Título: AS IDENTIDADES ASSASSINAS (Les identités meurtrières)
Autor: Amin Maalouf
Tradutora: Susana Serras Pereira
Editor: DIFEL
Edição: 2ª, Janeiro de 2002
Da contracapa extrai-se que o autor nasceu no Líbano e que vive em Paris onde, entre outros cargos, desempenhou o de Chefe da Redacção do Jeune Afrique.
Logo pela badana se fica a saber que o livro consubstancia “uma lição de cólera e indignação contra a loucura que, todos os dias e por todo o mundo, incita os homens a matarem-se em nome da sua «identidade»”. Apoiado na sua condição de homem do Oriente e do Ocidente – de origem árabe, cristão melquita não especialmente praticante – tenta compreender porquê, na história humana, a afirmação individual leva à negação do outro. Meditação profunda, tem como finalidade convencer os seus contemporâneos de que se pode ficar fiel aos valores herdados sem que por isso se fique ameaçado pelos valores de que os outros são detentores. Poderosa mensagem de tolerância, procura fazer a paz.
De fácil leitura, recorda-nos a feroz intolerância do Cristianismo durante séculos enquanto nessa mesma época o Islamismo praticava uma efectiva tolerância mas constata também que as posições se inverteram totalmente e que na actualidade o Cristianismo está associado à abertura e o mundo muçulmano derivou para comportamentos totalitários.
Apologia do mútuo conhecimento, preconiza o estabelecimento de um sistema cultural de permanentes vasos comunicantes de modo a que cheguemos à globalização social, ao “tempo das tribos planetárias” mas reconhece que, apesar disso, é imprescindível “domesticar a pantera”, ou seja, aqueles que, mesmo nessa dimensão, se sentem discriminados e por isso se revoltam. Para o autor a solução está na prática democrática de modo a que todas as minorias se sintam representadas e que a democracia se não transforme na ditadura do número – sem o referir, imagino que prefira a solução portuguesa de aplicação do método de Hondt no preenchimento dos vários cargos de eleição.
«E nada proíbe pensar-se que um dia um negro venha a ser eleito Presidente dos Estados Unidos e um branco Presidente da África do Sul».
Editado pela primeira vez em 1998, compreende-se a preocupação do autor em realçar o bom exemplo da democracia libanesa . . . o que em 2006 vem demonstrar à saciedade uma das teses defendidas ao longo de todo o livro de que o que hoje é verdade, amanhã pode não o ser.
Isto, quanto ao que interessa, o conteúdo. Mas quanto à forma, a literária, vê-se bem que se trata de um escritor francês. De facto, a frequente – mas não excessiva adjectivação como sucede com Bernard-Henri Levy – e o repisar da ideia até que o autor tenha a certeza de que, pela insistência, tocou a memória do leitor, faz-me lembrar do paradoxo de a língua francesa não conter o feminino da palavra “professeur” quando, na realidade, se vê que estes antigos alunos aprenderam a escrever num estilo psicologicamente feminino e portanto, quase de certeza, com uma professora. Mais: a fluência em corrente contínua contrasta com a escrita tipicamente masculina, em vagas e cavas; o homem diz a “coisa” uma vez, não fica a moer nela até à exaustão e passa para outro tema que claramente separa do anterior, no mínimo, com um novo parágrafo.
Anuladas as repetições e moderada a adjectivação, em vez das 173 páginas de texto poderíamos ficar-nos seguramente por uma escassa centena. E mesmo assim já seria um belo ensaio.
Enfim, temo que a escrita francesa actual esteja a precisar de passar uns tempos num Quartel-general qualquer a fazer relatórios pois está com um estilo muito “civilizado”, nos antípodas do castrense.
vO maniqueísmo descreve-se em poucas palavras: para mim, o monopólio da razão; para ti, o erro contumaz.
vOra, estas crises lá na outra ponta do Mediterrâneo são sempre campo farto para os muitos maniqueísmos que por aí campeiam. E, nesta atribuição sistemática da culpa a Israel, gente que se diz progressista, mas que lê pouco, não vê que está a comungar dos preconceitos ideológicos que instigaram Hitler, Mussolini, Franco (para quem a desgraça de Espanha tinha origem nos judeus e na maçonaria), Staline, progroms czaristas - e, em tempos mais recuados, os Concílios de Toledo.
vAo longo dos séculos, tudo tem servido de pretexto para acertar contas cuidadosamente ocultadas com os judeus: em vez da observação honesta dos factos, a vontade de justificar, seja como for, a certeza bem-pensante do momento. Só por isso, o porquê do “problema judaico” (fenómeno eminentemente europeu, com uns quinze séculos de existência), e o papel que os próprios judeus nele têm desempenhado, continuam terra incognita.
vNa presente crise, as acusações lançadas deixam a lógica malferida (tal como a verdade, a lógica conta-se sempre entre as primeiras vítimas de qualquer crise mais grave). Entendamo-nos: Israel foi criado para resolver os problemas históricos da Mitteleuropa com os seus judeus, e para esbater a lembrança do holocausto (nós por cá, na Península Ibérica, solucionáramos de vez o nosso “problema judaico” no final do séc. XV; e as restantes nações europeias nunca fizeram dos seus judeus um problema por aí além).
vO próprio movimento sionista surgiu na Europa Central, no seio de judeus askhenazis, descendentes muito provavelmente, não de povos semitas, mas de populações judeizantes que eram numerosas na bacia mediterrânica, desde o séc. V. Para o sionismo moderno, Israel poderia ser o território original da sua religião - mas não era, seguramente, a terra dos seus antepassados.
vÉ legitimo perguntar se, terminada a guerra, as reparações que os Aliados sentiam dever aos judeus europeus não seriam mais justas e generosas se estes continuassem, como até aí, cidadãos dos países que os viram nascer. E, ainda em tempo de perguntas: Porque não se sentiram as potências aliadas igualmente em dívida para com todas as outras vítimas do holocausto? Estaria subjacente a esse sentimento de culpa e expiação o desejo de solucionar de vez o tal “problema judaico”?
vDuas realidades dessa época parecem incontornáveis: os judeus da Mitteleuropa, depois de terem passado o que passaram, não confiavam facilmente na vizinhança; e as nações europeias, a braços com o que a guerra destruíra, não tinham como os compensar (o milagre económico europeu nem sequer era ainda sonhado).
vA solução foi dar aos judeus um território onde eles se instalassem, para aí cultivarem a sua própria recompensa. Pensou-se em Moçambique, pensou-se na Patagónia, mas o apelo ideológico-religioso da Terra Prometida falou mais alto. Com a comodidade de ela, desmembrado o império turco, se repartir por protectorados onde França e Reino Unido punham e dispunham a seu bel-prazer (e com a curiosidade de nenhuma destas duas potências ter conhecido, portas a dentro, um “problema judaico”). Por outro lado, o facto de as alternativas serem, ou uma colónia de um Estado europeu que mantivera uma neutralidade colaborante com os Aliados, ou uma província de um Estado independente, não terá sido estranho à decisão.
vQuem pagou a factura da solução mais expedita (perfeita mesmo, sob vários ângulos) foram os que, à data, habitavam a Terra Prometida, forçados a apertarem-se para dar espaço aos que recém chegavam - ou a partir (o que traz à ideia uma outra pergunta: porque não recorrer agora a solução idêntica, e encontrar algures, para os palestinos deslocados, um território?)
vO busílis de tudo isto está em que o Estado de Israel foi concebido como uma democracia "à ateniense" - ou seja: o acesso à cidadania pressupõe um dado atributo étnico-religioso-cultural. A prova étnica está na origem indo-ariana (os judeus sefaraditas e, sobretudo, os oriundos do Norte de África e da Etiópia são alvo de uma discreta discriminação); a prova religiosa está na veneração da Tora (o que levanta atritos com quem pratique outras religiões ou seja, mesmo, agnóstico); a prova cultural consiste, também ela, na adopção de princípios que caracterizam o modo de vida ocidental.
vPor isso, os que habitavam a Terra Prometida não tinham lugar no novo Estado de Israel. Como nunca terão, porque o diferencial das taxas de natalidade entre judeus e não-judeus levaria a que, no curto espaço de uma década, a base actual da cidadania ficasse completamente subvertida. Sob este ponto de vista, enquanto Israel for um Estado étnico-confessional (logo, essencialmente não-moderno) o problema de fundo criado pelas potências aliadas não tem solução.
vRacismo dos israelitas? Antes de nos precipitarmos com a resposta, convém meditar sobre o modo como nós, europeus, estamos a reagir à crescente presença de outras culturas nas nossas ruas.
vSe tudo isto está na origem do actual conflito israelo-libanês, nada disto lhe serve de justificação.
vO Hezbollah não é um Estado, nem é formado por apátridas. Mobiliza, sim, libaneses que, tanto quanto se sabe, não foram directamente afectados pela criação de Israel. E o que se passa é que cidadãos de um Estado (o Líbano) se armam, se militarizam e se treinam para atacar continuamente um Estado vizinho (Israel), sob o falso pretexto da solidariedade islâmica. Por isso, a causa da presente crise não mora em Israel - mora no Líbano. E é no Líbano que terá de ser remediada.
vNeste contexto, o Governo libanês só tem três saídas: (a) ou considera o Hezbollah um grupo que actua à margem da lei interna, e deverá perseguir, prender e julgar os seus membros; (b) ou perfilha os objectivos e as acções do Hezbollah, e deverá declarar guerra a Israel, suportando-lhe as consequências; (c) ou declara-se impotente, e terá de pedir ajuda internacional para meter na ordem os que, sendo seus cidadãos, e a partir do seu território, atacam um Estado vizinho.
vNas actuais circunstâncias, ao lutar contra uma agressão que se crê ao abrigo de qualquer resposta só porque não reveste a forma tradicional de Estado versus Estado, Israel combate por todos nós. Defenderia eu exactamente o mesmo se, por exemplo, o Grupo dos Amigos de Olivença, farto de esperar, começasse a atacar a tiro e à bomba a Espanha e os espanhóis que encontrasse.
Do lado de cá pensamos pelas nossas próprias cabeças mas não negamos um conjunto de princípios em que fomos educados e que enformam genericamente os nossos raciocínios.
Ao conjunto desses princípios chamamos, do lado de cá, civilização ocidental, de base eminentemente greco-romana e judaico-cristã mesmo quando agnosticada; aos outros conjuntos de princípios genéricos chamamos civilização árabe, budista, hindu, maori, etc. e todos esses se situam noutros lados que não no de cá, no nosso.
Cada sociedade foi ao longo dos séculos lidando consigo própria e – empunhando umas mais que outras a divina espada como instrumento de fidelização das gentes – construindo o respectivo Código de Conduta. E, de facto, todos temos a orientação comportamental como algo de fundamental para enquadramento das vontades imanentes de cabeças mais ou menos serenas. Assim foi que cada civilização foi estabelecendo a sua própria fronteira entre dois conceitos universais mas de contornos particulares: o bem e o mal.
Mas há pedras no caminho e nós, na Civilização Ocidental, também tropeçámos nalgumas. Foi há bem pouco tempo que nos esfarrapámos contra esses dois escolhos civilizacionais que deram pelos nomes de Hitler e Estaline mas – porque tínhamos uma base comportamental consolidada – conseguimos regressar à normalidade com alguma rapidez, pesem embora os milhões de mortos que ficaram nas bermas da estrada. Quase esquecemos entretanto quem nos pôs esses obstáculos no caminho, Chamberlain e Kerensky, duas personalidades que claramente não estiveram à altura do que delas a História pedia. É que tanto um como outro lidaram com os adversários com a lhaneza em que haviam sido educados sem repararem que não se tratava de adversários mas sim de inimigos. E do lado de cá, há uma diferença fundamental entre adversários e inimigos: o adversário deve ser derrotado; o inimigo deve ser destruído.
E porque é que um e outro não estiveram à altura? Porque pactuaram com o contrário. Porque não notaram – ou deram por irrelevante – que as regras de conduta estavam postas em causa, que o padrão civilizacional estava à beira da ruptura. E quase rompeu: o rasgão de Hitler demorou 13 anos a consertar mas o de Estaline (e de seu “padrinho” Lenine) demorou 70 anos a remendar e é claro que ambos deixaram sequelas. E se pela primeira vez na História, em Nuremberga se julgaram os crimes do nazismo ao abrigo do Direito Natural, já os crimes do comunismo apenas ficaram registados “para memória futura” . . .
Um dos conceitos que no Ocidente temos como fundamental é o do respeito pela vida humana. A sacralização da vida faz parte da essência do nosso Código de Conduta; o seu respeito nem sempre tem sido cumprido com a pureza que um pilar básico civilizacional exige mas por isso é que existem as punições pelas infracções cometidas, compiladas nos vários Códigos Penais que cada Nação vai produzindo. Mais: durante muito tempo, quem atentasse contra a própria vida e consumasse o acto, não tinha direito a funeral católico.
Como forma de defesa da sacralização da vida, inventámos a carreira militar à qual só se teria acesso com base no voluntariado uma vez que se tratava de uma actividade em que a vida sempre estaria em risco; e por isso é que o Serviço Militar Obrigatório é uma aberração civilizacional a que as Nações só devem recorrer em situações de perigo extremo e – de preferência, se para isso houver tempo – com base numa decisão democrática claramente maioritária.
Militar tem, portanto, a missão de combater o inimigo externo à sua Nação pondo em risco a sua própria vida. Por isso mesmo, ele próprio e respectiva família auferem de um estatuto de protecção especial mais favorável do que o disponibilizado aos civis: se ao militar a Nação exige a disponibilidade da vida, a Nação protege o militar para além da vida.
Mas militar luta contra militar sem civis de permeio pois isso significaria pôr o seu próprio estatuto em causa. Do lado de cá, é cobardia um homem esconder-se por trás de outro para se encobrir do inimigo. Por maioria de razão, na civilização greco-romana-judaico-cristã, é uma aberração um homem esconder-se por trás de mulheres e crianças. Mais: isso confere-lhe o estatuto de aberrante e ignóbil cobarde.
Eis agora que chegámos a uma situação em que Israel é mais uma vez posto em causa pelos seus inimigos mas com a diferença fundamental relativamente às guerras anteriores de que, desta vez, o inimigo se esconde por trás de mulheres e crianças. Dá para recordar a expressão de Mao Tsé Tung quando ele dizia que “o povo é o estrume em que fermenta a revolução”. Sim, esse também não tinha nada de poético e pasmo quando noto muitos jornalistas europeus encarniçados contra Israel porque bombardeiam mulheres e crianças. E pasmo quando o silêncio jornalístico se faz ao saber-se que o refúgio dessas mulheres e crianças em Canaã era um arsenal de rockets do Hezbollah e que os Capacetes Azuis bombardeados e mortos por Israel estavam reféns dos muçulmanos que deles se serviam como um escudo humano com martírio de propaganda eficaz. E pasmo que esses jornalistas não reparem que o que está em causa é a Civilização Ocidental a que eles próprios pertencem. Mas noto que essa gente noticiadeira é muito sanguinária e que só querem é sangue e mais sangue. Autênticos vampiros, querem à viva força filmar criancinhas muçulmanas desgrenhadas e, de preferência, despedaçadas e correm a trás dos acontecimentos sem notarem que lhes estão a impingir propaganda de quem faz o mal e a caramunha. É que se, para nós, a vida humana é sagrada, para os actuais muçulmanos o povo é o estrume em que fermenta a revolta de Allah.
Apetece-me notar que, sendo os israelitas amigos dos americanos, a esquerda europeia continua com o tique soviético de combate ao poderio americano e, portanto, põe-se do lado de quem o afronta sem olhar a meios para alcançar esse fim. E como na nossa Civilização, a Ocidental, os fins não justificam os meios, esses nostálgicos da Guerra-fria cometem mais um adultério ao lidarem com um princípio estranho à nossa moral. E também é estranho que não tenham ainda notado que estão a fazer um favor a Mrs Hillary Clinton na sua pré-campanha para a Casa Branca, do mesmo se encarregando alguma plêiade democrata americana que critica tudo o que seja feito pela actual Administração e só pelo facto de ser ela a fazer: lembro-me de Joseph Stieglitz, Nobel da Economia em 2001, que vem escrevendo coisas que em tempo de guerra o poderiam incriminar. Felizmente para ele, os EUA não vivem actualmente num regime de guerra declarada.
Bem sei que americanos e judeus não são flores de cheiro mas também sei que os que se lhes opõem cheiram mal.
E para que não restem dúvidas, informo os meus leitores de que – tanto quanto a memória familiar regista – não tenho ascendência judia pelo que o apoio que moralmente dou a Israel na sua luta pela sobrevivência tem tudo a ver com o meu posicionamento na Civilização Ocidental de raiz greco-romana-judaico-cristã. Mais: enquanto forem os judeus e os americanos a assegurarem a defesa militar do Ocidente contra os muçulmanos que querem retomar o Al Andaluz e por certo também o Algarve de aquém-mar por onde mandaram até que o nosso rei D. Afonso III o conquistou, eu posso tranquilamente continuar do lado de cá a passar férias em Tavira e a escrevinhar estas coisas.
Sim, tudo isto tem como objectivo pôr em causa a Civilização Ocidental, tudo visa à expulsão judaica da Palestina e, no limite, à reconquista do sul da Península Ibérica.
Não tivessem todas estas confusões a ver com a nossa Nação e não gastaria eu um minuto com uma guerra que já dura desde os tempos bíblicos. E tudo pela causa original do pastoreio dumas cabras famélicas . . .