A versão moderna do mito do quinto império é ensaiada através das teorias Lusotropicalistas sistematizadas por Gilberto Freyre, que, do meu ponto de vista, são bem mais antigas, as quais aparecem em alguns pronunciamentos, principalmente nos debates sobre a questão ultramarina, no Século XIX, um pouco por consequência da independência do Brasil.
O Lusotropicalismo não é somente uma teoria sociológica. Quanto a mim, uma tentativa de dar rosto científico a um pressuposto ideológico. Por isso, os estrategas do Estado Novo acolheram com muito entusiasmo o discurso lusotropicalista.
Constituída a primeira machadada na herança sonhada, criada e deixada por Dom João II, quero lembrar aqui que, pouco tempo antes e não por mera coincidência, Gilberto Freyre fora hóspede convidado de Salazar naqueles territórios, foi buscar mais subsídios para consubstanciar as suas teorias lusotropicalistas, ido de Cabo Verde.
Nessa mesma década, a de 60 do Século XX, os movimentos nacionalistas de Angola, Guiné-Bissau e Moçambique iniciavam a luta armada de libertação, designada inicialmente por Salazar de campanhas de África contra o terrorismo, baptizada depois de campanhas contra o comunismo por Marcelo Caetano e Guerra colonial após o 25 de Abril.
Até meados de 70 do Século XX e no limiar das independências das colónias africanas, jamais alguém utilizou o conceito lusófono ou lusofonia para se referir ao que quer que fosse.
Então, por que razão é que só depois das independências emerge de uma forma evidente este conceito?
A década de 60 do Século passado é conhecida por década de África. A maior parte das colónias africanas da Grã-Bretanha e França tornaram-se Estados independentes na primeira metade dessa década. Os interesses políticos e sobretudo económicos fizeram com que as ex-potências coloniais desenhassem uma estratégia de continuidade com outra roupagem.
Quer isto dizer que ao colonialismo clássico se seguia o panorama neo-colonial. E uma das configurações que esse novo modelo tomou foi o de comunidade linguística. Assim nasceram as comunidades francófona e anglófona.
Contudo, um olhar mais atento há-de provar-nos que a língua como factor de formação das comunidades em apreço não passava de um pretexto. A França, por exemplo, manteve a sua presença ostensivamente, indo da moeda até a presença militar, através da Legião Francesa, com o único fito de salvaguardar os seus interesses. A francofonia e a anglofonia são sobretudo um produto neo-colonial.
Esta é a terceira questão que ponho à discussão, será por aproximação à designação destas duas comunidades que se foi buscar o termo lusofonia? Se assim foi, terá havido o cuidado de se reflectir sobre as diferenças dos factores?
Normalmente, quando se utiliza a expressão “Países Lusófonos”, a referência imediata são os países africanos que têm o português como língua oficial e que por circunstâncias históricas foram colónias de Portugal, tendo ascendido à independência na década de 70 do Século XX. E por extensão, já mais tarde, Timor-Leste.
Normalmente é senso comum que o Brasil e os brasileiros não são incluídos neste conjunto, muito menos Portugal. Ora, se no plano empírico as coisas assim se passam, é porque, do ponto de vista desse senso comum, algo se cristalizou a partir de um jogo de aproximações semânticas que nos remetem à teoria de conjuntos. Quando em 1988, Itamar Franco se reuniu com os seus homólogos em São Luís do Maranhão, o encontro não se designou Lusófono, mas sim dos Países de Língua Portuguesa. Assim, também as bases para a constituição de uma comunidade constituída por esses Países também não adoptou o nome de Comunidade Lusófona, mas sim Comunidade dos Países de Língua Portuguesa, CPLP.
Este é o primeiro ponto que coloco à reflexão e discussão. Por que razão é que do ponto de vista oficial, na diplomacia e na cooperação multilateral, jamais o termo lusófono foi adoptado? E por que razão é que a nível do discurso político, sobretudo na relação entre o olhar de vários segmentos da sociedade portuguesa, este termo tem vindo a ser consagrado como sendo o de maior utilidade para identificar os espaços e as gentes que historicamente já estiveram ligados a Portugal, sobretudo.
Marcelo Rebelo de Sousa, esteve recentemente em Moçambique, no âmbito de cooperação académica entre as universidades portuguesas e moçambicanas. Ele escandalizou meio mundo ao, pela primeira vez, assumir a postura muitas vezes pronunciada em surdina de que havia que resgatar o lado bom do colonialismo, fazendo justiça àqueles que, embora servidores do sistema, conseguiram dar-lhe um rosto humano. E chocou, porquê? Na justa medida de que, para nós, é um dado adquirido de que o colonialismo é sempre mau para quem o sofreu e é sempre bom para quem dele beneficiou.
Esta mistura de águas publicamente assumida num País que foi colónia até há pouco mais de trinta anos, vem demonstrar que muitas contas estão ainda por fazer para nos entendermos no mundo dos conceitos. Para isso é que servem as discussões.
Levanto esta questão do pronunciamento de Marcelo Rebelo de Sousa para remetê-la à problemática do mito do império que habita o imaginário cultural e ideológico dos portugueses desde o Século XVI.
Independentemente da postura partidária de quem quer que seja e que pode enformar o discurso, hoje na essência, a questão permanece inalterável.
O destino dos portugueses é plasmar o seu ser nos quatro cantos do mundo. A história, em parte, confirma isso, na medida em que, a partir do século XV, Portugal tornou-se numa grande potência mundial, presente em todos os continentes, fazendo-se respeitar e fazendo com que a sua língua se tornasse na língua franca nos meandros da economia, do comércio e da diplomacia.
Mesmo com o enfraquecimento do Estado Português e consequente desaparecimento desse poderio real, os portugueses interiorizaram esse desígnio de grandeza histórica que lhe não permite ser contido naquele pequeno rectângulo que constitui o seu território.