do Simpatia
Desenhava e escrevia
Tinha talento e humor.
Quando entrou no “Caldo e Broa”
Chegou a ir a Lisboa
Na companhia do Flor.
Tina a Farmácia do Lino
Onde o Quim de pequenino
Era aprendiz de doutor;
Sabia dar injecções
Fazer pomadas, poções
E xaropes pró amor...
E tinha o Dr. Germano
Parteiro como não há;
Mesmo não sendo de cá
Merece bem estar aqui
Pois ao que eu soube e vi
Ele trouxe para a vida
Muita gente cá da Aldeia;
Sendo a ingratidão coisa feia,
Recordo-o agradecida!
Do Germano seguidor
Pelo Ginja caricaturado
Eu quero também lembrar
O Dr. Vilar Machado
Baixo, bem apessoado
Que me apraz recordar.
O cauteleiro Cabilhas
Pôs os filhos e as filas
A ajudá-lo no negócio;
À esquino do Botequim
Fazia grande chinfrim
Mas nunca quis nenhum sócio!
Tinha o Augusto dos panos
Que já entrado nos anos
Fez um Cinema na Aldeia;
Tinha Chapas e Moletes
A Pimenta das bicicletes
E uma Caritas bem feia...
No cinema tinha o Megre
Bilheteiro e Lanterninha;
Tinha uma Viúva Alegre
E o Zoeira, genro desta
Tocador de violino
Que escreveu, com muito tino
“S.Mamede está Infesta”!
Ainda há hoje no Flor
O Zé Oliveira, actor
Do tempo de “Caldo e Broa”;
Tanto tempo dirigente
Não é para toda a gente
Nem para qualquer “Patroa”...
A loja do Campeão
Tinha sementes, feijão
Hortaliças e etcs.;
Mas não tinha cola-tudo
Pra colar “peixe miúdo”
Nem as “bocas-mais-abertas”!
Manel Luís e Pacar
Tinham carros para alugar
Com motoristas fardados;
Levavam ao mesmo tempo
Os noivos ao casamento
Pais, Padrinhos e convidados...
Existiram no passado
Políticos contra o Estado
Democrático Movimento;
Hoje apenas o que resta
Em S. Mamede de Infesta
É essa rua do Centro.
E havia Cucos e Cucas
E Custódias “meio zucas”
Que bebiam “escarlatina”;
Havia Pedros e Pedras
E Lourinhas bem azedas
E Polidores, em cada esquina.
À tasca do Azeiteiro
Ia um Boletineiro
Bebedolas, pachorrento
Pra quem o correio Urgente
Ou normal, era indiferente...
“Se é Urgente, tem tempo!...”
‘Inda há Limas e com Lima
Tanto primo e tanta prima
E ‘inda há o Leça Armador;
Mas a Isaura dos Caixões
Já não entra em confusões
Porque abalou pró Senhor!
Havia muitos Dourados
E havia Patos casados
Com Patas e outras mais
Pra juntarem a riqueza;
Havia a Tia Ana Teresa
E o Zeca dos jornais.
A Micas dos Caladinhos
Vendia desses docinhos
Na sua loja de Usados;
Paravam por lá uns “mangas”
Alguns amigos das “tangas”
E outros, aposentados.
Numa noite de calor
Descansando do labor
Tentando matar a sede,
Criaram, deram à luz
O que foi seu “Ai Jesus”
O Rancho de S. Mamede!
Havia a Foto Taveira
E pertinho, quase à beira,
Havia o Maximiano
E o Júlio Chapeleiro
E os filhos do Mineiro
Com fominha, todo o ano...
Mas não se julgue que eu penso
Serem tempos assombrosos
Pois descalcinhos, ranhosos,
Jogando à bola de trapos
Muitos Meninos da Aldeia,
Só tinham “jantar” ou “ceia”
Colchão de palha e farrapos.
Apenas sinto saudade
Desse tempo de esperança
Pois quando se é criança
Não se conhece maldade...
Muita gente eu esqueci
E disso peço perdão
Talvez noutra ocasião
Eu os lembre, noutros versos;
Às vezes, são adversos
Os ventos da inspiração...
No entanto, à minha Terra
Deixo aqui este penhor
Expressão do meu amor
Que pra amar, não há idade;
E ao Padroeiro, a veia
Do que escrevo à Minha Aldeia
Que agora já é Cidade!...
Silva Escura, 26 de Junho de 2001
Maria Mamede