- Como se conjuga o Presente do Indicativo do verbo «precaver»?
Se para um português à primeira pergunta corresponde chumbo pela certa, já quanto à segunda, fiquei a pensar e sou capaz de aventar algo como...
- Eu precavejo
- Tu precavês
- Ele precavê
- Nós precavemos
- Vós precaveis
- Eles precavêem
Será?
Ora se para mim o cupim é a bossa dos bois brâmanes, como é que se pode pôr a questão de a bossa ter fêmea? No máximo, seria o cupim da vaca. Mas não! Há certamente mais quem seja cupim algures nesse mundo de Cristo... Só pode! E então o que é esse cupim que tem fêmea? Pois não precisei de fazer como Augusto Gil quando disse «fui ver» e se deparou com a neve. Bastou-me chegar ao final do texto de Manuel Bandeira para saber que se trata de ave aquática do Rio Grande do Sul cuja fêmea se chama arará. E o mais interessante é que o poeta recorrera a ornitóloga amiga nordestina e a tudo quanto era dicionário e... nada. Foi preciso telefonar a uma cruzadista sua conhecida para que ela respondesse sem qualquer hesitação: arará!
E o mistério continua um pouco mais à frente quando me aparece um parentirso que o poeta trata por tu como se tal «coisa» fosse do mais natural que Deus tenha posto na Terra. Então ele conhece o parentirso e não sabia o nome da fêmea do cupim? Oh! Subida Academia que afinal nada sabes de ornitologia... Muito bem, fiquemos então a saber que o parentirso é um estilo assumido pelos bacantes e foliões quando em fúria nos idos da Antiguidade Clássica. Toma e embrulha!
Não se pense, contudo, que Manuel Bandeira tivesse por hábito «arrotar postas de pescada». Não! Lendo-o, ficamos com a sensação nítida de que ele dizia estas coisas como se elas fossem mesmo do conhecimento do comum dos mortais. E se na prosa ele usa de um humor fino e até mesmo jocoso, na poesia temo-lo frequentemente a abordar assuntos banais com uma naturalidade encantadora. Não raro, junta humor a poesia com uma ponta de «non sense» totalmente inesperada. É o caso de «PNEUMOTÓRAX»:
Febre, hemoptise, dispneia e suores nocturnos.
A vida inteira que podia ter sido e que não foi.
Tosse, tosse, tosse.
Mandou chamar o médico:
- Diga trinta e três.
- Trinta e três... trinta e três... trinta e três...
- Respire.
...
- O senhor tem uma escavação no pulmão esquerdo e o pulmão direito infiltrado.
- Então, doutor, não é possível tentar o pneumotórax?
- Não. A única coisa a fazer é tocar um tango argentino.
E também o «VOU-ME EMBORA PRA PASÁRGADA» é humorístico:
Vou-me embora pra Pasárgada
Lá sou amigo do rei
Lá tenho a mulher que eu quero
Na cama que escolherei
Vou-me embora pra Pasárgada
Vou-me embora pra Pasárgada
Aqui eu não sou feliz
Lá a existência é uma aventura
De tal modo inconsequente
Que Joana a Louca de Espanha
Rainha e falsa demente
Vem a ser contraparente
Da nora que nunca tive
E como farei ginástica
Andarei de bicicleta
Montarei em burro brabo
Subirei no pau-de-sebo
Tomarei banhos de mar!
E quando estiver cansado
Deito na beira do rio
Mando chamar a mãe-d’água
Pra me contar as histórias
Que no tempo de eu menino
Rosa vinha me contar
Vou-me embora pra Pasárgada
Em Pasárgada tem tudo
É outra civilização
Tem um processo seguro
De impedir a concepção
Tem telefone automático
Tem alcaloide à vontade
Tem prostitutas bonitas
Para a gente namorar
E quando eu estiver mais triste
Mas triste de não ter jeito
Quando de noite me der
Vontade de me matar
— Lá sou amigo do rei —
Terei a mulher que eu quero
Na cama que escolherei
Vou-me embora pra Pasárgada.
Ou ainda em «AUTO RETRATO»
Provinciano que nunca soube
Escolher bem uma gravata;
Pernambucano a quem repugna
A faca do pernambucano;
Poeta ruim que na arte da prosa
Envelheceu na infância da arte,
E até mesmo escrevendo crónicas
Ficou cronista de província;
Arquitecto falhado, músico
Falhado (engoliu um dia
Um piano, mas o teclado
Ficou de fora); sem família,
Religião ou filosofia;
Mal tendo a inquietação de espírito
Que vem do sobrenatural,
E em matéria de profissão
Um tísico profissional.
Mas nem sempre Manuel Bandeira está virado para a brincadeira. Por vezes é nostálgico como em «ANDORINHA»:
Andorinha lá fora está dizendo:
— “Passei o dia à toa, à toa!”
Andorinha, andorinha, minha cantiga é mais triste!
Passei a vida à toa, à toa…
E bem cedo se fartou dos parnasianos, os da métrica cronométrica e da rima bem rimada:
POÉTICA
Estou farto do lirismo comedido
Do lirismo bem comportado
Do lirismo funcionário público com livro de ponto expediente protocolo e manifestações de apreço ao Sr. director.
Estou farto do lirismo que para e vai averiguar no dicionário o cunho vernáculo de um vocábulo.
Abaixo os puristas
Todas as palavras sobretudo os barbarismos universais
Todas as construções sobretudo as sintaxes de excepção
Todos os ritmos sobretudo os inumeráveis
Estou farto do lirismo namorador
Político
Raquítico
Sifilítico
De todo lirismo que capitula ao que quer que seja fora de si mesmo
De resto não é lirismo
Será contabilidade, tabela de co-senos, secretário do amante exemplar com cem modelos de cartas e as diferentes maneiras de agradar às mulheres, etc.
Quero antes o lirismo dos loucos
O lirismo dos bêbedos
O lirismo difícil e pungente dos bêbedos
O lirismo dos clowns de Shakespeare
— Não quero mais saber do lirismo que não é libertação!
E por aí além... até que outro poeta, seu amigo, lhe disse quando se comemoraram os 50 anos da sua poética...
Certamente não sabias
Que nos fazes sofrer...
É difícil explicar
Esse sofrimento seco,
Sem qualquer lágrima de amor,
Sentimento de homens juntos,
Que se comunicam sem gesto
E sem palavras se invadem,
Se aproximam, se compreendem
E se calam sem orgulho.
Não é o canto da andorinha, debruçada nos telhados da Lapa,
Anunciando que a tua vida passou à toa, à toa.
Não é o médico mandando exclusivamente tocar um tango argentino,
Diante da escavação no pulmão esquerdo e do pulmão direito infiltrado.
Não são os carvoeirinhos raquíticos voltando encarrapitados nos burros velhos.
Não são os mortos do Recife dormindo profundamente na noite.
Nem é tua vida, nem a vida do major veterano da guerra do Paraguai,
A de Bentinho Jararaca
Ou a de Christina Georgina Rossetti:
És tu mesmo, é tua poesia,
Tua pungente, inefável poesia,
Ferindo as almas, fogo celeste, ao visitá-las;
É o fenómeno poético, de que te constituíste o misterioso portador
E que vem trazer-nos na aurora o sopro quente dos mundos, das armadas exuberantes
E das situações exemplares que não suspeitávamos.
Por isso sofremos: pela mensagem que nos confias
Entre ônibus, abafada pelo pregão dos jornais e mil queixas operárias;
Essa insistente mas discreta mensagem
Que, aos cinquenta anos, poeta, nos trazes;
E essa fidelidade a ti mesmo com que nos apareces
Sem uma queixa, no rosto entretanto experiente,
Mão firme estendida para o aperto fraterno
– O poeta acima da guerra e do ódio entre os homens –,
O poeta ainda capaz de amar Esmeraldas embora a alma anoiteça,
Quando o poeta aparece, Sacha levanta os olhos claros, Onde a surpresa é o sol que vai nascer.
O poeta a seguir diz coisas incríveis, Desce ao fogo central da Terra, Sobe na ponta mais alta das nuvens, Faz gurugutu pif paf, Dança do velho, Vira Exu. Sacha sorri como o primeiro arco-íris.
O poeta estende os braços, Sacha vem com ele.
A serenidade voltou de muito longe. Que se passou do outro lado? Sacha mediunizada – Ah-papapá-papá- Transmite em Morse ao poeta A última mensagem dos Anjos.
Manuel Bandeira
1931
“ANATOMIA DE UM POEMA”
Sob o título acima publicou o Sr. Marino Falcão no Diário do Povo, de Campinas, uma exegese dos meus versos “Sacha e o poeta”, pedindo-me depois, em carta muito amável, que lhe dissesse se a sua interpretação coincidia com o meu pensamento.
Antes de responder, vou transcrever aqui o poema e fá-lo-ei em composição corrida para poupança de espaço:
(o que eu não faço, pela mesma razão – HSF)
Para Marino Falcão esse poema é o relato metafórico de uma sedução, Sacha uma jovem ingénua, inexperiente, deslumbrada “com os ademanes e manigâncias” do poeta, os quais “desencadeiam nela o processo do viciamento da vontade”. E como Marino Falcão, sobre ser homem de letras, é promotor público na nobre cidade de Campinas, capitula a aventura como “crime definido em lei e previsto no art. 217 do Código Penal”. Bem entendido, se Sacha era menor de dezoito anos.
Marino Falcão acertou em parte. De facto, o poema é o relato de uma sedução. Só que a finalidade de todas as manigâncias do poeta era obter tão-somente um sorriso de Sacha. E como está contado nos versos, obteve-o. Obteve mais, coisa inefável, a última mensagem dos anjos, sob a forma de um vocalize muito semelhante às linhas e pontos do alfabeto morse.
Marino errou também no que concerne à idade de Sacha. Era menor de dezoito anos, sim, tinha, ao tempo da sedução, apenas uns seis meses de idade, só falava em alfabeto morse. Louríssima, alvíssima, sereníssima. Eu tinha que conquistar-lhe um sorriso, usei de todos os recursos referidos. E o sorriso veio. Como deve ter luzido sobre o mundo o primeiro arco-íris.
Vou mandar esta crónica a Sacha. Ela vive hoje em Estocolmo, casada com um rapagão sueco, mãe de duas suequinhas maravilhosas – Ann-Marie e Ingrid, três anos e um ano – portanto, ambas já mais idosas do que Sacha quando inspirou o poema tão interessantemente anatomizado por Marino Falcão. Não lhe doa a este o que há de errado na sua interpretação. Valéry não disse que não existe verdadeiro sentido de um texto? Não vale a autoridade do autor: Quoiqu’il ait voulu dire, il a écrit ce qu’il a écrit.
In «Andorinha, andorinha»
In “Manuel Bandeira – Selecta em prosa e verso”, organização Emanuel de Moraes, ed. JOSÉ OLYMPO EDITORA, Rio de Janeiro, 6^edição, Agosto de 2007, pág. 52 e seg.