Durante muitos anos muita gente não quis ver, não quis ouvir, não quis ler, recusou tomar conhecimento. Sócrates estava acima disso. Sócrates não tolerava dúvidas. Mas é altura de aceitar a realidade.
Uma parte do país – e um contingente notável de comentadores – parecem continuar em estado de negação. Durante anos não quiseram ver, não quiseram ouvir, não quiseram admitir que havia no comportamento de José Sócrates ministro e de José Sócrates primeiro-ministro demasiados “casos”. Em vez disso só viram cabalas, só falaram em perseguições, só trataram eles mesmo de ostracizar ou mesmo perseguir os que se obstinavam em querer respostas, os que insistiam em não ignorar o óbvio, isto é, que Sócrates não tinha forma de justificar os gastos associados ao seu estilo de vida.
Agora, que finalmente a Justiça se moveu, eles continuam firmes na sua devoção – e nas suas cadeiras nos estúdios de televisão. Não lhes interessa conhecer o que se vai sabendo sobre os esquemas que Sócrates utilizaria para fazer circular o dinheiro, apenas lhes interessa que parte do que foi divulgado pelos jornais devia estar em segredo de Justiça. Antes, anos a fio, quando não havia segredo de justiça para invocar, desvalorizaram sempre todas as investigações jornalísticas que tinham por centro José Sócrates.
Isto é doentio e revela até que ponto o país ainda não se libertou da carapaça que caiu sobre ele nos anos em que o ex-primeiro-ministro punha e dispunha. Nessa altura também muitos, quase todos, se recusavam a ver, ouvir ou ler, até a tomar conhecimento. Não me esqueço, não me posso esquecer que quando o Público, de que eu era director, revelou pela primeira vez a história da licenciatura, seguiu-se uma semana de pesado silêncio que só foi quebrada quando o Expresso, então dirigido por Henrique Monteiro, resistiu às pressões do próprio Sócrates e repegou na história e denunciou as pressões. Não me esqueço que tivemos uma Entidade Reguladora da Comunicação Social que fez um inquérito e concluiu que o silêncio de toda a comunicação num caso de evidente interesse público não resultara de qualquer pressão – a mesma ERC que depois condenaria a TVI por estar a investigar o caso Freeport. Como não me esqueço de como uma comissão parlamentar chegou mais tarde à mesma conclusão, tal como não me esqueço de como vi gestores de grandes empresas deporem com medo do que diziam. Muitos dos que agora rasgam as vestes porque o antigo primeiro-ministro foi detido no aeroporto foram os mesmos que nunca quiseram admitir que havia um problema com Sócrates, com os seus casos, com o seu comportamento, com o seu autoritarismo. E também com o seu estilo de vida.
Há momentos que chegam a ser patéticos. Como é possível, por exemplo, que um homem supostamente inteligente, como Pinto Monteiro, queira que nós acreditemos que foi convidado por José Sócrates para um almoço, de um dia para o outro, numa altura em que o cerco se apertava, e que, naquele que terá sido o seu primeiro almoço a sós, só falaram de livros e viagens, como se fossem dois velhos amigos? Como é possível que continue a defender a decisão absurda sobre a destruição das escutas? Ou a achar que nada mais podia ter sido feito na investigação do caso Freeport?
Mas há também um lado doentio e provinciano na forma como se tem comentado este caso. Uma das raras pessoas que detectou essa anormalidade foi Nuno Garoupa, professor catedrático de Direito nos Estados Unidos e que, por ter respirado ares mais arejados, não teve dúvidas, notando que “nós é que vivemos num mundo mediático”, não é a Justiça que cria o circo, como se repetiu ad nauseam nas televisões. Mais: “A opinião pública pode e deve fazer um julgamento político, independentemente do julgamento legal e judicial. A política e a justiça não são a mesma coisa.” Ou seja, deixem-se da hipocrisia do “inocente até prova em contrário”, pois isso é verdade nos tribunais mas não é verdade quando temos de julgar politicamente alguém como José Sócrates. O julgamento político, como ele sublinha, não está sujeito aos mesmos critérios do julgamento penal.
A clareza do debate político exige pois que saibamos fazer distinções. A distinção que António Costa fez logo na madrugada de sábado, quando disse que “os sentimentos de solidariedade e amizade pessoais não devem confundir a acção política do PS”, é justa e mantém toda a sua pertinência. Se o PS tem conseguido manter a frieza – quase todo o PS, pois são raras e muito pontuais as excepções –, é importante para esse mesmo PS ir mais longe. E tocar um ponto nevrálgico: aquilo que nós, cá fora, sabíamos sobre as excentricidades e as práticas de José Sócrates dão-nos apenas uma pequena amostra do que se sabia em muitos círculos do PS. Sabia, mas não se comentava, mal se sussurrava.
Vou mais longe: nos partidos estas coisas são conhecidas. Pelo menos no PSD e no CDS, para além do PS. Ninguém ficou surpreendido quando a Justiça caiu sobre Duarte Lima – todos os seus companheiros de bancada conheciam as suas excentricidades. Pior: muitos ainda hoje comentam como a Justiça ainda não apanhou alguns antigos secretários-gerais, aqueles que tratavam das contas e apareceram ricos de um dia para o outro. Pior ainda: nos bastidores dos partidos as histórias de autarcas, em particular de alguns dinossauros, são infindáveis. E há longínquas férias na neve de dirigentes partidários que incomodam os seus correligionários sem que nada aconteça para além de um comentário fugaz.
Vamos ser claros, deixando a hipocrisia do respeitinho de lado. A dúvida que havia sobre José Sócrates era sobre se seria algum dia apanhado. A percepção que corroía a confiança nas instituições não era sobre se os seus direitos humanos poderiam vir a ser negados (a sugestiva preocupação de Alberto João Jardim), mas sim sobre se algum dia um aparelho judicial que, anos a fio, pareceu amestrado seria capaz de apanhar alguns dos fios das muitas meadas tecidas pelo antigo primeiro-ministro.
Escrevi-o muitas vezes e vou repeti-lo: José Sócrates foi a pior coisa que aconteceu na democracia portuguesa nos últimos 40 anos, e não o digo por causa da bancarrota. Digo-o por causa da forma como exerceu o poder, esperando fazê-lo de forma absoluta, sem contestação, sem obstáculos, sem críticos. Não os tolerava no PS, no Governo, nos jornais, nos bancos, nas grandes empresas do regime.
Não sou a primeira pessoa a descrever assim José Sócrates. Nem essa descrição é recente. Recordo apenas um texto de António Barreto, de Janeiro de 2008 (há quase sete anos, bem antes da bancarrota), onde se escrevia que “o primeiro-ministro José Sócrates é a mais séria ameaça contra a liberdade, contra a autonomia das iniciativas privadas e contra a independência pessoal que Portugal conheceu nas últimas três décadas”. Lembram-se? Eu não o esqueci.
O que distingue o socratismo não é uma visão da forma de ser socialista, é uma visão schmidtiana de exercício do poder. Compreendo que o seu estilo de líder forte possa ter fascinado quem cavalgou a onda, mas é bom que hoje olhem para o elixir que provaram e que os inebriou, e percebam que era um veneno. Ou seja: acordem para a realidade. Depois do que se passou nos últimos dias, do que já sabemos sobre os contornos do processo e das acusações, do que imaginamos mas ainda não sabemos, a pergunta que muitos têm de intimamente fazer é “como foi possível?”, “como é que acreditei?”. Porque se não forem por esse caminho o seu único refúgio acabará por ser uma qualquer teoria da conspiração como a imaginada pelo insubstituível MRPP.
Ao contrário do que se repetiu à exaustão, o carácter não é um detalhe em política. E se ninguém deve apagar rostos em fotografias, à la Stalin, também é preciso olhar de frente para o que, no passado, recomenda que se exorcizem fantasmas, demónios, maus hábitos e práticas não recomendáveis.
O pessimismo está na moda, pelo que vou ser optimista. Racionalmente optimista: houve mais progressos do que retrocessos em 2013.
O mundo vai mal. Eis uma frase de que poucos discordarão. E a maioria até acrescentará que Portugal ainda vai pior. A evidência parece tão evidência, que foi assim mesmo que Mário Soares, um incorrigível optimista, titulou o artigo que publicou no último dia de 2013. Mas… e se não for verdade? E se, ao contrário do que é percepção comum, o mundo estiver melhor à entrada de 2014 do que estava à entrada de 2013?
Eu, que tendo mais depressa a ser um incorrigível pessimista, vou agora ser fiel a um dos meus outros instintos, o de contrariar a percepção comum. Para concluir que esta pode ser profundamente enganadora. A começar por essa ideia de que tudo vai de mal a pior. Irá mesmo? Será que no final de 2013 a humanidade está mais pobre, mais doente, menos culta, menos pacífica?
A resposta a estas dúvidas é simples: não, não está.
Em 2013 a riqueza média por habitante deste planeta atingiu o seu valor mais elevado de sempre, 12,7 mil dólares. Essa riqueza ficou menos mal repartida do que estava antes, pois o crescimento foi maior nos países mais pobres, o que lhes permitiu aproximarem-se dos países mais ricos. A esperança de vida está a aumentar em praticamente todos os países do mundo, fruto dos avanços da medicina mas também de uma melhor alimentação e de melhores condições de vida. Há mais crianças nas escolas, sobretudo em África e na Ásia, e, imaginem, até há mais jornais a serem lidos.
Extraordinários avanços científicos continuaram a fazer recuar as fronteiras do desconhecido e a tornar possível o tratamento de doenças tidas por incuráveis. Tal como produtos inovadores continuaram a tornar acessíveis muitos bens e serviços que antes só estavam ao alcance de alguns. Hoje já há mais indianos do que americanos a usarem telemóvel e em 2013 o total de passageiros a fazer voos de avião chegou aos 3,1 mil milhões, o que corresponde a mais de 40% da população mundial.
O mundo não é local perfeito, o bem que se deseja para a Humanidade estará sempre um passo além do possível, continua a haver demasiadas guerras, demasiada pobreza, demasiada opressão para que possamos distrair-nos um segundo que seja do esforço por melhorar a vida de todos e de cada um, mas tudo isso não nos deve levar a olhar para o mundo apenas com as lentes da nossa depressão e da nossa ansiedade. 2013 não foi um mau ano e 2014 será melhor para a grande maioria dos seres humanos, e isso é que importa.
Se algo tem caracterizado a forma como olhamos para a nossa crise é a tendência para carregarmos nos tons sombrios e para procurarmos encontrar sempre o lado mais negativo de qualquer evolução dos nossos assuntos públicos. Lendo o que por aí se escreve e ouvindo o que se diz nas televisões, já ocorreram inúmeras "rupturas sociais", o país "recuou 50 anos", a pobreza "está por todo o lado", a fome tornou-se uma realidade omnipresente e "a desigualdade aumentou" porque, ao lado da "miséria crescente", "há cada vez mais milionários". É certo que tem faltado, para tornar este quadro lógico, a explosão social violenta que tantos prognosticaram, mas isso vai ficando por conta dos nossos brandos costumes.
Com maior ou menor compreensão, ou revolta, com as políticas de austeridade, este foi o retrato que todos mais ou menos interiorizaram. E que muito poucos tentaram verificar olhando para as estatísticas. Até que surgiu, esta semana, a perplexidade com alguns indicadores.
O tema apareceu no blogue de Pedro Magalhães, Margens de Erro, num post intitulado "As consequências sociais da austeridade – algumas dúvidas". Não posso aqui resumir todo o conteúdo desse texto, que é muito interessante e deve ser lido na íntegra, com todos os seus gráficos (http://www.pedro-magalhaes.org/duvidas/), pelo que fico pelo essencial. E o essencial é que Pedro Magalhães, quando começou a recolher dados para comparar as condições de vida nos países mais afectados pela crise com as atitudes dos seus cidadãos face à democracia, deparou-se com números surpreendentes. Números que, como reconhece, "não reflectem bem o que esperava encontrar".
Em causa estiveram várias análises comparadas envolvendo seis países (Portugal, Espanha, Grécia, Irlanda, Itália e Chipre): a evolução do risco de pobreza e de exclusão social, a evolução do número de pessoas a viverem em condições de grave privação material e a evolução da desigualdade social. Todos os gráficos apontaram para uma mesma conclusão: enquanto na generalidade dos outros países todos os indicadores sociais se degradaram muito depressa e de forma muito acentuada, isso não estava a acontecer em Portugal pelo menos até 2012, o último ano com dados estatísticos publicados. Daí a perplexidade de Pedro Magalhães: "O que explica que Portugal tenha, pelo menos à luz destes indicadores, escapado ao mesmo grau de aumento da pobreza e da privação material que se verificou nos restantes países, ou que as consequências em termos de desigualdade de rendimentos tenham sido mais graves em Espanha, Grécia ou até Itália?" Será que "as nossas políticas de austeridade foram mais 'targeted' de forma a não afectar tanto os segmentos mais desfavorecidos, em comparação com os outros países da 'austeridade'?"
Este texto suscitou um interessante debate na blogosfera, com outros autores a sugerirem deficiências nos indicadores utilizados – deficiências que de facto existem, mas não explicam tudo – ou a adiantarem algumas explicações possíveis. Infelizmente não dei por o debate ter chegado à comunicação social tradicional, o que é pena, pois estou certo que muitos ficariam tão surpreendidos com aqueles dados como ficou Pedro Magalhães.
Julgo que uma parte da surpresa tem origem na forma enviesada e pouco objectiva, mas muito melodramática, como temos noticiado e comentado a nossa crise e a nossa austeridade. Na verdade o que aqueles dados parecem indicar – e sublinho o parecem por uma questão de rigor e honestidade intelectual, pois faltam elementos para 2013, o nosso ano mais difícil – é que os "cortes" afectaram em Portugal sobretudo as classes de rendimentos médios ou mais elevados, o que fez diminuir o rendimento disponível mas não afectou de forma dramática os rendimentos mais baixos. De resto basta lembrarmo-nos que os cortes salariais e os cortes nas pensões foram progressivos e que, no caso dos reformados, mais de quatro em cada cinco, os mais pobres, não viram sequer o seu rendimento afectado, para suspeitarmos que esses dados reflectem afinal escolhas de políticas públicas.
Mesmo assim, como há outros factores que influenciam, e muito, a evolução de indicadores sociais como os referidos por Pedro Magalhães, o principal dos quais será o desemprego, é cedo para podermos responder às questões que coloca, em especial a de saber se a nossa austeridade foi ou não melhor calibrada do que a de outros países da Europa do Sul. Mesmo assim fica a evidência contra-intuitiva de que as coisas não terão corrido tão mal como se tem proclamado. Ou como esperaria quem apenas ouvisse as queixas de quem sofreu os cortes e nos quis fazer crer, porventura até com a melhor das intenções, de que a sua razão de queixa não era em causa própria mas em nome de quem está no fundo da escala social.
Nada disto transforma num mar de rosas a situação que vivemos, apenas ajuda a ser-se mais objectivo e rigoroso. Nada disto nos salvou do difícil ano de 2013, ou salvará de um 2014 que continuará a ser difícil. Mas tudo isto ajuda-nos a perceber melhor essa outra realidade que também começou a surpreender-nos na segunda metade do ano passado, a viragem na evolução do desemprego e nos principais indicadores económicos. Ou seja, há um retrato que se compõe e que nos permite ser um pouco menos pessimistas.
O PS sofre do mesmo mal dos seus parceiros europeus: não tem programa alternativo para estes tempos complexos e de escassez relativa.
Será que Portugal pode sair da crise? Em teoria, pode. Se as regras do euro forem outras, nomeadamente se a zona euro ficar com parte da nossa dívida e se o Banco Central Europeu começar a imprimir euros sem limites. Se, ao mesmo tempo, a Europa nos oferecer um Plano Marshall. Se nos deixarem flexibilizar as metas do défice. E, claro, se os alemães desatarem a consumir mais.
Esta listagem não foi imaginada por mim. Resulta da conclusão do longuíssimo artigo que, ao longo de uma semana, dois economistas muito influentes na área socialista – o antigo ministro Manuel Pinho e o possível futuro ministro Manuel Caldeira Cabral – publicaram no Diário de Notícias. Como eles dizem, "se tudo isto acontecer, então, em teoria, é possível".
Tenho dificuldade em imaginar uma tão clara declaração de impotência. Quase todas as condições que colocam para a salvação de Portugal estão fora do nosso alcance. São apenas desejos, porventura desejos piedosos, mas seguramente irrealistas – sobretudo agora, que conhecemos o acordo de coligação CDU/SPD.
Mais ao menos como eu dizer que também sou capaz, "em teoria", de saltar por cima do Pulo do Lobo, mas desde que a gravidade na zona do Guadiana fosse a mesma da Lua. E o problema não é dizer que se vai lutar por aquele conjunto de objectivos na União Europeia – o problema é fazer depender a solução dos nossos problemas de perdões, subsídios e inflação. É uma posição que sintetiza bem a dificuldade da esquerda em apresentar alternativas viáveis, e mobilizadoras, para os tempos que correm. Não é apenas um problema português.
Com a sinceridade própria de um jornalista, Vicente Jorge Silva ia directo ao problema na entrevista que deu ao jornal i: "a situação é terrível a nível da esquerda", a tradição onde ele se inscreve, a da social-democracia "acabou por ser asfixiada pelo neoliberalismo". Ilustrava com exemplos de França, do Reino Unido, de Espanha, de Itália, também da Alemanha. Francisco Assis, com sinceridade, mas com o pudor próprio de quem é também um dirigente político, descreveu essa situação neste jornal como sendo "a tentativa de resistência de um voluntarismo social-democrata escassamente afirmativo".
O que estas posições permitem perceber é que os problemas do nosso PS não são muito distintos dos problemas dos outros partidos socialistas e sociais-democratas e que António José Seguro é muito menos culpado de cinzentismo do que é costume acusá-lo. Também Hollande é, de certa forma, menos culpado do que se imagina pela desilusão que gerou – boa parte da culpa está nas ilusões que se alimentaram acerca do que poderia representar uma maioria socialista em França.
A principal dessas ilusões é a de que a austeridade corresponde apenas a uma escolha política, que deriva de uma valorização moral e que apenas existe para ser "punitiva". Essa ilusão permite encher todas as "aulas magnas" que se quiser, mas será fatal para as expectativas do país no momento em que houver uma mudança de ciclo político, algo que ocorrerá mais cedo ou mais tarde. Mais: como escrevia Francisco Assis, de nada serve à esquerda "uma esquerda puramente proclamatória, dada a uma certa altivez e escassamente preocupada com o esforço de compreensão da realidade".
O que Assis não consegue esclarecer é como é que o seu PS passa, e cito-o, da "evanescência de um discurso frágil" para "a consistência de uma alternativa sólida". É que esse é que é o verdadeiro problema de Seguro, sendo que não é muito diferente dos dilemas dos seus parceiros além-fronteiras: a esquerda social-democrata e socialista vive um problema de programa (como governar em tempos de escassez relativa?) e com um problema de base eleitoral (como voltar a ser um partido de base popular?).
Uma parte deste duplo problema foi muito bem descrita por Jorge Almeida Fernandes no PÚBLICO do passado domingo, quando lembrou que "a social-democracia entrou em declínio no fim dos anos 1970, quando se começou a romper a aliança entre as novas classes médias urbanas e a classe operária". Essas novas classes médias tomaram conta dos velhos partidos de inspiração trabalhista, e estes foram gradualmente mudando a sua própria natureza, passando a preocupar-se mais com os problemas das minorias e com os direitos de "nova geração" do que com os dramas das suas antigas bases operárias. Já essas classes populares foram resvalando progressivamente para os braços de populistas de direita e de esquerda.
A razão por que isso aconteceu é fácil de entender: a promoção de vigorosas políticas redistributivas era a marca de água da social-democracia, mas essas políticas necessitavam de um forte crescimento económico e de uma demografia favorável; quando o crescimento económico do pós-guerra se começou a esgotar na década de 1970, esse modelo entrou em crise por todo o lado, da rica Escandinávia à aspirante Grécia. Thatcher e Reagan não nasceram do nada e não são apenas frutos de leituras apressadas de Hayek ou Friedman, antes vieram responder a problemas existentes, protagonizando uma mudança de rota tão inevitável como fora, quatro décadas antes, a mudança de rota em direcção ao keynesianismo.
De resto, e ao contrário do que reza a propaganda, Thatcher não desmantelou o Estado social inglês, antes o reformou, para impedir que continuasse a crescer de forma insustentável. Como se mostra num livro recente – O Futuro do Estado Social, de Filipe Carreira da Silva, da colecção de ensaios da FFMS –, o peso do Estado social no PIB do Reino Unido era, no final do mandato da "Dama de Ferro", idêntico ao que se registava no início do seu consulado. Mesmo no Portugal em crise e com a austeridade que conhecemos, o peso das prestações sociais no PIB não está a diminuir: era de 22% em 2009, deverá ficar nos 23,2% em 2013.
Em países como o nosso, onde a riqueza nunca foi muita, onde o Estado social chegou tarde e o crescimento acabou cedo, a manutenção do modelo redistributivo coloca problemas ainda mais complexos à esquerda socialista (o resto da esquerda verdadeiramente só protesta, não corre o risco de governar). Por um lado, identifica-se com a política redistributiva e tem como base eleitoral uma classe média que passou a depender dessa mesma política; por outro lado, deixou de conseguir aumentar as receitas dos impostos e, assim, deixou de conseguir pagar essas políticas. Basta pensar que em Portugal as prestações sociais representavam apenas 13% do PIB em 2000, o que significa que o seu peso na riqueza nacional quase duplicou em pouco mais de uma década. Foi neste quadro que as políticas redistributivas deixaram de se basear no aumento da carga fiscal (a economia estava exaurida), para passarem a depender de uma dívida crescente (tornada mais acessível com a adesão ao euro).
O sonho de todos os socialistas é que o crescimento regresse e se libertem deste pesadelo. O seu dilema é que não conseguem imaginar uma forma diferente de crescer senão pela via de estímulos públicos, sendo que, enquanto houve dinheiro para esses estímulos – e houve em abundância até 2008/2009 –, isso não se traduziu em mais crescimento, apenas em mais dívida. É por isso que suspiram por um Plano Marshall sem entenderem que ficaríamos para sempre dependentes de subsídios externos. É também por isso que têm dificuldade em entender os sinais que começam a aparecer de alguma reversão do ciclo económico, pois este acontece sem reversão da austeridade, o que não encaixa na sua forma de pensar estadocêntrica.
Não surpreende, pois, que olhemos para o PS e, independentemente do que disser Seguro, ou outro no lugar dele, saibamos por intuição segura que as suas promessas mais simpáticas teriam o mesmo destino das de Hollande, ou das do SPD alemão, ou das do PSOE espanhol: o choque com a realidade torná-las-ia obsoletas no dia da tomada de posse de um novo Governo. O que surpreende é que ainda exista quem pense que, "se o PS fosse um bocadinho mais activo", mais à moda da Aula Magna, "tinha 90% com certeza". Não tinha, de certeza.
Apesar de tanta gente antecipar a violência popular, o país parece ter descoberto uma sabedoria dos tempos difíceis
Se os tempos fossem outros, o "encontro das esquerdas" promovido ontem por Mário Soares na Aula Magna da Reitoria da Universidade de Lisboa teria sido convocado para um espaço bem mais amplo.
Se os tempos fossem outros, a criação de um novo partido que afirma a ambição de federar as esquerdas não teria decorrido numa sala meio vazia de um cinema de Lisboa. Se os tempos fossem outros, os quase 500 dias de protestos e greves no sector público de transportes já teriam desembocado em múltiplas greves gerais capazes de paralisarem o país e não de ficarem quase só pelas empresas e pelos funcionários do Estado.
Mas então por que é que os tempos não são outros? A acreditar nas previsões dos mais avisados políticos e dos mais ponderados senadores, o país devia estar a ferro e fogo. Pessoas aparentemente tão diferentes como Mário Soares – que há mais de um ano escreve sobre "a violência que aí vem" e esta quarta-feira anunciou que "os portugueses não iam ficar parados" – ou Januário Torgal Ferreira – que entendeu que a melhor forma de criticar o Governo era chamar-lhe "profundamente corrupto" – convergem numa mesma inquietação: o povo está muito parado, muito apático. Talvez por isso, como se cantava noutros tempos, o que seja preciso "é agitar a malta".
Por outro lado, se olharmos para uma banca de jornais ou nos sentarmos para ouvir um telejornal, o rol de desgraças e malfeitorias é tão interminável que se entende a incompreensão de tantos dos nossos opinadores por os tempos não serem outros. Num país onde tudo é sempre apresentado como mais um cataclismo social, custa a entender por que não surgiu ainda uma moderna Carbonária.
Não sei, ninguém sabe, se o nosso país vai conseguir atravessar estes dias difíceis sem episódios com a gravidade de alguns que já ocorreram noutros países. Nunca se está livre de um episódio, que até pode ser isolado – como foram, esta semana, os tiroteios em Paris –, atear tempestades maiores. Mas julgo sinceramente que não é o cenário mais provável. Mais: isso não decorrerá dos nossos míticos "bons costumes", antes de existir a percepção, mesmo que difusa e poucas vezes assumida, de que houve um tempo de fartura (relativa) que passou e que agora há um tempo de contenção que durará vários anos e vários governos.
Recentemente, a propósito da fraca afluência à que deveria ter sido a terceira grande manifestação do movimento Que Se Lixe a Troika, não faltou quem culpasse o medo pela ausência das esperadas multidões. Mas medo de quê? Medo do Governo? Não faz sentido. Medo de perder o emprego? Mas quem o perderia por desfilar a um sábado, dia de descanso? Medo do futuro? Sem dúvida. Mas não deveria esse medo do futuro convocar ainda mais manifestantes?
Talvez seja esta última interrogação a mais pertinente. Se há medo do futuro, há talvez ainda mais medo das alternativas aos dias que correm. Até pelo que elas omitem. Tomemos um caso desta semana. Mário Soares entendeu que era chegado o momento não apenas de pedir a demissão do Governo, como a saída do Presidente da República. Não faço ideia, e julgo que ninguém fará, como quereria que se gerisse depois o longo interregno, que duraria muitos meses, de incerteza política e caos institucional. Com um primeiro-ministro tecnocrata? Com um Presidente designado pelas Forças Armadas? E quem negociaria com a troika? Os partidos, cada um por si? E seria que o PS devia ficar de fora, para não legitimar nada? E como iria Portugal conseguir os mais de 20 mil milhões de euros de que necessita para financiar o défice de 2014 e pagar os empréstimos que vencem ao longo do próximo ano? Incumpria, declarando bancarrota?
Ao mesmo tempo, o PS, apesar de alguns esforços para formular uma política mais coerente e de algumas tiradas sobre "responsabilidade orçamental", praticamente só apresentou na Assembleia propostas de alteração ao Orçamento que fariam aumentar o défice de 2014. É simpático, mas não é suficientemente sólido para que António José Seguro seja levado a sério.
Faço parte dos que sentem – dos que sabem – que "não há dinheiro", mas já não sou dos que defendem que não há alternativa.
Alternativas há sempre, é preciso é saber se são melhores. O que me custa ver em Portugal é pouca gente assumir que todas as alternativas têm também os seus custos. Podemos, por exemplo, defender que há cortes nas despesas do Estado que são intoleráveis – mas então devemos também dizer como fazemos crescer as suas receitas, e não vale falar das quimeras do crescimento económico, pois esse quase desapareceu desde a viragem do milénio e não regressará apenas pondo o Estado a gastar mais dinheiro. Depois de ter comprado tantas ilusões durante tantos anos e tantos ciclos eleitorais, o povo quer mais, não se satisfaz apenas com propostas de acabar com a austeridade – porque não acredita nelas.
Mais do que o medo ou a desconfiança face às alternativas, julgo que a razão principal para a "apatia" que tanto inquieta uma parte dos nossos intelectuais está na consciência de que alguma forma de austeridade – ou de contenção e poupança, se preferirmos as palavras que os alemães usam quando se referem a austeridade – fará parte do nosso destino nos próximos anos.
A forma como os portugueses têm vindo a alterar os seus padrões de consumo ajuda-nos a perceber este novo estado de espírito. Um estudo de mercado muito alargado elaborado no final do ano passado indicava, por exemplo, que havia entre os consumidores aquilo a que os especialistas chamaram um novo "frugalismo". Não se adica apenas do que não se tem dinheiro para comprar, abdica-se do que se pensa que é supérfluo. Isso acontece tanto nas escolhas feitas nas prateleiras de um hipermercado como no recurso a mercados de bens em segunda mão (como nos sites de leilões). E não corresponde apenas a uma alteração de comportamento, corresponde também a uma nova atitude anticonsumista que é verbalizada nas entrevistas. Isto significa que tais alterações de comportamento não são tão sofridas como se deduziria apenas da leitura muitas vezes alarmista da imprensa e dos fazedores de opinião.
Outro aspecto importante é a forma como os sacrifícios são percepcionados. Por exemplo: fala-se sempre de "cortes nas pensões", nunca se refere que a maioria esmagadora das pensões não sofreu até hoje nenhum corte pela razão simples de que são demasiado baixas. Outro exemplo: apresenta-se como uma catástrofe social os cortes a partir de 700 euros na administração pública (cortes que também eu lamento profundamente começarem nesse nível salarial), mas esquece-se que metade dos salários no sector privado é inferior a 650 euros, o que significa que esses trabalhadores não se chocam tanto como as elites com os cortes acima dessa fasquia. Mais: até são capazes de achar que assim se repõe alguma equidade.
Como dizia o Herman José, "a vida dos pobrezinhos é um mistério", e neste país há muito mais rendimentos realmente baixos do que aquilo que a alta classe média imagina. Essa distância ajuda a perceber por que tantos não entendem por que é que o povo ainda não encontrou uma nova Maria da Fonte. Essa distância e a percepção da maioria que, mesmo sendo estes dias difíceis, há alguma coisa que pode perder (o apartamento nos subúrbios, o carro em terceira mão). Ao contrário dos mitológicos proletários de Marx, que só tinham a perder as suas cadeias…
O espectáculo de Sócrates é mais próprio de um circo do que de uma ágora e a sua mensagem política falha o essencial
O mundo não é um estúdio de televisão. Portugal também não. Felizmente. Mas José Sócrates parece não o ter ainda descoberto. Por isso quarta-feira, o dia do seu anunciado regresso, foi também um dia revelador. Porque, para quem tivesse dúvidas, ficou claro que ao antigo primeiro-ministro se aplica como uma luva o comentário que Napoleão fez sobre os Bourbons: "Não esqueceram nada e não aprenderam nada."
Talvez não fosse preciso dizer mais nada. O político combativo, o "animal feroz", voltou para nos recordar como nunca é capaz de admitir que errou ou de perdoar. Também nos recordou como se pode ser malcriado e arrogante, como se constrói todo um discurso baseado num permanente extremar de posições, na constante instrumentalização dos números e na redução da realidade a um retrato a preto e branco em que o próprio é a única referência e a única preocupação.
Habilidoso neste tipo de exercício, eficaz a impor os seus temas e a sua agenda, alimenta a convicção de que pode bater todos aos pontos quando, na verdade, o que faz é criar um deserto à sua volta, um deserto onde só sobrevivem os seus fiéis. Como espectáculo é mais próprio de um circo do que de uma ágora, mas há quem goste. Agora como mensagem política falha o essencial.
Ancorado no passado, sem nada de novo para dizer, centrado na sua "narrativa" e nas suas obsessões com "embustes" e ajustes de contas, apenas ofereceu como alternativa, ou como visão, um sonoro "parem com a austeridade". Não foi apenas pouco, foi patético: por muito que nos custe a austeridade, ou que Gaspar nos faça pele de galinha, sabemos que recusá-la é uma ilusão. Só Sócrates parece ainda achar que o mundo era perfeito, e o seu Governo excelso, até um banco falir. Já ninguém acredita nisso.
Os Bourbons, quando regressaram a Paris depois do fim do Império napoleónico, acreditaram poder regressar à "doçura de viver" do Antigo Regime. Sócrates, que veio de Paris, não ambicionaria tanto, mas julgou poder reviver o passado e, sobretudo, reescrevê-lo. Mas o país que encontrou é outro. É um país, no mínimo, mais céptico e menos propenso a embarcar no tipo de ilusionismo em que é especialista. Já não encontra quem lhe compre auto-estradas, aeroportos e cheques-bebé, como em 2009.
Sócrates é daqueles que acredita que pode mudar a realidade como quem muda o cenário num estúdio de televisão. Mais: que o pode fazer através do discurso e daquilo a que chama "acção política". Trata-se de um voluntarismo duplamente perigoso. Primeiro, porque muitas vezes mascara a realidade, e fá-lo de forma deliberada. Em nome da criação de "expectativas positivas", falsifica o real no limite da mitomania: o mundo de Sócrates é um mundo que ele mesmo criou, mas em que acredita ao ponto de achar que esse mundo de fantasia é o verdadeiro. Depois, este esforço de modelação da realidade conduz também ao autoritarismo, um das marcas do seu consulado, pois não aceita contraditório.
Ora se o Portugal de hoje já não é o país imaginário das várias "narrativas" do "sucesso", da "competitividade" e da "modernidade", antes um país confrontado com o duro dia-a-dia de estar a pagar a conta de muitos desvarios, a verdade é que o distanciamento face ao discurso irreal não corresponde ainda a uma compreensão plena dos desafios que temos pela frente.
Há quatro realidades muito duras que ainda não digerimos por completo. A primeira é que o país foi de facto à bancarrota. Há quem o tenha dito alto na última semana (Daniel Bessa, Pedro Soares dos Santos), só que poucos o assumem. Tecnicamente, é verdade, o país nunca falhou os seus pagamentos, mas isso é uma ilusão: apenas não o fizemos porque o Estado (no tempo de Sócrates) começou por obrigar a banca portuguesa a financiá-lo e, depois, chamou a troika. Sem isso estaríamos insolventes.
A segunda é que, para evitar a bancarrota formal (que nenhum PEC4 contornaria, diga-se de passagem), tivemos de aceitar ser um país "de programa", a mesma coisa é dizer, um país de soberania limitada. O dinheiro só chega se passarmos nos exames trimestrais, algo que tende a ser esquecido. Tão esquecido que o próximo cheque da troika pode ser atrasado por estarmos atrasados no plano de cortes na despesa pública. Já alguém pensou nas consequências de esse cheque eventualmente não chegar?
A terceira realidade que nos atormenta é a da dimensão da dívida e o tempo que levaremos a fazê-la regressar a níveis comportáveis.
Só para recordar os mais esquecidos: de 2005 a meados de 2011 a dívida passou de 90 para quase 170 mil milhões de euros (passou entretanto os 200 mil milhões) e agora vai ter de baixar para o equivalente a 100 mil milhões. É uma geração de austeridade. É um preço enorme a pagar.
A quarta e última realidade é que não vai ser possível levar este barco a bom porto no actual clima de confrontação política, de que a moção de censura do PS é apenas uma manifestação infeliz e, de certo modo, cobarde. Também não creio que possamos confiar num hipotético "pacto de regime" como o sugerido pelo governador do Banco de Portugal: não poderíamos ter um melhor pacto do que PS, PSD e CDS terem assinado o memorando da troika, mas viu-se o tempo que esse consenso sobreviveu. Em Portugal, com a nossa cultura política, a única solução que compromete os partidos é a partilha directa do poder. Previ-o e defendi-o ainda antes das últimas eleições, vejo agora mais gente a concordar. Não sei é se vamos a tempo e muito menos sei como chegar a um governo de base mais alargada sem ter pelo meio uma crise que deite borda fora o que já alcançámos.
E ainda há o problema Europa.
Voltou a estar na moda falar de guerra na Europa. Uns falam dos seus fantasmas, outros evocam 1913, o ano antes da grande tempestade, há até quem receie que algum tresloucado da Europa do Sul se lembre de reeditar um atentado, desta vez contra um ministro da Europa do Norte. Não estou, confesso, demasiado inquieto, mas por uma razão bem prosaica: quase já não há, na Europa, exércitos dignos desse nome. Para já e por agora essa é a nossa principal garantia de que isto não acaba muito depressa e muito mal.
A falta de militares em armas tem sido compensada pela abundância de plumitivos de espírito bélico. Vivemos numa espécie de nova irracionalidade, em que tudo e qualquer coisa passou a ser culpa, sempre e só, da Alemanha e da chanceler Merkel. Voltámos a vê-lo no caso de Chipre: ainda antes de sabermos o que se tinha passado na famosa reunião do Eurogrupo que decidiu a primeira fórmula do resgate, mesmo quando se multiplicavam as versões contraditórias, o único consenso estabelecido foi que o malvado era o ministro Schäuble.
Junto a esta nova irracionalidade vem a retórica incendiária. É só uma questão de escolher o insulto preferido: "huno", "teutão", "fascista", "neonazi", "Hitler de saias" ou o que mais vier à cabeça. Tudo serve para descrever a Alemanha e os seus líderes. Mesmo pessoas sensatas e inteligentes, como Viriato Soromenho Marques, comparam, no plano moral, o resgate a Chipre à chacina dos judeus, como se aquilo que acabou por acontecer - a falência de dois bancos que foram mal geridos - não devesse ser a regra e não a excepção.
Sobram pois os sinais de que o debate europeu se deslocou da realidade e foi substituído pelo preconceito. O que nos obriga a procurar algum realismo. Um bom começo encontrei-o esta semana nas páginas do mais europeísta dos jornais europeus, o Financial Times, onde três dos seus principais colunistas – Martin Wolf, Gideon Rachman e Wolfgang Münchau – pareceram convergir num ponto: não há nem haverá forma de fazer funcionar bem uma união monetária que agrega países com culturas económicas tão diferentes como a Alemanha, a Holanda e a Finlândia, de um lado, e Portugal, a Grécia e o Chipre, do outro. Sendo assim, aquilo que lhes agradeceríamos era que nos começassem a ajudar a encontrar forma de sair do imbróglio em que os "líderes visionários" de há duas décadas nos enfiaram. E que o fizessem antes de alguma coisa de mais grave acontecer.
As PPP não foram invenções dos banqueiros e dos construtores civis, foram criação de políticos desejosos de "mostrar obra".
Sempre que se corta um subsídio, se corta uma pensão ou mesmo se se cortam as unhas, não falta quem grite, indignado: "Só não cortam nas PPP!" "Cortar nas PPP" tornou-se na poção mágica dos entendidos que estão sempre contra os "cortes cegos" mas são incapazes de sugerir "cortes racionais". A não ser, claro, o corte nas PPP. Os números, de resto, parecem vir em seu auxílio.
Ainda esta semana foi conhecida versão preliminar do relatório da comissão parlamentar de inquérito às PPP e nele escrevia-se que só das parcerias rodoviárias e ferroviárias ainda haverá a pagar mais 11,7 mil milhões de euros. Um escândalo, gritam os profissionais da indignação. Um escândalo, confirmo eu, mas um escândalo que é sobretudo consequência da cultura política dominante no país. A cultura do passado e a cultura de hoje.
Há dois motivos principais para termos uma factura tão elevada a pagar. Ambos chocantes. Por um lado, boa parte dos contratos das PPP foram não apenas mal negociados, foram criminosamente negociados. Mas, por outro lado, esses contratos foram feitos porque era enorme a pressão política e eleitoral para "fazer obra". Excepto uma ou outra situação pontual em que a obra talvez não tenha sido feita e que são referidas no relatório, estamos a pagar as PPP porque houve governos que quiseram construir - e construíram - estradas e linhas férreas sem terem dinheiro para as pagar. Ou seja, se uma parte da factura deriva de maus contratos que beneficiaram de forma indecorosa empresas de construção, grupos bancários e alguns escritórios de advogados, o grosso da factura vem de se ter espalhado betão pelo país todo, mesmo onde tal era mais um luxo do que uma necessidade.
Recapitulemos o essencial do processo e os seus protagonistas.
Primeiro que tudo, tivemos a Ponte Vasco da Gama.
Ao princípio o modelo imaginado para a financiar parecia uma boa ideia: entregava-se a concessão a uma empresa privada, esta cobrava as portagens na nova ponte e, na velhinha 25 de Abril, e os utilizadores acabariam por pagar a grandiosa obra. Este esquema começou a ruir no dia do "buzinão": os utilizadores, afinal, não queriam pagar a nova ponte. Em boa parte porque esta não os servia devidamente, já que em vez de ligar o Barreiro a Chelas, servindo zonas muito povoadas, ligava os Olivais à zona ainda quase rural de Alcochete. A partir desse momento passaram a ser os impostos a compensar as portagens que, por terem sido quase congeladas, deixaram de ser suficientes para pagar a nova ponte. Já vamos em nove renegociações e o que podia ter sido um bom negócio para o Estado tornou-se num negócio chorudo para a concessionária. Mas o pior veio a seguir. Guterres, que disse em campanha ter uma paixão pela educação e não pelo betão, não resistiu à tentação de continuar a construir auto-estradas. Apesar de serem anos de vacas gordas, faltou-lhe o dinheiro, mas não a imaginação.
Graças a João Cravinho, inventou as Scut: o Estado não gastava nada a construir, os utilizadores não pagavam portagens, a factura ficava para os contribuintes do futuro. Foi assim que começou a engordar a factura das PPP. De um lado, políticos que queriam mostrar obra e um eleitorado que só media o progresso em quilómetros de alcatrão; do outro, construtoras e banqueiros em busca de negócios com pouco risco e muito lucro; como bónus, uma fartura de estaleiros capazes de absorverem muita mão-de-obra e de iludirem o desemprego. Parecia que ganhavam todos, mas perdia quem um dia teria de pagar a factura: nós.
Muito cedo houve quem alertasse para a perversidade deste esquema, que até foi tema de campanhas eleitorais. As auto-estradas trariam o progresso ao "interior esquecido e despovoado" e não haveria problema com o que se teria de pagar no futuro, pois o "progresso" induzido pelo betão geraria as receitas necessárias. Nada disto aconteceu, mas mesmo maiorias eleitas para inverter esta loucura não o fizeram, como sucedeu com os governos do PSD e CDS de 2002 a 2005.
Ninguém queria dizer às populações que não lhes daria aquilo com que elas sonhavam desde os tempos de Fontes Pereira de Melo: uma via rápida à porta de cada aldeia. As PPP tornaram-se assim num expoente do "viver acima das nossas possibilidades": como não tínhamos dinheiro para tanto betão, nem nos podíamos endividar mais, arranjava-se quem se endividasse por nós com a promessa de que pagaríamos lá mais para diante. Se a primeira responsabilidade é dos políticos que promoveram esta loucura, a verdade nua e crua é que o eleitorado não só aplaudiu a "obra feita" como reivindicou mais e mais. É por isso que as PPP também são culpa do nosso atraso cultural e do prestígio eterno do "fontismo" como sinónimo de progresso.
Poucos remaram contra esta maré - o Tribunal de Contas, alguns políticos, alguns colunistas, quase todos descartados como "velhos do Restelo", inimigos do interior ou insensíveis sociais.
Os últimos anos, os anos do socratismo, foram especialmente delirantes. Primeiro porque era cada vez mais evidente que o desvario de multiplicar quilómetros de auto-estrada era apenas isso mesmo: um desvario. Se ao princípio ainda se podiam encontrar fluxos de trânsito para justificar uma via rápida, conforme Portugal se ia transformando no país europeu com o maior número de quilómetros de auto-estrada por habitante, menos tráfego tinham as novas vias. E mais surreais eram os contratos de concessão. Aquilo que de início era sobretudo uma má ideia, que atirava para as gerações futuras o custo de infra-estruturas que até eram necessárias, tornou-se numa fraude e num negócio escandaloso em torno de obras desnecessárias.
No relatório da comissão de inquérito podem encontrar-se abundantes exemplos dessa gestão danosa da coisa pública. Começava-se por justificar a obra com base em "estudos" que previam fantasiosos fluxos de tráfego - isso aconteceu tanto em muitas nas novas estradas como num dos mais ruinosos negócios de todos os tempos, o do Metro ao Sul do Tejo, onde o preço por passageiro e por quilómetro transportado suportado pelos nossos impostos é 9,3 vezes superior ao registado no Metro de Lisboa. Depois faziam-se contratos que garantiam aos novos concessionários taxas de rentabilidade do capital que nem uma Dona Branca seria capaz de prometer. Por fim enchiam-se os acordos de cláusulas, minuciosamente desenhadas por exércitos de advogados, que colocavam todo o risco do lado dos contribuintes e garantiam aos investidores uma vida santa, com boas receitas e sem riscos. Tudo isto garantido pelo erário público, pois até quando a Estradas de Portugal chegou ao limite da sua capacidade para assumir encargos, logo lhe chegou a necessária "Carta de Conforto" assinada por Mário Lino e Teixeira dos Santos. A quantidade de abusos cometidos ao longo deste processo é tal que só espero - mas com pouca esperança - que algo de substantivo venha a ser apurado pelo Ministério Público, para onde seguirá o relatório da comissão parlamentar. Mas, infelizmente, isso não nos alivia a factura a pagar.
É possível renegociar muitos destes contratos, baixar as chorudas margens de rentabilidade e partilhar de forma mais equilibrada os riscos, e isso até já tem vindo a ser feito com resultados impressivos. Mas nunca se farão desaparecer da paisagem as auto-estradas vazias, os viadutos redundantes, os túneis quilométricos e tudo o mais que um país a achar que era rico mandou construir sem ter dinheiro para pagar a pronto. Pagou a crédito, e são esses créditos, que escaparam por manhas estatísticas aos limites comunitários do défice e da dívida, que agora nos atormentam sob a forma de PPP.
Este é um "conto moral" sobre os nossos hábitos e a nossa cultura política, e apesar da imoralidade evidente de alguns dos seus agentes, a verdade é que ainda não extirpámos a doença do eterno retorno do "fontismo". Ou então não andariam por aí, como se nada fosse com eles e até a serem escutados com devoção, alguns dos principais figurões de todo este processo. Como não se continuaria a reclamar pelo que não temos dinheiro para ter.