A CORRUPÇÃO
Portugal passou o século XIX (e porventura o XX...) a advogar e a tentar a sua própria “regeneração”. É nesta linha que se insere o movimento revolucionário de 24 de Agosto de 1820, que desencadeia uma acção cultural que fomenta a ideia recolhida e desenvolvida pelo positivismo: a necessidade de uma regeneração moral/social que fomente a material. Não pela revolução mas pelo progresso na ordem. Essa regeneração seria omnimoda: política, jurídica, cultural, estética, económica, financeira e religiosa, já que, num primeiro momento, não pretendia excluir a religião da esfera pública mas apenas libertá-la dos dogmas e, assim, fazer dela moralizadora da sociedade e antídoto das superstições. Eram, na política, os ideais liberais de Condorcet e Godwin de confiança absoluta nos progressos da razão, da ciência, da técnica e, fundamentalmente, da perfectibilidade humana.1
O positivismo não foi o único a dar-se conta da amplitude da corrupção político-social na vida do país. O que teve de particular foi a insistência na urgência da mutação de semelhante estado de coisas. E como a corrupção é da ordem dos comportamentos, logicamente seria pela via da moral que se lhe poderia pôr cobro. Partia-se deste dado: a corrupção atingiu tal amplitude que se tornou “sistemática, erigida em forma de Governo”.2
Apenas pela baixeza moral dos governantes e consequente usurpação dos bens políticos? Não. Dever-se-ia mais à falta de convicções profundas dos políticos, à sua má preparação técnica e à falta de capacidade de discernimento. De resto, ela não seria exclusiva da classe política pois atravessava toda a sociedade. Seria estrutural. E ter-se-ia instalado de tal forma q1ue o povo a julgava normal. Não apoquentava a maioria dos espíritos, com excepção de alguns ilustrados.
Para vincar esta ideia, os positivistas chamavam a atenção para algumas dimensões da corrupção que a tornariam imensamente maléfica. Em primeiro lugar, o facto de ser aceite culturalmente. Por exemplo, nas distinções honoríficas que ligavam a relevância social à fortuna sem atender sequer ao modo da sua aquisição. Além disso, a corrupção era favorecida pelo sistema classista: daí, o dado notório de só alguns grupos sociais assumirem as rédeas do poder.
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Outro dado seria a preponderância do económico e do material sobre as questões político-morais. Esta falta de racionalidade ético-filosófica leva a que o espírito humano se deixe absorver pelas considerações da prática e nisso gaste as suas energias, quando o problema é de teoria, de concepção, na falta de um paradigma de actuação.
Finalmente, é de ressaltar uma [outra] dimensão: a interligação entre política e corrupção levava os bons a afastarem-se, a não quererem sujar as mãos. Assim, afastados os competentes, ficava aberto o caminho para o acesso dos demagogos: os de fácil expressão oral ou escrita mas sem conteúdos e de qualidade duvidosa3.
D. Manuel Linda
Bispo das Forças Armadas
In Mundividência ético-social do positivismo português, BROTÉRIA, Fevereiro de 2015, pág. 131 e seg.
1 ISABEL NOBRE VARGUES, A aprendizagem da cidadania. Contributo para a definição da cultura política vintista. Coimbra: Universidade de Coimbra, 1994
2 TEIXEIRA BASTOS, Princípios de philosophia positiva extraídos do curso de philosophia positiva de Augusto Comte. Porto: Livraria Universal, 1883
3 Teixeira Bastos exemplifica isto com os advogados e literatos os quais, segundo ele, substituíram – mas mal – as antigas corporações judiciárias e os doutores.