Em Portugal, há que ser especialmente talentoso para corromper. Não é corrupto quem quer ...
... Que Portugal é um país livre de corrupção sabe toda a gente que tenha lido a notícia da absolvição de (…)(1) . O tribunal deu como provado que o arguido tinha oferecido 200 mil Euros para que um titular de cargo político lhe fizesse um favor, mas absolveu-o por considerar que o político não tinha os poderes necessários para responder ao pedido. Ou seja, foi oferecido um suborno, mas a um destinatário inadequado. E, para o tribunal, quem tenta corromper a pessoa errada não é corrupto – é só parvo.
A sentença, infelizmente, não esclarece se o raciocínio é válido para outros crimes: se, por exemplo, quem tenta assassinar a pessoa errada não é assassino, mas apenas incompetente; ou se quem tenta assaltar o banco errado não é ladrão, mas sim distraído. Neste último caso a prática de irregularidades é extraordinariamente difícil, uma vez que mesmo quem assalta o banco certo só é ladrão se não for administrador.
O hipotético suborno de (…)(2) estava ferido de irregularidade e por isso não podia aspirar a receber o nobre título de suborno. O que se passou foi, no fundo, uma ilegalidade ilegal. O que, surpreendentemente, é legal. Significa isto que, em Portugal, há que ser especialmente talentoso para corromper. Não é corrupto quem quer. É preciso saber fazer as coisas bem feitas e seguir a tramitação apropriada. Não é acto que se pratique à balda, caso contrário o tribunal rejeita as pretensões do candidato. "Tenha paciência", dizem os juízes. "Tente outra vez. Isto não é corrupção que se apresente."
Falar em prestação de contas ao 3º Poder é como recitar os Versículos Satânicos em Meca: os nossos juízes abominam que as tendências (outros diriam, as idiossincrasias) das suas decisões sejam escalpelizadas e trazidas para a luz do dia.
E quando não podem mesmo furtar-se a tal, porque a lei a tanto os obriga, recorrem a uma linguagem cifrada, cujo “verdadeiro sentido” só está ao alcance dos “verdadeiros iniciados”.
Entendamo-nos. Se as sentenças são, no dizer da Lei, públicas, então é de esperar que sejam fundamentadas com clareza e bem sistematizadas, para que o público a que se destinam possa lê-las e compreendê-las sem dificuldade, se nisso tiver interesse.
Qual quê? Quantas vezes se capricha na escrita erudita, palavrosa, em linguagem arrevesada, com remissões para remissões, ao longo de centenas e centenas de páginas, onde há que esgravatar muito para encontrar o fio lógico condutor da decisão proferida – o que nem sempre se consegue, aliás.
Que o 3º Poder me perdoe, mas Lógica e Gramática são fundamentais: Lógica para a clareza do pensamento e para a boa arrumação dos fundamentos; Gramática para a clareza da escrita e para que a fundamentação se perceba. Acontece que, tanto uma como outra parecem andar algo arredias do “caldo cultural da justiça”.
Um outro tique está ligado à “livre apreciação da prova”, regra que é vista como corolário dos princípios da independência e autonomia dos juízes. E estamos agora no contexto do “penal”, posto que no “cível” o juiz é, apenas, o árbitro que decide segundo o mérito dos argumentos esgrimidos pelas partes em litígio, sem investigar.
As provas materiais, pela sua própria natureza, permanecem intactas (quando não são perdidas, destruídas ou inquinadas) desde a fase de investigação até à audiência de discussão e julgamento, valendo o que valerem. O mesmo já não se passa com a prova testemunhal, onde hoje se diz uma coisa para logo se desdizer amanhã, conforme soprarem os ventos.
E lá vem o tique: só os testemunhos prestados na fase de julgamento fazem prova e relevam para formar a convicção do tribunal. Talvez porque legisladores e juízes não põem as mãos no fogo pela autonomia e independência (melhor se diria, a proficiência e a isenção) da investigação.
Temos assim a aberração de testemunhos que o juiz de instrução tem em conta ao deduzir a acusação, logo serem varridos do processo e ignorados na fase de julgamento.
Como nos surpreender, então, com a ligeireza (para não dizer desleixo, incompetência) na investigação de crimes que deixam no terreno escassa prova material? Para quê esforçar-se se, em audiência, o dito será dado por não dito?
Bastaria que o juiz de instrução determinasse quais as provas testemunhais a veicular intactas para julgamento – e, muito provavelmente, a investigação tornar-se-ia bem mais capaz, e os julgamentos menos demorados.
Por fim, o tique da “justiça de classe”. Quem assista, com olhos de ver, a um julgamento no “penal” não deixará de se surpreender com a cenografia: ali, juízes e acusados (os quais, recordo, gozam ainda da presunção de inocência) estão em mundos radicalmente opostos – situação que os juízes não perdem oportunidade para vincar bem vincado.
Num dos resquícios mais evidentes do seu passado senhorial, os juízes são, ali, os “senhores”, o 1º estado; os acusados (ou pronunciados?), esses, são o 3º estado, o “povo ignaro”, mantido afastado mesmo dos seus advogados - apenas “coisas” cujo destino já lhes não pertence. Os juízes, pelo contrário, têm a serena certeza de que, façam o que fizerem, nunca serão “povo”.
Daí a dificuldade que o “caldo cultural da justiça” tem de lidar com os casos em que outros membros do 1º estado se vejam arrastados para a posição de “povo” pronunciado. A cenografia fica baralhada. Não existe mais o Rei que, só ele, tinha o poder de julgar a nobreza. E o impasse (leia-se: “a aguardar melhor prova”) ou a absolvição envergonhada são, as mais das vezes, o resultado final.
Estou ciente de que, na generalidade dos casos, o 3º Poder faz por julgar bem – e julga bem. Mas estou igualmente ciente de que, à primeira oportunidade, estes tiques vêm ao de cima, quer no espírito do legislador, quer na decisão do julgador.
E isto porque o “caldo cultural da justiça” não se libertou, ainda, das suas raízes medievais e as leis programáticas têm levado de vencida os princípios orientadores do Direito.
Enfim, todos fazem por não ver que a “justiça popular” nada mais é que uma forma de “justiça de classe” – apenas com o sinal trocado.
Esta enxurrada de notícias sobre os mais mediáticos casos de justiça tem trazido à luz do dia quanto o nosso 3º Poder é dado a tiques. Tiques que têm o condão de lançar luz sobre o “caldo cultural da justiça” onde aqueles que têm por missão aplicar o Direito parecem comprazer-se.
E escrevo “aplicar o Direito” porque o Direito vai muito para além da Lei escrita. São, antes do mais, e acima de tudo, os princípios que vão orientar a produção legislativa.
Onde estão, entre nós, esses princípios orientadores? Quem os conhece? Quem os cita - quando temos uma Constituição programática, e a norma especial derroga, com enorme desfaçatez, a norma geral?
Este o primeiro tique: os juízes dizem que é seu dever aplicar a Lei (escrita), mas raramente se os ouve ou lê a fundamentar as suas decisões naqueles princípios (ao contrário do que se verifica na common law anglo-saxónica).
Um outro tique que, de tão presente, já passa despercebido: “A judicatura deve ser independente e autónoma”. Pois deve. Mas não só.
Como Órgão do Estado, o 3º Poder tem o dever de prestar contas – e de fazê-lo perante todos nós, cidadãos. Porque todos nós temos o direito de saber por onde andam, e para onde caminham aqueles que lhe dão o rosto.
Quando assim não acontece, afirmar que o poder judicial (manifestação primordial da soberania) emana do povo é sustentar uma ficção – e mais vale, então, falar sem rodeios da unção e entronização dos juízes.
Obviamente, aplicar o Direito não é o mesmo que dar execução ao OGE. Mas é um atentado à lógica mais elementar concluir-se daqui que responder pelo modo como o Direito está a ser aplicado contrariaria frontalmente a independência dos juízes - se não fosse, desde logo, uma impossibilidade absoluta.
Pois não é que, tal como os juízes, também os restantes Órgãos de Soberania (e, em boa verdade, o aparelho administrativo do Estado) devem exercer os respectivos múnus com total independência e livres de conflitos de interesses? Haveria que desobrigá-los, então, da aborrecida tarefa de se explicarem, de começarem por revelar o que se propõem fazer e de virem dizer, de tempos a tempos, o que na realidade fizeram?
Argumenta-se que o juiz presta contas às partes e à Sociedade quando fundamenta a sua decisão – e isso basta. Assim é (voltarei a este ponto na Curtinha seguinte), mas não basta.
Não basta porque importa conhecer o que pensam dos princípios norteadores do Direito, e como os interpretam, todos e cada um dos juízes que compõem os Tribunais de última instância (Relação e Supremo), pois é aí que os casos ficam definitivamente julgados.
Audição pública dos candidatos a esses lugares - por uma Comissão Especializada da Assembleia da República (e não pelo círculo restrito dos pares), com actas publicadas, à americana - em vez de ascensão automática por antiguidade? Sem dúvida.
Mas ainda não basta. Pelo menos no foro penal, as sentenças das diversas instâncias deveriam ser objecto de estudo sistemático por peritos (eles sim, independentes), cujas conclusões teriam por destino óbvio quem tem o dever de administrar a máquina judicial.
E destinadas também a aferir da transparência, consistência e comparabilidade das sentenças que tenham sido proferidas – e, neste ponto, seriam um auxiliar precioso para os próprios juízes.
Estes, porém, têm preferido refugiar-se na sombra dos bastidores logo que, com a leitura da sentença, o pano cai. Ainda que alguns, de quando em vez, apreciem as luzes da ribalta, mas sempre em circunstâncias que não os envolvem directa e pessoalmente.
Falou do Carlos Cruz e de mais três entrevistados. Todos se queixaram de que as suas vidas ficaram destruídas. Carlos Cruz afirmou tudo dever à mulher e às filhas, mas eles têm-se despojado de muitos bens, para pagar as custas do processo. A minha amiga comenta:
- Como é que um homem da televisão tem aquela riqueza toda? Como é possível? Eles ainda vivem bem. Mas a dúvida fica para sempre, nem que vá a Tribunal e seja ilibado. Esperemos que seja feita justiça. Ele diz que o nome dele foi metido lá para tapar, para desviar nomes sonantes. Diz que sabe quem são mas não vai dizer quem é. Só quer que não se deixe prescrever o processo. Foram entrevistados quatro fulanos. Todos negaram ali. Não sabem porque é que os nomes deles estão lá. Já viu o horror que é condenarem-se inocentes?
- Mas como se pôde despoletar tudo isto, numa tal dimensão? E como é que uma pessoa se deixa condenar “para tapar nomes sonantes” que conhece mas não denuncia!? É, pelo menos, idiota!
- E agora pergunta-se: aqueles rapazinhos sofreram. Sabem quem são os fulanos. E quando apresentam queixa dão outros nomes? Será que mentiram? Porque os rapazinhos dizem todos: “Não espero nada”, excepto um que disse: “Só espero estar lá nesse dia. E vai-se fazer justiça.” Só um disse isso. Há outros que não querem ser vistos.
- O Processo Casa Pia! Um nome sonoro, para dar grande brado, quando se puder contar a verdade. Mas nunca terá uma solução fiável, espécie de “collier de la Reine”, explorando intrigas, recalcamentos, e misérias morais e materiais, onde jogam também factores de conveniência e vilezas duma gravidade cujo desfecho poderes superiores, aliados a uma justiça inexistente cada vez mais impedem, como outros processos que brotam a cada passo neste país de clima propício ao “far niente” à excepção do abocanhar nas reputações. Às vezes com razão.
- O Freeport já foi. Este irá também. Em setembro. Mais um adiamentozinho da troça justiceira dos prepotentes, sobre um povo que a merece, pois deixa.
- E cada vez será pior. Com a abolição das reprovações, pela excelsa ministra da Educação, com a adopção de médicos acabadinhos de formar, sem experiência, para substituir os que se foram, e tomarem conta das vidas doentes, caminhamos para uma cada vez maior juvenilidade, neste velho país de anormalidades. Verguemos o cachaço! Diz-se que sempre o vergámos, aliás! E eram mais velhos os governantes. O Jerónimo de Sousa, que parece honrado, diz que é um “lapsus linguae” da Alçada, essa tal da abolição, mas está enganado, que a Alçada defende mansamente a posição dinâmica do seu juvenil PM. Ajoelhemos com ela, perante ela, perante ele. Cantemos:
“De rastos, a teus pés
Perdida te adorei
Até que me encontrei
Perdida”.
Não tenhamos dúvida disso, se é que nessa altura ainda temos capacidade para formular uma qualquer dúvida. Aquela que pode ajudar a definir a nossa identidade racional.