As lutas dos escravos das Américas durante a primeira fase da globalização do capitalismo, as lutas dos operários industriais da Europa: reformismo ou revolução social?
Com o novo modo de transporte transoceânico, cujas tecnologias nomeadamente barcos e navios de todos os tamanhos e feitios, seus cascos e seus velames sofisticados, permitindo bolinar ou avançar em zigue-zague com vento contrário pela proa, caravelas de velas latinas (triangulares), ou redondas (quadradas) com três a quatro mastros, para descobrir, caravelões de cabotagem, naus geralmente de três a quatro cobertas, podendo transportar até mil pessoas e perto de duas mil toneladas, galeões e outros mais rápidos de mais de meia tonelada, fragatas ainda mais pequenas e outros tipos de pequenos navios e barcos, armamento, nomeadamente espingardas e artilharia, fortalezas inexpugnáveis de pedra talhada e de alvenaria pré-fabricada, transportadas e montadas no destino, em poucos dias, como a da Mina, orientação e determinação das coordenadas geográficas em mar alto, no Hemisfério Norte como no Hemisfério Sul, determinação das profundidades, hidrografia, estudo das correntes, dos ventos, marés e climas para planificação das carreiras, cartografia, roteiros, diários ou livros de bordo, “que nós os pilotos portugueses temos” para citar as palavras do piloto anónimo de Vila do Conde (Com. Nac. para a Comemoração dos Descobrimentos Portugueses, 2000, Viagem de um Piloto Português do Século XVI à costa de África e a São Tomé, introdução, tradução e notas de Arlindo Manuel Caldeira, primeira edição, Lisboa, 149 p.), livros de armação, logística, bolacha de água e sal, etc., desenvolveram, aperfeiçoaram e mantiveram secretas dos concorrentes mais poderosos (Jaime Cortesão, 1981, 3º. Edição, Os descobrimentos Portugueses, volume III, capítulo V, Lisboa), foram os portugueses, que primeiro se lançaram na globalização do mercado, levando consigo os caboverdeanos para os quatro cantos do mundo. Tinham, para isso, condições favoráveis, a posição geográfica de Portugal aberta para o oceano e voltando as costas à Europa, as tradições milenares de cabotagem marítima entre a Europa do Norte e o Mediterrâneo, as recentes tradições guerreiras das cruzadas da reconquista da península hispânica, os Templários e os seus navios enviados de França pelo seu último grão-mestre Jacques de Molay, antes de morrer na fogueira e preservados na Ordem de Cristo por El Rei Dom Dinis, o Lavrador, classes médias, artífices e mercadores competentes e dinâmicos em Lisboa e outros portos, vilas e cidades, comerciantes, financeiros, engenheiros navais e mecânicos, arquitectos, letrados, juristas e médicos competentíssimos, no comércio e na indústria privados e públicos, na universidade e na corte. Era uma sociedade multicultural e tolerante, onde conviviam as três religiões do livro e se falava o latim, que deixou de se falar, dois séculos antes dos países da Europa Central, mas continuou a escrever-se, o português, que substituiu o latim na oralidade e começou a escrever-se em verso e em prosa, mesmo antes da independência do país, o chamado caldaico, ou primeira língua de Hespanha, ou “língua de Cristo”, língua dos proto-fenícios, fenícios, cartagineses ou púnicos e hebreus, que teria sido utilizada até ao fim da Idade Média (Moisés Espírito Santo, 2000, O Brasonário Português e a Cultura Hebraica, Instituto de Sociologia e Etnologia das Religiões, Universidade Nova de Lisboa, 303 p.), depois o hebraico ao qual se chamava também caldaico por serem muito próximos, falado e escrito na Hespanha desde a colonização fenícia, isto é muito antes do latim e, depois do latim, ao lado do português, continuando o hebraico a ser ensinado nas sinagogas, até às perseguições e advento da Inquisição (Alexandre Herculano, 1852 , História da origem e estabelecimento da Inquisição em Portugal, Tomo I, Livraria Bertrand, Lisboa, Livraria Francisco Alves, Rio de Janeiro, 332 p.), sem esquecer o árabe, língua da mesma família semítica do hebraico ou caldaico, além do berbere falado pelos colonos mouros vindos de Marrocos com o seu general Tárique Ibn Ziad.
Para a globalização, os portugueses, pouco numerosos, precisavam de mão-de-obra, que, por pouco tempo, foram aprisionar, fazendo razias na costa de Marrocos a retribuir as razias que faziam os norte-africanos nas costas da Europa. Depois dos seus navegadores terem encontrado escravos à venda, mais a Sul, na costa da África Tropical, o Infante Dom Henrique veio a proibir as razias, em 1448, por incompatíveis com o comércio, indispensável ao financiamento das navegações.
Na história dos escravos comprados em África e transportados para Cabo Verde e São Tomé e, depois, para as plantações de cana e engenhos de açúcar das Américas, foram numerosas as resistências e as revoltas contra os maus-tratos e exploração impiedosa, que caracterizaram a acumulação do capital na América e na Europa.
Em São Tomé a revolta do rei Amador em 1595-6, foi a primeira, seguida por outras. Já nos referimos à resistência dos escravos angolares provenientes de São Tomé, que foram falar o seu dialecto angolar do crioulo santomense para as montanhas vizinhas de Cartagena das Índias, dando origem ao idioma palenqueiro da família linguística santomense. Em São Tomé, primeiro os montes e as florestas, depois o sul da ilha habitado pelos angolares tornaram-se autónomos (Gerhard Seibert, 2004, Os angolares de ilha de São Tomé: náufragos, autóctones ou quilombolas? Textos de história, vol. 12, Nº ½, p. 43 – 63; Arlindo Manuel Caldeira, Rebelião e outras formas de resistência à escravatura na ilha de São Tomé, séculos XVI a XVIII, Africana Studia, Nº 7 Edição da Faculdade de Letras da Universidade do Porto, p. 101 - 136).
Até na pequena ilha de Ano Bom, com sete quilómetros de comprimento, três de largura e só dezassete quilómetros quadrados de superfície, povoada em meados do século dezasseis por colonos santomenses patrões e cativos, que organizaram a cultura do algodão em pequenas plantações, os escravos obrigaram as autoridades a abandonarem a ilha, no início do século XVIII e opuseram-se a três tentativas de regresso das autoridades eclesiásticas e administrativas de São Tomé. Contrariamente às revoltas dos Palmares no Brasil, à independência de Haiti e outras revoltas na América, em Ano Bom começou por ser abolida a escravatura, quase dois séculos antes da sua abolição na Europa e na América e a pequena ilha manteve-se independente de 1700 a 1885. O país era governado por um conselho de três anciãos e havia um mestre-escola. Não havia forças policiais e repressivas, os homens iam à pesca e as mulheres cuidavam das pequenas lavras. Os terrenos que ficavam sem produzir mais de dois anos podiam ser ocupados por qualquer família. Ano Bom mantinha ligações com a economia global, fornecendo água e víveres frescos aos navios que por lá passavam, com a condição de serem cristãos, como eram todos, naquela época (Arlindo Manuel Caldeira, sem data, Medo e religião popular na ilha de Ano Bom, Uma aproximação histórica, séculos XVI a XIX, Comunicações, Colóquio, Instituto Camões, 14 p., http://cvc.instituto-camoes.pt/eaar/coloquio/comunicacoes/arlindo_ caldeira.pdf; 2009, Organizar a liberdade, Independência de facto na ilha de Ano Bom durante os séculos XVIII e XIX, Int. Conf. Between three continents, rethinking Equatorial Guinea on the Fortieth Anniversary of its independence from Spain, Hofstra Univ. New York, 2-4 April 2009, 18 p.). Não foram só os povos escandinavos e anglo-saxões, que mantiveram viva a democracia dos primórdios, ou das sociedades primitivas. Isso também aconteceu nas colónias portuguesas, mais precisamente na ilha de Ano Bom, um “palope” antes da letra, ou o primeiro dos palopes.
No Suriname o crioulo dividiu-se em duas línguas, surinamês, hoje língua nacional, e saramacano falado na floresta, que teve origem, em 1690, com a fuga dos escravos da plantação dum caboverdeano português chamado António Machado, os quais se apelidaram Matjau, pelo nome do patrão. Depois do papeamento, o saramacano é a língua crioula das Caraíbas mais rica em léxico de origem portuguesa e mais próxima da língua caboverdeana, uma das duas que menos se relexificaram, por falta de contacto com as línguas dominantes neerlandesa, inglesa e francesa, no caso do saramacano, ou por contacto mais prolongado com a língua portuguesa ensinada nas sinagogas, como foi o caso do papeamento nas ilhas ABC.
Os escravos que fugiram, para as montanhas, foram chamados chimarrões, termo gaúcho do Sul do Brasil, porque, como as vacas e bois, fugiam para os matos, vivendo ali sem sujeição alguma. Chimarrão é equivalente de barbatão, derivado de bravo, no Nordeste (Cândido de Figueiredo, 1944, Grande Dicionário da Língua Portuguesa, 2 volumes, 10ª edição, Livraria Bertrand, Lisboa. 1944). Este termo português deu maroon em inglês, marrons em francês, para os escravos designados por fujões, em Cabo Verde. Escravos maroon e marrons foram numerosos na Jamaica, Guadalupe, e outras Antilhas. As revoltas de escravos levaram à revolução e independência prematura de Haiti da qual ainda não se restabeleceu esse povo infeliz e multiplicaram-se no início do século XIX, levando o Governo Britânico a abolir a escravatura em 1823. Kofi dirigiu a revolta dos escravos das plantações do vale do rio Berbice (1763-64), na actual Guiana e, enquanto defendia a independência, procurou estabelecer laços económicos com as plantações. Na Guiana ainda, mais tarde em 1823, produziu-se a revolta das plantações do rio Demerara (Winston F. Mcgowan et al., 2009, Themes in African-Guyanese History, London, 462 p.), que forçou a abolição da escravatura, no Império Britânico.
Estas lutas dos trabalhadores escravos de origem caboverdeana e africana, nas Américas, durante a acumulação do capital, devem ser consideradas, como percursoras das lutas da classe operária europeia no século XIX, que seduziram Karl Marx e Friederich Engels, a tal ponto que eles passaram a considerar a luta de classes como o motor da história e a maneira mais rápida de atingir a utopia duma sociedade de justiça e democracia, sem classes. A história provou que estavam enganados, a luta da classe trabalhadora desembocou em reformas da sociedade existente, em vários países europeus, e produziu uma nova sociedade de classes, em outros, a utopia continuou a ser um objectivo irrealizável, um ideal, do qual devemos tentar aproximar-nos pelo trabalho e reformas, sem ser impacientes em querer estabelecê-lo custe o que custar, contra a paz social e o trabalho, contra a democracia e contra a moral. A luta dos escravos de origem africana já tinha geralmente resultado na ascensão dos escravos a pequenos proprietários desde os vadios e escravos forros da ilha de Santiago aos chimarrões ou fujões das Antilhas, até à abolição da escravatura.
Com excepção de Cabo Verde, houve revoltas organizadas, onde havia escravos, desde a revolta pacífica de Ano Bom, as revoltas com guerra do mato de São Tomé, com guerra e repressão na Guiana, na Jamaica, ilha em que os escravos organizaram mais revoltas do que o total de todas as outras revoltas das Antilhas Britânicas, na Guadalupe e quase todas as outras Antilhas francesas, espanholas e até dinamarquesas. Só se registou uma trágica utopia e retrocesso em Haiti, consequência da revolução francesa. Em Haiti, a luta dos escravos contra a sua condição social desembocou no regresso da sociedade tradicional africana, sem abolição da escravatura, tal como tinha acontecido antes no Brasil, quando os trabalhadores escravos de Pernambuco aproveitaram a guerra entre o Brasil Holandês e o Brasil Português para se refugiarem no quilombo dos Palmares, onde falavam crioulo. Depois de negociar com o governador da capitania de Pernambuco, o Presidente da República dos Palmares Ganga Zumba havia acordado submeter a República à Coroa Portuguesa, contra paz e alforria de todos os seus cidadãos. Foi substituído pelo jovem Francisco Zumbi de 23 anos de idade, que não acreditou na promessa do governador e prometeu defender os Palmares e lutar vitoriosamente contra as autoridades. Francisco Zumbi nasceu forro em1655, na Serra da Barriga, Alagoas. A partir dos seis anos foi educado por um missionário, que lhe ensinou a ler e a escrever português e latim e a quem ajudava na missa quotidiana. Desta sua educação cristã conservou certamente a imagem do Apocalipse com uma sociedade harmoniosa no Céu, que ele tentou realizar nos Palmares, onde a agricultura de subsistência, por conta própria dos trabalhadores forros era um grande progresso para eles, em comparação com o trabalho escravo em grandes plantações. Ainda não tinha 40 anos, quando foi derrotado e o seu quilombo dissolvido por Domingos Jorge Velho, bandeirante, chegado expressamente de São Paulo com os seus soldados índios. Não voltou a haver negociações com a Coroa Portuguesa, que tinha abandonado o quilombo à agricultura de subsistência, durante quinze anos, até enviar o bandeirante paulista, em 1694. Francisco Zumbi, jovem e inexperiente desfez o acordo realista e vantajoso já obtido pelo Presidente da República dos Palmares Ganga Zumba. Morreu, com muitos outros, inutilmente, na força da vida, os cidadãos livres dos Palmares, perderam as suas terras e de camponeses proprietários voltaram a ser escravos, dispersando-se pelos mercados e plantações. Em consequência desta derrota e dispersão e do abandono das suas plantações em Pernambuco, pelos caboverdeanos judeus, embarcando com os holandeses para a Guiana, o crioulo caboverdeano acabou por se extinguir no Brasil.
Também os escravos, comprados principalmente em Zanzibar, se revoltaram no século IX, na Mesopotâmia arabizada, au sul do actual Iraque. Esta revolta, uma das sete maiores revoltas de escravos da história, começou em 869 e só cerca de quinze anos mais tarde o exército do Califado Abassida conseguiu derrotar os escravos aos quais se tinham juntado os beduínos.
Voltando à Guiana, podemos ainda lembrar, que, após a abolição da escravatura, no século XIX, todos os escravos abandonaram as plantações, indo desbravar terreno, onde, por conta própria, se dedicaram à agricultura de subsistência. Obrigaram o governo da colónia a mandar vir trabalhadores contratados da Índia, falantes de hindi. Estes aprenderam crioulo nas plantações de cana e engenhos e também começaram a cultivar arroz na Guiana. Nenhum vocábulo do abstracto hindi, língua materna dos trabalhadores indianos e uma das línguas nacionais da Guiana, entrou no léxico da língua crioula guianesa.
O trabalhador escravo aspirava a ser pequeno proprietário, a trabalhar por conta própria e dispor dos frutos do seu trabalho, como ficou provado com a abolição, nos países onde tinha terras disponíveis para arrotear e cultivar, nomeadamente a Guiana e a Ilha de Ano Bom. Também o operário assalariado aspira a trabalhar por conta própria, quando pode e a melhorar as condições de vida da sua família, deixar um futuro melhor aos seus descendentes. A luta da classe operária da Europa seguiu o caminho do reformismo na Europa Central e Setentrional com bons resultados e também deu origem, primeiro, a uma tragédia, na Rússia e, depois, reanimou um velho imperialismo com roupa nova, para exportar essa tragédia.
Se tivessem estudado a experiência dos trabalhadores escravos da América, os revolucionários europeus dos séculos XIX e XX poderiam talvez ter renunciado a lançar o apelo à luta de classes militarizada do Manifesto Comunista (Karl Marx e F. Engels, Fevereiro de 1975, Manifesto do Partido Comunista, Publicações Notícias, Lourenço Marques, capa e orientação gráfica de António Bronze, 58 p.) e evitado as tragédias e apocalipses terrestres do século XX, mas tudo o que vinha das colónias e das culturas africanas era considerado com superioridade, desdém e soberba, na Europa, até aparecer a pintura cubista e a música jazz, no século XX. Certos historiadores, vítimas deste desdém europeu, tentaram encontrar percursores das reivindicações operárias do capitalismo moderno, nas corporações de artesãos da Idade Média da Europa e não repararam nas reivindicações e revoltas de trabalhadores escravos menos longínquas no tempo e, sem comparação, mais duras e vastíssimas, durante a primeira fase da globalização do mercado na América (Seymour Martin Lipset, Gary Marks, 2001, Porque não houve socialismo na América, traduzido do inglês, 2000, It didn´t hapen here – Why socialism failed in the United States, Lisboa, Quetzal Editores, 458 p.).
O Manifesto do Partido Comunista não apelou à formação de nenhuma nova sociedade ideal, utópica sem classes, aonde pretendiam chegar os seus autores e seguidores. Foi um apelo à formação do capitalismo de estado, um tipo de sociedade que não era novo e já tinha manifestado as suas grandes limitações. Este Manifesto contém muito concretamente (p. 42 e 43) um programa não exclusivo das seguintes dez “medidas” para “centralizar todos os meios de produção nas mão do Estado”: (1) “reapropriação da propriedade latifundiária e emprego da renda em proveito do Estado”, não se mencionava aqui o proveito do proletariado, nem o proveito da sociedade; (2) “imposto fortemente progressivo”; (3) “abolição do direito de herança”; (4) “confiscação da propriedade de todos os emigrados e sediciosos”; (5) “centralização do crédito nas mãos do Estado, por meio dum banco nacional com capital do Estado e com o monopólio exclusivo”; (6) “centralização nas mãos do Estado de todos os meios de transporte”; (7) “multiplicação das fábricas e dos instrumentos de produção pertencentes ao Estado…”, ou seja industrialização em grande escala; (8) “trabalho obrigatório para todos, organização de exércitos industriais, particularmente para a agricultura (sic)”; (9) “combinação do trabalho agrícola e industrial…”; (10) “educação pública e gratuita de todas as crianças, abolição do trabalho das crianças nas fábricas (…), combinação da educação com a produção material.” Só esta última medida contém uma reforma social importante. Porém, a igualdade de direitos das mulheres com os homens não passou pela cabeça dos autores, no século XIX, ou não desejaram apresentá-la no Manifesto. O primeiro autor foi um chefe de família patriarcal, ou machista, como se diria hoje e tinha uma esposa dedicadíssima e submissa, que traiu com uma empregada doméstica, durante uma das ausências da família, na Alemanha. O filho dessa empregada foi perfilhado pelo segundo autor (Jacques Attali, 2005, Karl Marx ou l’esprit du monde, Paris, Librairie Arthème Fayard, Paris, 539 p.). A penúltima medida do Manifesto é vaga, poderia tratar-se de agro-indústrias “nas mãos do Estado”, ou da combinação do trabalho, nas plantações e nas fábricas ou engenhos tal como existia, em Cabo Verde, no século XV, com os panos de algodão e depois em São Tomé, no início do século XV, com o açúcar de cana de que este país foi o maior exportador, antes do Brasil e, finalmente, na América, no tempo da escravatura, mas, aqui no Manifesto, é tudo “pertencente ao estado” e está tudo “nas mãos do Estado”, o que não era o caso no século XV.
Para chegar ao capitalismo de estado, que, com a expropriação da propriedade privada, tinha que criar uma nova classe minoritária dirigente, “exploradora do trabalho do homem pelo homem”, ou melhor vivendo dos frutos do trabalho produtivo alheio, que veio a ter o nome de “nova classe” na Iugoslávia (Milovan Djilas, 1957, The New Class, Frederick A. Praeger, New York, 215 p.) e de “nomenclatura” na Rússia (Michael Voslensky, 1980, La Nomenklatura, les privilégiés en URSS, tradução francesa, Paris, Le Livre de Poche, 572 p.), este manifesto político não pretendeu enveredar pelo caminho da concertação, consenso e reforma para a solução dos conflitos sociais. Escolheu o afrontamento, a ruptura, o combate, a “destruição violenta” (p. 32) e a “guerra civil” (p. 32), a “revolução comunista” (p. 42). Para atingir os seus fins políticos declarados e muito concretos, que eram o capitalismo de Estado, o Manifesto começou por chamar primeiro proletários e logo “soldados da indústria” (p. 28) e “verdadeiros exércitos industriais” (p. 21) aos operários da grande indústria, apresentou a história como “uma guerra ininterrupta” (p. 20), uma “guerra perpétua” (p.30). Nos seus prefácios a várias edições Friedrich Engels, um apaixonado das aventuras bélicas, na boa tradição prussiana, como uma vez notou o seu amigo Karl Marx (Jacques Attali, 2005), procurou sublinhar ainda mais este apelo à luta de classes militarizada e enunciou a palavra de ordem: “englobar num grande exército único todas as forças combativas da classe operária da Europa e da América” (p. 15). Pode ainda ler-se num desses prefácios a seguinte frase: “neste momento, o proletariado da Europa e da América passa em revista as suas forças mobilizadas pela primeira vez num só exército, sob uma só bandeira…” (p. 17). Esta frase é mais ridícula do que outra coisa.
Nos países da Europa Central e do Norte, onde os partidos da segunda Internacional Socialista seguiram a via reformista, os progressos sociais foram importantes no Século XX. Na Rússia, o Partido Social-Democrata chamado Maioritário (bolchevique) por Lenine, quando obteve uma maioria, porque uma parte dos seus opositores estavam ausentes durante a votação, mas que, depois, sempre se manteve minoritário, fez uma revolução, que foi um golpe de estado para eliminar a guarda feminina do Palácio do Crémelhine. Depois tirou do governo o Partido Social-Democrata dito Minoritário (menchevique) e instalou-se no seu lugar. Poucos meses após a sua instalação no Crémelhine, o Partido Social-Democrata dito Maioritário perdeu as eleições legislativas e logo a seguir impediu a tomada de posse dos deputados eleitos, proclamando a ditadura do proletariado, coisa que Marx e Engels só tinham previsto fazer depois de assegurada democraticamente uma maioria à classe operária e ao partido comunista.
Instalado no poder, o Partido Social-Democrata dito Maioritário fez várias tentativas para aplicar o programa do Manifesto, que fracassaram umas atrás das outras.
A socialização do solo veio juntar-se ao êxodo rural para levar a fome às cidades. O monopólio de cereais do governo soviético resultou em carência, que levou o mercado livre e o comércio de víveres para a clandestinidade, dita mercado negro. O governo e os sovietes (concelhos de trabalhadores) locais acabaram por enviar tropas bem armadas do Exército Vermelho fazer requisições e confiscar os produtos agrícolas dos camponeses, deixando-os esfomeados.
Na indústria, o Partido Social-Democrático dito Maioritário, que veio mais tarde a chamar-se Partido Comunista (Maioritário), por deliberação do seu sétimo congresso (6-8.3.1918), começou por socializar as minas dos Urais e as grandes empresas siderúrgicas e, depois, os transportes e os têxteis. A gestão das empresas pelos sovietes, ou assembleias de trabalhadores revelou a incompetência destes. Passaram a ser geridas por conselhos de administração com um terço de operários e dois terços de profissionais designados pelo Estado. A nacionalização das empresas generalizou-se, entre 1918 e 1921 a empresas e oficinas cada vez mais pequenas. Esta nacionalização fracassou logo e o rendimento da indústria russa passou de 100 % em 1912 a 14 % em 1920. Não bastou substituir os concelhos de administração por direcções de burocratas, engenheiros e antigos empresários, foi decretado também o trabalho obrigatório. Trotsky atribuiu ao estado o direito de militarizar o trabalho durante o terceiro congresso dos sindicatos russos, em 1920. As greves foram reprimidas com trabalhos forçados. A partir de 1921, o sistema de organização das fábricas e de contratação e remuneração dos operários voltou ao que era antes de 1917, o controlo operário foi suprimido e Lenine gabou-se de que a implantação do “socialismo”, isto é da primeira fase da utopia, seria um facto, precisamente por ele ter aceitado e incluído na organização soviética os últimos progressos realizados pelo capitalismo, sem explicar porque é que tinha seguido a via revolucionária, tentando destruir o capitalismo, voltando para trás e perdendo tempo, em vez de prosseguir a via reformista, para o melhorar. O Partido Comunista acabou por abrir as portas ao capital estrangeiro para que viesse acudir à Rússia e ganhar dividendos. Para o comércio exterior foram criadas sociedades anónimas com metade de participação de capitalistas estrangeiros. Essas sociedades anónimas tiveram um papel importante na importação de máquinas e mais tarde fábricas e assistência técnica para as fazer produzir (chaves na mão e produtos na mão), durante a industrialização e os planos quinquenais, que precederam a segunda guerra mundial.
O orçamento e as finanças públicas seguiram pelo mesmo caminho desordenado e pelos meandros do socialismo real, cuja compreensão estava vedada aos não iniciados na fé da utopia. Depois de corrigidos da inflação, os défices orçamentais passaram de 66,6 % em 1918 a 86,9% em 1920, um valor sem precedentes históricos (Ferdinand Tönnies, 1933, Desarrollo de la Cuestión Social, tradução castelhana do original alemão, segunda edição, Editorial Labor S. A., Barcelona, Buenos Aires, 200+XVi p.).
A curto prazo, o socialismo na Rússia e colónias causou “um retrocesso catastrófico na produção da agricultura e da indústria” (Ferdinand Tönnies, 1933), ilustrando o fracasso da “combinação do trabalho agrícola e industrial” da nona medida do Manifesto.
A longo prazo, o capitalismo de estado iniciado em 1921 e apoiado mais tarde nos chamados planos quinquenais (David Priestland, 2013, A Bandeira Vermelha - História do Comunismo, Lisboa, Texto, 781 p. traduzido do inglês The Red Flag - A History of Communism, 2000) foi um fracasso económico de que a Rússia portentosa acabou por sair diminuída e enfraquecida, perdendo muitas das suas colónias, cerca de setenta anos depois. Era de esperar, porque, ainda que houvesse um poderoso computador, com um poderosíssimo programa económico instalado para elaborar os planos quinquenais, nenhuma equipa de burocratas da nomenclatura apoiada pelo partido, polícia e exército conseguiria reunir nem sombra de todos os dados e informações económicos necessários para fazer correr o programa nesse computador. Segundo David Priestland a própria designação de plano era enganadora, porque muitas vezes as metas indicadas tinham sido fixadas arbitrariamente pelo próprio Estaline, eram muito ambiciosas e impraticáveis. Assim, o primeiro plano quinquenal foi considerado cumprido ao fim de quatro anos, quando faltava ainda realizar 40% dos seus objectivos. Depois, tornou-se regra os funcionários mentirem nos seus relatórios sobre as realizações do plano, nas suas regiões, para protegerem o seu emprego, a sua liberdade e a sua vida contra os castigos do novo imperador Estaline.
Entretanto, depois da segunda guerra mundial, muitos outros países ocupados pelo exército soviético, ou como resultado das suas próprias revoluções, baseadas em várias versões do marxismo-leninismo, tinham copiado a moda do Manifesto e dos fracassos económicos já patentes do moderno capitalismo de estado, sem mercado livre e com mercado clandestino. Para isso contribuiu o sistema de promoção da moda marxista-leninista da URSS bem organizado e generosamente dotado de recursos financeiros pelo Governo Soviético. Ainda está por avaliar tudo o que este governo gastou, para fazer funcionar esse sistema de propaganda e promoção, durante a sua existência, não só em publicações e meios de informação, mas também no financiamento de partidos comunistas e “progressistas”, em todo o mundo. Quando Gorbatchov anunciou o fim do financiamento do sistema de propaganda, que a URSS mantinha no estrangeiro, muitos jornalistas e intelectuais de esquerda pararam de enviar para os jornais os seus artigos e crónicas, como foi o caso em Portugal dum conhecido “anti-fascista” do grupo de Argel, Fernando Piteira Santos, com o Diário de Notícias. As guerras e guerrilhas revolucionárias do século XX desperdiçaram recursos sem conta, principalmente os recursos humanos do “capital mais precioso”, como chegou a dizer Estaline, depois de ceifar sem piedade vidas humanas preciosas, que foram contabilizadas pelo próprio (2,75 milhões de pessoas mortas de fome, exaustão e doença nos campos de concentração da União Soviética). Como mais tarde Mao Tse-tung na China, durante a sua revolução cultural, só o fez, para chegar ao poder totalitário e se manter no poleiro de maneira sustentável, ou vitalícia. O desenvolvimento social e económico do globo terrestre foi, desta maneira atrasado durante todo aquele século XX. Alguns países, felizmente poucos e pequenos, ainda não conseguiram safar-se do atraso e miséria impostos pelas famílias reinantes marxistas-leninistas do chamado internacionalismo proletário ou socialismo real, nomeadamente, na favela das Antilhas, com os dois irmãos revolucionários à cabeça duma nomenclatura formada pela polícia e os seus chibatos, sendo os membros desta classe dirigente mais bem pagos do que os da competentíssima e dedicada classe médica cubana. O irmão mais velho já reconheceu ter tomado o caminho errado, porém, velhos e feios como estão, continuam a gostar muito das exibições, nos meios de comunicação. Na Coreia do Norte, o quartel e o campo de concentração combinaram-se numa sociedade retrógrada, com o seu carcereiro, dirigente “bem-amado” de pai para filho e a fome endémica já matou mais de dois milhões de pessoas.
O balanço deste sistema económico de capitalismo de estado e político de ditadura totalitária foi globalmente negativo, mas incluiu importantes resultados positivos que foram obtidos no sector cultural, com a eliminação do analfabetismo e o ensino universal e na solidariedade social com o acesso aos cuidados sanitários, igualdade de acesso dos géneros e a muito apregoada mas problemática erradicação da prostituição. Porém, verificou-se, que estes progressos na solidariedade social eram precários, de elevado custo ético com milhões de trabalhadores forçados ou escravos e de mortos no vigor da vida, em numerosos campos de concentração, mais tarde eufemisticamente chamados campos de reeducação, no Vietname e no Norte de Moçambique. Este capitalismo de estado socialista era, na realidade, um estado esclavagista e a escravatura tinha se tornado “uma componente central da economia soviética, com o chocante número de quase cinco milhões de reclusos a integrarem todo o sistema do gulague” (sistema de campos de concentração e trabalho forçado da URSS), em 1947, equivalendo a cerca de 20 % da força de trabalho e fornecendo mais de 10 % da produção industrial da União Soviética. Logo a seguir à morte de Estáline, Lavrenti Béria, georgiano como ele e chefe da polícia secreta, informou os seus colegas da direcção do partido, que “definhavam no Gulag mais de 2,5 milhões de pessoas que não constituíam qualquer ameaça para o estado e propôs a libertação de mais de um milhão de reclusos não políticos.” (David Priestland, 2013). Foi vítima da luta pelo poder entre os seus colegas, que o assassinaram.
Quando acabou o socialismo real, verificou-se que os resultados positivos eram dificilmente sustentáveis e houve uma regressão na solidariedade social financiada pelo estado. O ensino médio e secundário universal obrigatório e o desenvolvimento sem precedentes do ensino superior foi a conquista positiva destas revoluções marxistas-leninistas. Levou a um grande desenvolvimento científico, a URSS ultrapassou a Europa e os Estados Unidos da América nesse sector, culminando com a iniciativa da exploração do sistema solar. Porém, logo apareceram dissidências e lutas pelo poder dentro da nomenclatura e o sistema económico e político acabou por se desmoronar ou implodir.
Não valia a pena termo-nos inspirado, nem tentado copiar tal sistema económico e político, nos países de língua portuguesa a partir de 1974. O capitalismo de estado nasceu em Portugal depois da primeira revolução burguesa da Europa, em 1383-85, na cidade de Lisboa (Álvaro Cunhal, 1975, As Lutas de Classes em Portugal nos Fins da Idade Média, Lisboa, Editorial Estampa, 132 p.). As suas limitações já eram sobejamente conhecidas em Portugal, onde, com a Inquisição, acabou por comprometer o desenvolvimento económico do país. Depois de ter comprometido o desenvolvimento económico de Portugal e também da Espanha, séculos antes, o capitalismo de estado também comprometeu, na Rússia, o desenvolvimento económico desse grande país. A Rússia com as suas colónias já tinha caído no poço de Chissano, meio século antes de Moçambique e da independência dos “palopes” e a URSS pairava então, em 1974, no mito de super potência e caminhava rapidamente para a implosão. Depois do apocalipse real das purgas, deportações e execuções de Estaline e dos seus tribunais semelhantes aos da Santa Inquisição portuguesa, numa analogia flagrante entre os processos de Moscovo e os de Lisboa, quatro séculos antes, em que os juízes eram também parte interessadíssima e comprometida, (p. 11 e 12, 1960, António José Saraiva, Inquisição e Cristãos Novos, Porto, Editorial Inova, 327 p.), com delatores, torturas físicas e morais e sem justiça independente, a própria nomenclatura soviética já não acreditava na utopia marxista-leninista do comunismo. Os delatores ou familiares da Santa Inquisição católica romana recebiam uma boa parte do património confiscado aos operadores económicos, que denunciavam, os delatores do KGB só recebiam um prato de lentilhas, sob forma de promoção na hierarquia da nomenclatura, que lhes permitia, quanto muito, sair da miséria e beneficiar de condições de vida comparáveis às das classes trabalhadoras dos países de mercado livre. Mesmo para eles, este sistema não era atraente.
Nos palopes, os dirigentes da nomenclatura de Cabo Verde foram os que mais depressa se aperceberam do logro e tomaram medidas preventivas e correctivas atempadamente, para não voltarem a cair no ciclo das fomes. Evitaram os fracassos patentes da maioria das medidas do Manifesto Comunista e desenvolveram a décima medida de educação das crianças e adultos. Foram militaristas desorientados e também antidemocratas para se apropriarem do poder, mas felizmente não chegaram a ser revolucionários, uma vez no poder abstiveram-se de destruir. A começar pelo primeiro presidente de Cabo Verde (Aristides Pereira, p. 249, 253, 297, entrevistado por José Vicente Lopes, 2013, Aristides Pereira: Minha Vida Nossa História, Praia, Spleen Edições, 492 p.), valeu-lhes a sua caboverdeanidade, que evitou novas calamidades. Puderam empenhar-se na solução das antigas calamidades crónicas, a falta de água para a agricultura e o analfabetismo. Entre os palopes, foram os únicos, que souberam evitar o neocolonialismo soviético (Aristides Pereira, falando do seu primeiro ministro e sucessor Pedro Pires, p. 423, obra citada), que trouxe guerras civis a Moçambique, Angola e Guiné e dizimou os seus quadros políticos. Deram um grande exemplo aos “palopes” e também a Portugal. Educaram a juventude caboverdeana e preparam-na para os desafios do desenvolvimento em todos os sectores e longitudes. Acabaram por renunciar a medidas administrativas repressivas, ao partido único e abriram as portas à democracia, que continua a ser o menos pior dos regimes políticos, como lembrou Winston Churchill. Contrariamente a outros países, como Portugal, para não falar de países africanos e latino-americanos, a democracia de alternância dos partidos políticos tem funcionado satisfatoriamente em Cabo Verde.
A nova linguística soviética e como foi que Estaline esclareceu os camaradas desorientados, que misturavam política e ideologia com a linguística, na Universidade de Baku. Estaline parece ter aprendido com os seus erros, depois do gulague e do respectivo holocausto, tornou-se promotor da liberdade de opinião na ciência.
A experiência relativamente recente da União Soviética (URSS) mostrou-nos que, quando os cientistas e investigadores misturam a política com a ciência, esta última afunda-se. O académico ucraniano Trofim Denisovich Lysenko (1998-1996) tornou-se célebre por ter defendido uma genética proletária, oposta à genética burguesa americana. Para ele, os genes eram conceitos burgueses. Desta maneira, por falta de genes, a genética soviética perdeu a sua razão de ser e definhou.
Trofim Denisovich Lysenko (Wikipedia), com o seu olhar de psicopata assustado pela sua própria sombra. Lysenko foi um biólogo e agrónomo soviético de nacionalidade ucraniana, que rejeitou a genética mendeliana. Era a favor das teorias de hibridização do horticultor russo Ivan Vladimirovich Mitchurin, criticou a genética «burguesa» americana e pôs em dúvida a existência dos genes, em nome duma nova genética «proletária».
T. D. Lysenko, o membro da academia, que prejudicou a genética, desviando-a do campo da ciência para o campo da política, como escreveu o Doutor Almerindo Lessa (1960, Seroantropolgia das Ilhas de Cabo Verde, Mesa-redonda Sobre o Homem Caboverdeano, Mindelo, 21 a 24 de Julho de 1956, Junta de Investigação do Ultramar, Estudos, Ensaios e Documentos Nº 32, 159 p.), era bem conhecido em Cabo Verde e a sua genética sem genes foi discutida durante a mesa-redonda do Mindelo sobre o homem caboverdeano, em 1956, à qual participaram 23 investigadores caboverdeanos, 1 indo-português e 6 portugueses.
Nikolai Yakovlevich Marr, (1865 – 1934), professor georgiano da Universidade de Leninegrado, que introduziu a luta de classes na linguística e que, por isso, foi reconhecido e galardoado com o Prémio Lênine pouco antes de morrer
Disparates deste quilate surgiram também, na linguística soviética. Após o golpe de Estado do partido bolchevique, que ficou conhecido por grande revolução socialista de Outubro, um professor da Universidade de São-Petersburgo, Nicholas Yakovlevich Marr (1864-1934), decano do Departamento das Línguas Orientais, que era filho de pai escocês e tinha nascido de mãe georgiana, na Transcaucásia, aderiu ao marxismo-leninismo que estava oficialmente na moda e quis interpretar a linguística à luz dessa doutrina política. Tratava-se dum profissional de mérito reconhecido, que, só depois da revolução, se tornou marxista-leninista. Aderiu ao partido bolchevique, provavelmente a toda a pressa para defender a sua cátedra e não ser saneado, e depois tentou ser consequente, estudando o marxismo-leninismo, inspirando-se deste na sua actividade profissional, a que tentou dar um cunho original e criador, como todos os verdadeiros cientistas. Estas tentativas levaram-no a misturar a política com a ciência, a sua obra científica ficou esterilizada pela política e deixou de ter interesse.
A partir daí, teve uma carreira brilhante e tornou-se o mandarim da linguística soviética com a sua “nova doutrina linguística”, segundo a qual a noção de protolíngua era fictícia e as línguas nacionais se tinham formado pela convergência de numerosos dialectos tribais, uma origem “sociolinguística” antes da letra (Manuel Monteiro da Veiga, 1995, p. 19, O crioulo de Cabo Verde-Introdução à gramática do Crioulo, Instituto Caboverdeano do Livro e do Disco, Praia, 490 p. Ver Subsídio 9.). A linguística comparada era “burguesa” ao passo que a sua “nova doutrina linguística” era marxista e proletária, porque, segundo ele, as línguas tinham evoluído com as lutas de classe, como parte integrante da superstrutura ideológica. Recebeu o prémio Lenine em Janeiro de 1934, ano em que morreu e teve funerais oficiais (René L'Hermitte, 1984, Science et perversion idéologique: Marr, marrisme, marristes, une page de l'histoire de la linguistique soviétique, Institut d’Etudes Slaves, Paris, 104 p.).
A linguística soviética foi dominada pela nova linguística de classe até que Marr e os seus discípulos da Universidade de Baku, Azerbeijão fossem criticados pessoalmente pelo primeiro tsar (= imperador) da URSS, Yosif Visarionovitch Djugachvili, conhecido pela sua alcunha Estálhine e caucasiano como N. Y. Marr (Joseph Staline, 1950, A propos du marxisme en linguistique, in Derniers Ecrits 1950-53, Editions Sociales, Paris, p. 11 – 59).
Iosif Vissarionovich Djugashvili (Wikipedia), mais conhecido pela alcunha, que escolheu na clandestinidade, Stálhine, 1979 - 1953, marxista-leninista georgiano, que, cerca de vinte anos depois de subir ao trono, desembaraçou a linguística da luta de classes, mas que parece não ter chegado a ser conhecido dos linguistas cabo-verdianos, que introduziram a resistência dos escravos na linguística, outros vinte anos mais tarde.
Estaline negou que a língua fosse uma super estrutura (institucional e cultural) acima da base social, que definiu como “regime económico da sociedade a uma dada etapa do seu desenvolvimento”. Lembrou que quando o regime económico se modifica, aparece a superstrutura que corresponde ao novo regime, mas que isso não acontece com a língua. Exemplificou com a língua russa, que se manteve essencialmente a mesma, enquanto que a sociedade russa tinha atravessado três regimes económicos diferentes, feudalismo, capitalismo e socialismo, assim designava ele o capitalismo de Estado, com as respectivas superstruturas diferentes. Sublinhou que a língua é radicalmente diferente da super estrutura.
A seguir vamos resumir os principais esclarecimentos feitos por Estaline, no seu estilo pesado e repetitivo, como respostas a questionários e a cartas de linguistas e membros do seu partido único. Começa por lembrar, que não sendo linguista, não poderia dar inteira satisfação aos seus camaradas mais competentes do que ele em linguística, mas que podia falar com conhecimento de causa das relações entre o marxismo e as ciências sociais. Era um autodidacta, que mostrou, nos seus últimos escritos, ter espírito prático, aberto às realidades e pouco dogmático.
(1) Contrariamente à super estrutura a língua “não é obra duma classe qualquer, mas de toda a sociedade, de todas as classes da sociedade, (…) é criada como língua do povo inteiro, única para toda a sociedade”. É uma ferramenta de comunicação entre os homens e o seu papel “não consiste em servir uma classe em detrimento das outras, mas serve indiferentemente toda a sociedade, todas as classes da sociedade.”
Acrescenta, mais adiante, que a língua “serviu de igual modo os membros da sociedade, independentemente das suas condições sociais” e que
(2) A língua “está directamente ligada à actividade produtiva do homem”, por outras palavras ao trabalho.
Foi como língua de trabalho que os caboverdeanos ensinaram a sua língua materna, primeiro na Ásia e na África, a seguir, no Brasil e depois nas Guianas e Antilhas, aos escravos que lá encontraram e aos que iam chegando numerosos de África.
Entre as outras opiniões e comentários de Estaline para esclarecer os “camaradas desorientados”, interessa citar ainda mais dois.
(3) “Não se pode compreender as leis do desenvolvimento duma língua, sem estudá-la em relação estreita com a história da sociedade, com a história do povo ao qual pertence a língua estudada, seu criador e falante.”
Infelizmente a longa e rica história do povo caboverdeano está insuficientemente conhecida e estudada dentro do Arquipélago e ainda menos conhecida e estudada está a história da nação caboverdeana espalhada pelo mundo, no império português e como ramo da diáspora portuguesa, porque a história oficial portuguesa, tem escondido e ignorado até hoje páginas e capítulos importantíssimos da história de Portugal e seu Império. Voltaremos a discutir mais demoradamente este assunto em subsídios que se seguem. Ainda vamos a tempo de eliminar esta grande lacuna e desenvolver o estudo da história das diásporas caboverdeanas nas nossas universidades.
Infelizmente, os crioulistas do século XX gastaram os seus preciosos recursos para tentar compreender a formação das línguas crioulas com a ajuda da sociologia, quando deviam ter estudado a história dos seus falantes. Acumularam milhares de páginas de trabalho inútil. Já não vamos a tempo de recuperar todos os esforços desperdiçados, esta lacuna e desorientação dos crioulistas deu como resultado, durante um século de abnegado trabalho intelectual, a inúmeros disparates, meio século antes e meio século depois de Estaline se ter debruçado sobre a glotologia ou linguística.
Estaline criticou mais do que a perversão ideológica da linguística. Criticou também as escolas sectárias que se tinham formado nas universidades a partir dessa perversão e do culto dogmático prestado ao mandarim e suas teorias sem fundamento científico.
(4) “Está universalmente reconhecido que não pode haver ciência a desenvolver-se e prosperar, sem uma luta de opiniões, sem liberdade de crítica”, escreveu ele. Foi por isso, que Estaline criticou a escola da nova linguística de classe, que se tinha tornado um grupo fechado à crítica, mas aberto aos privilégios burocráticos e mercantis, onde só progrediam e subiam na hierarquia os adeptos incondicionais do mandarim desorientado.
Parece que os marxistas-leninistas caboverdeanos foram melhores discípulos de Trotsky do que de Estaline, cujas obras aparentemente desconheciam. Com a leitura dos comentários de Estaline à nova linguística soviética poderiam ter evitado misturar a investigação científica com a política, como infelizmente fizeram, cobrindo carências de informação, estudo e investigação com conceitos políticos, nomeadamente a “resistência dos escravos sublimada”.
Porém, mais vale tarde do que nunca, ficam neste subsídio registadas as ideias mais importantes, que Estálhine, marxista-leninista convicto, exprimiu sobre a linguística, em geral e sobre a nova linguística soviética, em particular.
Nos próximos subsídios tentaremos compreender e discutir mais detalhadamente as teorias da nova linguística caboverdeana baseada na sublimação da resistência dos escravos.
Antes de terminar, queríamos ainda confirmar que o tsar autodidacta da URSS não deixava de ter espírito prático, aberto às realidades e pouco dogmático e até parece que aprendia da sua própria experiência, praticando a auto-crítica!...
No apocalipse terrestre da URSS, as vítimas contam-se aos milhões, entre elas muitos cientistas, como o grande economista russo Nikolai Dmitriyevich Kondratiev, nascido na aldeia de Galuevskaya, província de Kostroma, ao Norte de Moscovo, aos 4 de Março de 1892 e fuzilado aos 17 de Setembro de 1938, em Suzdal, perto de Moscovo. Era filho de camponeses da nacionalidade komi. Foi preso em Julho de 1928, depois de ter visitado a Universidade de Minnesota e outras universidades americanas. Depois de ter cumprido a pena foi novamente julgado, condenado a dez anos de prisão incomunicável e logo fuzilado antes de ter começado a cumprir a nova sentença. Tinha 46 anos, escreveu os seus últimos livros na prisão e correspondia-se com sua esposa e sua filha Elena. Não foi enviado para a Sibéria e a proximidade de Moscovo da prisão, onde estava, indica que Estálhine queria ler o que ele ia escrevendo e que a ordem para ser fuzilado veio directamente do secretariado do comité central do PCUS. Antes de ser preso, Kondratiev trabalhou no ministério da agricultura soviético e foi um dos promotores da nova política económica (NEP, em russo) adoptada por Lenine. Tinha proposto um plano quinquenal para a agricultura. Pensava que se devia começar por desenvolver o sector agrícola, seguindo-se a indústria. Estaline decidiu que a industrialização forçada, tirando recursos financeiros à agricultura, era o caminho mais rápido para chegar ao “socialismo” num só país. Kondratiev elaborou a teoria dos grandes ciclos económicos, que tomaram o seu nome (ciclos de Kondratiev ou ciclos K), para explicar o desenvolvimento económico e as crises cíclicas do capitalismo, ciclos de 60+/-15 anos, aos quais o capitalismo de Estado da URSS não podia subtrair-se. Staline mandou fuzilar Kondratiev, que tinha ousado pôr em causa o mito da construção do socialismo a desembocar no comunismo.
Dois anos depois, foi assassinado, no México, Lev Davidovich Bronstein, mais conhecido pela sua alcunha Trotsky, que nasceu aos 7 de Novembro de 1879, na aldeia de Bereslavka, Ucrânia, no seio duma família de agricultores abastados e morreu a 21 de Agosto de 1940, na cidade de México, um dia depois de ter sido agredido pelo assassino (https://en.wikipedia.org/wiki/Leon_Trotsky). O KGB tinha organizado três grupos independentes de assassinos e um célebre pintor mexicano do partido comunista também tinha tentado assassiná-lo. Com um grupo de capangas metralhou a residência descarregando as munições. Com Trotsky, Estálhine queria enterrar a teoria de que não era possível estabelecer o socialismo num único país, mas só ajudou a criar o mito do seu camarada, que tinha fundado o Exército Vermelho, militarizado o trabalho (Ver Subsídio 6.) e a quem se pode reconhecer um olhar de psicopata, mesmo nas fotografias tiradas há dezenas de anos.
O ciclo Kondratiev fez implodir a URSS. Em 26 de Dezembro de 1991, a URSS dissolveu-se.
Depois de ter mandado assassinar um brilhante economista russo e muitos outros homens e mulheres de ciência, durante grande parte da sua vida, foi nos seus últimos dias, que o primeiro tsar soviético escreveu o que citámos mais acima: “Está universalmente reconhecido que não pode haver ciência a desenvolver-se e prosperar, sem uma luta de opiniões, sem liberdade de crítica”. Como interpretar esta sua frase? Aprendeu dos seus erros? Desculpava-se? Estava arrependido? Todos os seus assassinatos seriam, para ele, ossos do ofício dum político? Mesmo com espírito prático e aberto às realidades e pouco dogmático, não passava dum típico marxista-leninista convicto e realizado…
Qual foi a origem das línguas crioulas das Américas,
do Oceano Índico e mais além da Taprobana?
A palavra crioulo passou a designar não só o “dialecto português” falado em Cabo Verde, como também os “dialectos” coloniais, que apareceram e se desenvolveram nas colónias europeias. Assistiu-se ao aparecimento e desenvolvimento destas línguas, com as plantações de cana e a produção dos engenhos de açúcar nas Caraíbas e nas Antilhas e mais tarde nas Mascarenhas. Mas, porque é que foram designadas crioulos? Não seria a palavra portuguesa e o nome da língua caboverdeana e dos seus primeiros falantes, os crioulos caboverdeanos quinhentistas da primeira geração, mais tarde ensinada pelos seus descendentes nessas colónias europeias, como já o tinham feito na Grande Guiné?
Os poderes coloniais cedo passaram a considerar estas línguas, como os seus crioulos, os crioulos ingleses, franceses, holandeses e até espanhóis, ou seja da língua veicular do Estado espanhol multinacional e multilinguístico, que é o castelhano. Parece que não está provado que os falares castelhanos raros de pequenas comunidades de origem africana isoladas em países das Américas do Sul e Central sejam crioulos de neoformação e só um deles foi comparado com o crioulo santomense, provando-se que derivou do dialecto angolar do último. Nenhum foi comparado com o crioulo caboverdeano. Mais adiante havemos de esclarecer o grande mistério, que irrita os crioulistas e sociolinguístas, porque não conseguem explicá-lo nem pela linguística, nem pela sociologia: Por que é que há grandes países francófonos e anglófonos das Grandes Antilhas, falando crioulo, como Haiti e Jamaica, e isso não acontece nas Grandes Antilhas, que foram colónias espanholas, como Cuba, Porto Rico, Santo Domingo, onde plantações de cana de açúcar não faltavam?
Para já, limitamo-nos a notar que os colonos de origem europeia eram donos dos escravos e os respectivos linguistas, até hoje, parece que continuam a pretender ser donos das línguas ensinadas aos escravos pelos caboverdeanos portugueses. Os crioulos ainda continuam a ser classificados como ingleses, franceses, holandeses, etc. (Peter Austin et al., 1996, O Atlas das Línguas, Editorial Estampa, Lisboa, 224 p.). Por culpa dos crioulistas e das suas variadíssimas teorias e conjecturas erradas sobre a origem e formação das línguas crioulas, que tiveram voga durante o século XX, parece que os escravos até perderam o direito de terem e falarem as suas próprias línguas forras. Na crioulística parece que, essas línguas também se tornaram propriedade dos respectivos patrões dos escravos até muito depois da abolição da escravatura: vã cobiça, tinham comprado os corpos, ou “peças” de escravos e queriam também ser patrões das almas dos escravos...
Mestre Baltazar Lopes da Silva (1984, O Dialecto Crioulo de Cabo Verde, Lisboa, Imprensa Nacional–Casa da Moeda, 391 p.) estudou e discutiu aturadamente, entre as páginas 19 e 24 do seu livro, a etimologia das palavras francesa créole, castelhana criollo, alemã Kreole e italiana crioglio pela consulta de vários dicionários etimológicos dessas línguas. Abstraindo das divagações de alguns autores que ignoram o português e só se referem ao castelhano e ao francês, a origem comum é a palavra crioulo portuguesa.
Fig. 1. Baltasar Lopes da Silva
(Caleijão, São Nicolau 1907 – Lisboa 1989)
Para a palavra inglesa creole, consultámos The Concise Oxford Dictionary of Current English (1952, fourth edition, 1540 p.) que faz derivar a palavra do castelhano criollo, por sua vez derivado, sem explicar como, do castelhano criado e criar, ao passo que Collin’s English Dictionary, duma edição electrónica recente, cita as palavras francesa e castelhana como vias de chegada ao inglês e faz tudo derivar do português crioulo, que segundo este dicionário significaria escravo nascido na casa do dono, quando, como vimos, o significado desse termo é muito mais rico e complexo. Também se sabe que numerosas palavras portuguesas, como risco, parcel, monção e casta, não precisaram de ser desviadas pelos caminhos escusos do castelhano e do francês, para passar do português para o inglês. Porque é que isso teria acontecido à palavra crioulo?
Quanto à palavra neerlandesa creool, consultámos o dicionário etimológico desta língua ou dialecto do baixo alemão (P. A. F. van Veen, Nicoline van der Sijs, 1989, Etymologisch Woordenboek, Van Dale Lexicografie, Utrecht / Antwerpen): a palavra creool derivaria do português crioulo, que deu também criollo em castelhano e créole em francês. A sua raiz é o latim creare.
Os autores europeus contemporâneos têm a tendência de fazer viajar as palavras portuguesas de comboio pela Europa fora, de Portugal para Espanha, dali para França e depois para os outros países da Europa, esquecendo-se ou ignorando que o português era e é a língua do Brasil, onde se encontravam também os holandeses da Nova Holanda ou Brasil Holandês, com a sua capital no Recife, entre 1630 e 1654,
Pode se tirar a conclusão de que a origem comum é a palavra portuguesa crioulo. A filologia e a etimologia indicam portanto, que o basilecto comum da grande maioria das línguas e dialectos crioulos da América foi a língua crioula caboverdeana de neoformação. Não foi nenhum sabir (mistura de línguas) do Mediterrâneo, por onde os portugueses não navegavam pouco mais além do que Ceuta, talvez só até Honaine, porto de Tilemecene, onde adquiriam roupas e tecidos para vender na África Ocidental, nem foi nenhum esperanto criado em Portugal para ensinar aos intérpretes ou línguas, numa escola de que não há vestígios históricos, nem arqueológicos.
Em Portugal só havia intérpretes de hebraico ou caldaico, berbere ou mouro e árabe, para os outros milhentos idiomas das Áfricas e das Índias, os intérpretes eram admitidos localmente. Foi o que fez Diogo Cão quando, navegando para sul, chegou ao Zaire, subiu 150 km o Rio Poderoso até às primeiras cataratas, sem língua, só por gestos. Levou quatro congueses para aprenderem português em Lisboa, trazendo-os poucos anos depois e um deles voltou a Portugal como embaixador d’El-rei do Congo (Garcia de Resende, 1545, Crónica de Dom João II). Outros línguas ou intérpretes, talvez a maioria, eram escravos. Rodrigo Alvarez fez um contracto com Sancho de Muñon de Sevilha, em 10 de Outubro de 1475 sobre o empréstimo do escravo Pedro Muça para levá-lo na sua caravela à Guiné como língua (p. 212-213, Instituto de Investigação Científica e Tropical, Comissão Nacional para as Comemorações dos Descobrimentos Portugueses, 1993, Setembro, Portugaliae Monumenta Africana, Vol. I, Imprensa Nacional - Casa da Moeda, Lisboa, 497 p.). Fernão de Ávila, escravo foi enviado por língua ao Benim e aos Rios, servir por três anos com o feitor (Carta de Manuel de Góis a El-Rei, Fragmentos e cartas para El-Rei, Doc. 37, Maço 1, datada de São Jorge da Mina, 12.1.1510, Comissão Nacional para as Comemorações dos Descobrimentos Portugueses, 1993, Portugaliae Monumenta Africana, Vol. V, p. 629). A 18 de Agosto de 1477, João Garrido, língua e escravo de Gonçalo Toscano, recebeu carta de alforria por serviços prestados e a prestar na Guiné de onde era natural (p. 224-225, Instituto de Investigação Científica e Tropical, Comissão Nacional para as Comemorações dos Descobrimentos Portugueses, 1995, Dezembro, Portugaliae Monumenta Africana, Vol. II, Imprensa Nacional - Casa da Moeda, Lisboa, 605 p.). Este escravo tornou-se assim um funcionário da administração ultramarina portuguesa. Ao longo dos anos e dos séculos, os línguas ou intérpretes passaram a ser funcionários portugueses, como foi, por exemplo, o pai de Joaquim Alberto Chissano, em Moçambique, no século passado.
A língua crioula caboverdeana, tal como o latim, está na origem duma família linguística diversificada, não só em África e à volta de África, mas também nas Américas e na Ásia. Para o crioulo da Jamaica temos o testemunho dum linguista da Universidade de Winsconsin, que estudou a etimologia de trinta palavras dessa língua relexificada em inglês e sobejamente descrioulizada. As trinta são de origem portuguesa certa ou provável e teriam lá chegado desviadas pelos caminhos escusos duma misteriosa caçanjaria de base portuguesa, que também as teria levado para muitas outras línguas da América, África e Ásia (F. G. Kassidy, 1992, The Portuguese element in Jamaican creole, Actas do Colóquio sobre crioulo de base lexical portuguesa organizado em Lisboa por Ernesto d’Andrade e Alain Kihm, Edições Colibri, p. 67 - 72). Lembra-nos o autor, que, pelo menos um grupo de plantadores portugueses, ou mais especificamente caboverdeanos da Guiana, se estabeleceu na Jamaica em 1675 com os seus 950 trabalhadores caboverdeanos da diáspora. Lembra-nos também que os ingleses aprenderam a cultivar cana com os portugueses, que eram caboverdeanos da diáspora. Depois, a situação ainda se teria complicado quando, segundo ele, teria surgido uma nova caçanjaria inglesa na Jamaica, falada por caboverdeanos... Este Autor multiplica as hipóteses inúteis, disparatadas e não comprováveis. Não teria sido mais simples os escravos caboverdeanos vindos do Brasil para a Guiana, que, além de plantar cana, também sabiam fazer trapiches e fabricar açúcar nos engenhos, a ensinarem aos poucos escravos, que já lá estavam e aos muitos que vieram depois para a Jamaica, a fazer tudo isso, na sua língua, com a qual sempre comunicaram com os seus patrões caboverdeanos, sem se distinguirem mutuamente pela taxa de melanina dérmica, nem pelo estatuto social?
Pedimos paciência aos leitores, que ficarem admirados e com dúvidas a este respeito e não quiserem acreditar e aos lusófonos unilingues, que se deixarem tentar pelo demónio da inveja, porque a língua portuguesa ainda não criou a sua família linguística, ao passo que o crioulo caboverdeano, tal como o santomense, já têm as suas famílias linguísticas, sendo a caboverdeana uma grande família de dezenas de línguas e dialectos, em vários continentes, ilhas e oceanos.
Nos próximos subsídios, será apresentada toda a documentação histórica, que prova abundantemente, que foram os caboverdeanos dos primeiros a chegar, os primeiros a plantar cana, a montar e a fazer produzir engenhos e que foram eles, que iam ensinando, na sua língua de trabalho, a plantar cana e fazer funcionar engenhos, aos trabalhadores forros e escravos, que encontraram nessas ilhas, e aos novos escravos africanos, que vinham desembarcando para trabalhar nas plantações de cana e nos engenhos de açúcar, cada vez mais numerosos. “Uma indústria de alta intensidade de mão-de-obra e a necessidade de recuperar rapidamente os custos do investimento inicial” e de satisfazer a procura do mercado global “causou influxos massivos e rápidos de trabalho escravo.” Durante esta fase, a importação de escravos para Suriname, num período de vinte anos, aumentou dezassete vezes (Jack Arends, 1995, Demographic factos in the formation of Sranan, in Jack Arends ed., The early stages of creolization, Amsterdam, John Benjamin ‘s, p. 233-85) e a Jamaica deparou-se com um aumento de noventa vezes da sua população de origem não europeia em menos de trinta anos (Silvia Kouwenberg, 2009, Brebice Dutch, in Suzanne Marie Michaelis et al. Ed., The Survey of Pidgin and Creole Languages, Vol. 1, Oxford Univ. Press, p. 278-84), ao passo que, em Haiti, a população não europeia, que tinha aumentado vinte vezes num primeiro período de quarenta anos cresceu duzentas vezes, em pouco mais do que um século (John V. Singler 2006, Children and Creole genesis, J. of Pdgin and Creole Languages, 21, p 157-73). Durante períodos similares, a população de origem europeia poucas vezes só duplicou ou triplicou” (Dereck Bickerton, 2014, More than Nature needs, Language, Mind and Evolution, Cambridge, MA,Harvard Univ. Press).
Fig. 2. Dereck Bickerton, 25.3.1926 (Wikipedia)
Ao ensinarem a sua língua, os caboverdeanos não eram só guiados pelo amor da sua língua materna e pela fraternidade com os outros trabalhadores escravos, eram também impelidos pelos imperativos da produção e do desenvolvimento económico. A tecnologia mais avançada daqueles séculos, que precederam a revolução industrial estava associada à língua caboverdeana, foi ensinada e desenvolvida na língua caboverdeana.
Quanto aos crioulos classificados pelo superstracto ou como “dialectos” das línguas dominantes da expansão europeia no mundo, à volta do continente africano, no estado actual dos nossos conhecimentos, só podemos tomar em consideração, no Atlântico, os dois crioulos diferentes de léxico português, o de Cabo Verde, que foi o primeiro a ser inventado pelas crianças da primeira geração, em Santiago e o santomense, o segundo a ser inventado pela primeira geração de crioulos de São Tomé. As outras línguas ou dialectos crioulos da África Ocidental, nomeadamente os chamados pidgin-english do Ghana (cerca de 5 milhões de locutores), Nigéria (língua materna de 10 milhões, falada por mais de 75 milhões de nigerianos e camaroneses) e os crioulos das outras ilhas do Atlântico, como o da ilha de Santa Helena, o fla danbon ou fa dambu da ilha de Ano Bom, o da ilha do Príncipe, e o fernandino da ilha Bioko ou Ilha de Fernão do Pó ou Ilha Formosa, pertencem às famílias linguísticas destas duas línguas crioulas de neoformação. São de léxico etimologicamente português ou relexificadas em inglês directamente ou indirectamente por intermédio da língua krio da Serra Leoa, ela própria crioulo caboverdeano relexificado em inglês.
O krio também originou a sua própria família linguística de que faz parte, por exemplo, a língua da etnia gullah da Carolina do Sul e da Geórgia (Joseph A. Opala, 1985?, The Gullah: Rice, Slavery and the Sierra Leone - American Connection, Fourah Bay College, University of Sierra Leone, www). Não foi só com a etnia Gullah que o krio chegou aos Estados Unidos. Os colaboradores dos mercadores negreiros ingleses, para angariar mão de obra cativa na Costa da Malagueta, Costa do Marfim, Costa do Ouro e Costa dos Escravos e transportá-la para a América, falavam krio, que ensinaram na costa ocidental de África e esta língua da família caboverdeana foi também levada para os Estados Unidos da América, acabando ali descrioulizada. O Professor William Alexander Stewart (1970-1977) tornou-se a mais alta autoridade do idioma gullah e depois dedicou-se ao estudo do inglês vernacular afro-americano. Cedo avisou os professores das escolas primárias americanas de que as dificuldades de aprendizagem de inglês, que tinham as crianças de pais afro-americanos, estavam ligadas a dialectos em vias de descrioulização da família do krio, que ainda falavam em casa. Para facilitar a tarefa dos professores primários, orientou-os para o estudo desse crioulo americano chamado inglês vernacular afro-americano, contribuindo decisivamente para o desaparecimento natural do crioulo americano, ou melhor dos seus vestígios, o espectro de dialectos, variantes e falares da descrioulização (post creole continuum) do krio.
No Oceano Índico, mais precisamente nos arquipélagos das Mascarenhas e do Almirante, o crioulo “francês” poderia estar ligado à cultura do café introduzida entre 1715 e 1730 e ter sido inventado pelas crianças da ilha Bourbon ou Reunião e levado, por elas, depois de crescidas, para as outras ilhas do Arquipélago das Mascarenhas e para o Arquipélago do Almirante. Porém, na ilha Maurícia, os holandeses introduziram a cana de açúcar, em 1639 e os engenhos começaram a produzir açúcar em 1696, antes de ter chegado o café às Mascarenhas. Nas colónias holandesas, quem dominava a tecnologia e detinha os segredos (= know-how) da fabricação do açúcar de cana era, como veremos mais adiante, a nação ou diáspora caboverdeana e portuguesa das ilhas ABC (Aruba, Bonaire e Curação) e da Guiana, cuja língua de trabalho era o idioma caboverdeano. Quem detinha o capital eram os portugueses e caboverdeanos da sinagoga portuguesa de Amesterdão. Tudo indica que os caboverdeanos já estavam a trabalhar no Arquipélago das Mascarenhas antes de lá chegarem o café e os escravos de Madagascar e de Moçambique. Parece não ter havido condições favoráveis para a formação dum crioulo pela primeira geração de crianças dos trabalhadores das plantações de café da ilha de Bourbon, que eram quase todos malgaxes provenientes de Fort Dauphin ou Toamasina, com a sua única língua nacional da família austronésia (Pier M. Larson, 2007, Enslaved Malagasy and “Le Travail de la Parole” in pre-revolutionary Mascarenes, J. of African History, 48, p.457-79, Cambridge Univ. Press). O crioulo da ilha de Bourbon, ou da Reunião verosimilmente veio da ilha de França ou Maurícia com a indústria açucareira. Com efeito, durante a ocupação inglesa, depois da derrota de Napoleão Bonaparte, na Europa, as plantações de café da ilha de Bourbon foram destruídas por um ciclone e substituídas por plantações de cana-de-açúcar e o açúcar de cana é, ainda hoje, a principal riqueza da ilha da Reunião ou de Bourbon.
Mestre Francisco Adolfo Coelho (1880, 82, 86, Os dialectos românicos ou neo-latinos na África, Ásia e América, Boletim da Sociedade de Geografia de Lisboa, reedição da Academia Nacional de Cultura Portuguesa em Estudos Linguísticos, Crioulos, 1967, Lisboa, p. 1 - 234) tinha antecipadamente posto em dúvida a teoria da origem do crioulo mauriciano, quando lá chegaram os primeiros colonos franceses vindos da Bretanha: em mauriciano diz-se amarrer, em vez de attacher e como em português amarrar, diz-se também espérer, em vez de attendre e como em português esperar e diz-se ainda larguer, em vez de lâcher e como em português largar. O mesmo acontece nas línguas crioulas das Pequenas Antilhas, que derivaram do crioulo caboverdeano relexificado em francês.
Na maioria das Pequenas Antilhas, mesmo aquelas, que como a Grenada, onde a língua dominante deixou de ser o francês e passou a ser o inglês, depois das guerras napoleónicas, falam-se dialectos crioulos relexificados em francês mutuamente compreensíveis. As moças cantam e bailam, para se despedirem dos rapazes, na alvorada e encerrar as farras, uma “coladeira” cuja letra está parcialmente reproduzida no texto da caixa.
Oh, oh, oh, larguez moin,
jour à caille ouvert, larguez moin!
Jour à caille ouvert, larguez moin,
Pou moin aller vouer mama moin.
Oh, oh oh, larguez moin!...
(Oh, oh, oh, larga-me,
o dia começa a despontar na rua, larga-me!
O dia começa a despontar na rua, deixa-me,
vou ver a minha mãe.
Oh, oh, oh, deixa-me!...)
A reprodução foi feita em ortografia etimológica francesa arbitrária. A tradução portuguesa entre parênteses foi revista pela Professora Arlette Lorne Rocha, martiniquesa dos quatro costados, natural de Dacar.
Em crioulo das Pequenas Antilhas, utilizam o verbo larguer, com o significado de lâcher em francês e largar ou deixar em português. Pode ainda observar-se neste texto, que a palavra rua parece derivar do castelhano relexificado em francês e que o verbo ver parece ter ficado a meio caminho da relexificação em francês. Esta canção é muito popular na Guadalupe, Martinica e outras pequenas Antilhas, que foram colónias francesas e falam actualmente línguas e dialectos crioulos com léxico maioritariamente francês.
Ainda no Índico, para o Ceilão Português ou Trapobana (1505-1658), os portugueses levaram populações de origem africana, que ainda são hoje minorias estabelecidas, tanto na costa ocidental, como na costa oriental da ilha, designadas actualmente por burghers portugueses, nas cidades e cafrinhas nas aldeias. Foi antes de estar organizado o comércio de escravos em Angola e Moçambique, tratava-se de marinheiros e soldados caboverdeanos e de escravos de armas treinados em Cabo Verde e falando crioulo. Com os holandeses foram da Guiana para Ceilão e para a Indonésia caboverdeanos da grande diáspora.
Foram certamente os primeiros soldados caboverdeanos chegados a Ceilão em 1507, que ensinaram a sua língua materna, como fizeram, nas Américas, os trabalhadores caboverdeanos especializados nas tecnologias da cana doce. Os caboverdeanos, os cristãos católicos das Índias, Ceilão e Malaca e os macaístas não têm dificuldade em se entenderem, falando uns com os outros as suas próprias línguas e dialectos (Associação das Universidades da Língua Portuguesa, 2010, Interpenetração da Língua e Culturas de / em Língua Portuguesa, Comunidade dos Países de Língua Portuguesa, Instituto Internacional de Língua Portuguesa, Lisboa, 251 p.), como acontece também quando marinheiros caboverdeanos visitam esses países, falando a língua caboverdeana (Arsénio Pina, 2013, Comunicação Verbal).
Sebastião Rodolpho Dalgado (1900, Dialecto Indo-Português de Ceilão, Imprensa Nacional de Lisboa, 259 p.) utiliza o termo de “crioulo de Ceilão”, para designar este “dialecto indo-português” com um “caracter um tanto indefinido ou flutuante”, fazendo lembrar o sistema crioulo da Guiana (Dereck Bickerton, 1975, Dynamics of a Creole System, Cambridge of a University Press, 224 p.). Depois de ler os textos de crioulo de Ceilão apresentados por Monsenhor Dalgado e tendo já lido textos de papiá cristão de Malaca (António da Silva Rego, 1942, Dialecto Português de Malaca, republicado em 1998 com outros textos do mesmo autor pela Comissão Nacional para as comemorações dos descobrimentos portugueses, Lisboa, 302 p.) e falado com macaístas na sua língua materna, Daniel dos Santos Nunes (11.6.2014, Comunicação Verbal) não hesita em afirmar que todos são dialectos do crioulo caboverdeano, facilmente compreensíveis por um caboverdeano. Parece assim que não houve crioulos de neoformação nem na Índia, nem em Ceilão, nem em Malaca, nem na Indonésia, nem na China. Trata-se de dialectos do crioulo caboverdeano. Só muito poucos como, em Goa, foram dialectos portugueses.
O próprio dialecto de Damão é um dialecto caboverdeano mais influenciado pelo adstracto guzarate e mais descrioulizado do que o dialecto caboverdeano de Ceilão (Arsénio Pina, 2013, Comunicação Verbal).
Um crioulo de léxico inglês nasceu em Hauai no século XX e foi aí que Derek Bickerton (2008, “Bastard” Tongues, a trailblazing linguist finds clues to our common humanity in the worl’s lowliest languages, Nova Iorque, 270 p.) esclareceu a origem das línguas crioulas e confirmou as hipóteses do Mestre Francisco Adolfo Coelho (1880, Os dialectos românicos ou neo-latinos na África, Ásia e América, Boletim da Sociedade de Geografia de Lisboa, 2ª Série, Nº 3, p. 129-196), que indica como seu percursor.
Crioulos “espanhóis” praticamente não existem na América, onde estão em vias de extinção algumas variedades de “espanhol boçal” herdadas dos antigos escravos de origem africana: seriam dialectos do castelhano, de alguma língua africana ou de uma das duas línguas crioulas de neoformação do Atlântico. Podem não ter sido falados por escravos boçais, mas sim por pequenos grupos de escravos ladinos de origem caboverdeana, que tinham vindo ensinar a plantar cana e fazer açúcar e que ficaram isolados, num mar castelhano.
Nas Filipinas, em vários portos e cidades do litoral, fala-se uma língua chamada español chabacano ou espanhol vulgar, ordinário, grosseiro, que seria um crioulo de base castelhana segundo os linguistas que o estudaram. Para John M. Lipski (1988, Philippine creole Spanish: reassessing the Portuguese elemento, Zeitschrift für romanische Philologie, 104, p. 25-45; 1986, The Portuguese element in Philippine creole Spanish : a critical reassessment, Philippine Journal of Linguistics,p. 1-17) a estrutura desta língua é a de uma língua crioula, mas duvida que seja da família dum crioulo de léxico português como o caboverdeano ou línguas derivadas na Ásia, como o crioulo de Malaca e o de Java. Só novos documentos escritos em chabacano do século XVI poderiam dissipar a sua dúvida. Tratando-se de uma língua falada por uma grande maioria de analfabetos, parece uma dúvida linguística difícil de dissipar, sem sair da linguística e sem considerar a história dos falantes de chabacano e seus antepassados. Ao sudoeste da ilha de Mindanao, o chabacano é ainda falado por cerca de 200.000 pessoas e é uma das línguas oficiais da cidade de Zamboanga, onde é designado por chavacano. Na ilha de Luzon, baía de Manila havia ainda três variedades ou dialectos de chabacano mutuamente compreensíveis pelos respectivos falantes e pelos falantes da ilha de Mindanao. Um dos dialectos da baia de Manila, extinguiu-se na cidade de Manila, outro é ainda falado por poucas pessoas de Cavite, a antiga capital das Filipinas e o outro é falado pela maioria dos habitantes da cidade de Ternate, muito próxima. Os linguistas e filólogos filipinos imaginaram que o chabacano teria nascido no estaleiro naval de Cavite (Astillero de la Ribera), onde foram construídos quase todos os galeões, uma centena, que iam e voltavam para Acapulco, Nova Espanha, duas vezes por ano, durante duzentos e cinquenta anos. Nesse estaleiro, os filipinos, como cerca de um século mais tarde, durante a construção das muralhas e fortaleza de Zamboanga, aprenderam a falar primeiro una algarabia de castellano e acabaram por falar castelhano correctamente com a escolarização, do qual se esqueceram, quando deixou de ser ensinado, em meados do século XX. Em Cavite havia duas línguas em presença, tagalá e castelhano e os trabalhadores filipinos tinham as suas famílias perto, na cidade ou no campo. O mesmo aconteceu em Zamboanga, os trabalhadores não ficaram fechados no estaleiro da fortaleza nem num compondo, como os mineiros sul-africanos. Porém, para a fortaleza vieram soldados de Ternate, que eram dos melhores, que tinha o governador espanhol de Cavite. Mandou-os combater os moros do sul e reprimir rebeliões até que, no século XIX, passaram a combater pela independência, nas planícies e nas montanhas da ilha de Luzon contra os espanhóis (Major Basílio Ramos) e, depois, contra os americanos (Julián Ramos). Os antepassados desses ternatenhos filipinos vieram da fortaleza portuguesa de Ternate, nas Molucas, por onde passaram São Francisco Xavier, como missionário, que pregava e catequisava em crioulo, e Luís de Camões, como soldado. Do forte de São João Baptista de Ternate, os portugueses retiraram-se para o Forte dos Reis Magos de Tindore, na ilha vizinha, expulsos pelo sultão da ilha de Ternate. Antes de ser abandonada, em proveito dos holandeses, Ternate tinha sido reconquistada, em 1606, por uma armada enviada das Filipinas pelo governador D. Pedro da Cunha.
Nas Filipinas, não havia condições para surgir um crioulo de neoformação, tudo foi obra do crioulo de Cabo Verde. Chegados a Cavite com suas famílias, os militares das Molucas, mais escuros do que os filipinos, logo declararam que eram homens forros. Foram conhecidos por mardicas, do holandês mardijker, que significa forro. Os mardijker da Indonésia holandesa eram descendentes dos escravos caboverdeanos, que os holandeses tinham trazido com carta de alforria das suas colónias das Caraíbas para Java. Falavam o crioulo caboverdeano, iam às igrejas protestantes, onde os sacerdotes holandeses tinham traduzido a Bíblia em crioulo, mas continuavam a praticar a sua religião em casa e vestiam-se à portuguesa. Ao fim de poucas gerações, só pela língua materna, que falavam, se distinguiam bem dos javaneses e malaios.
Para ficarem perto da fortaleza da capital, o governador mandou instalar os ternatenhos e suas famílias nas proximidades, num lugar a que eles deram o nome de Ternate, ilha e vulcão de donde vinham. Dali passaram, levando a sua língua para Cavite e para as guarnições do sul de Mindanao. Durante a sua presença, nas Filipinas, o crioulo caboverdeano conviveu primeiro com o adstracto dominante castelhano, sendo relexificado. Em Luzón conviveu com o tagalá, em Mindanao com o cebuano e finalmente, até hoje, com o inglês e a língua nacional, que é o tagalá. Os linguistas têm estudado os efeitos dessas línguas no chabacano, que foi comparado com o macaísta, mas até hoje ninguém se lembrou de o comparar com crioulo caboverdeano, nem mesmo com o papeamento cristão de Malaca. Tem 80% de léxico castelhano, 20% de léxico filipino e uma dúzia de palavras portuguesas, sem contar todas as palavras castelhanas muito parecidas com as portuguesas, que deviam ser subtraídas dos 80% de léxico castelhano, para formar um grupo separado de origem portuguesa. Dos três dialectos chabacanos, foi no ternatenho que se encontraram mais palavras portuguesas, o que não é de admirar, porque é da família directa do crioulo caboverdeano, veio de um forte português e porque os dois ou três outros (zamboangano, cavitenho e ermitenho extinto de Manila) derivaram dele (John M. Lipski, Chabacano/Spanish and the liguistric Philippino identity, 33 p., http://www.personal.psu.edu/jml34/ chabacano.pdf; Marivic Lesho & Eeva Sippola, 2014, The Ohio State University – Aarhus University, Folk perceptions of variation among the Chabacano creoles, 46 p., Revista de Crioulos de Base Lexical Portuguesa e Espanhola, ISSN 1646-7000, Vol. 5, 2014, http://www.acblpe.com/files/1.%20Folk%20perceptions%20of%20variation%20among%20the%20Chabacano% 20creoles.pdf).
Foi assim, que o castelhano deixou de se falar nas Filipinas, mas continuou a falar-se uma língua crioula, que os portugueses levaram para Ternate e, mais tarde, os holandeses trouxeram das Caraíbas e, finalmente, os espanhóis foram buscar à Indonésia Oriental, com os seus falantes. Em Manila, já não se fala chabacano, em Cavite corre perigo de se extinguir, mas, em Zamboanga, está a recuperar a sua vitalidade de língua da família caboverdeana, com o seu léxico castelhano e português e, com os seus 200.000 falantes, não corre perigo de se extinguir (Mauro Fernández, Universidad de A Coruña, 2001 ¿Por qué el chabacano?, Estudios de Sociolingüística, 2:2, 2001, pp. i-xii, http://www. sociolinguistica. uvigo.es/ descarga _gratis.asp%3Fid%3 D48). Graças a um dialecto caboverdeano, ainda há vestígios de castelhano nas Filipinas.
De Java, onde foi chamado portugis e papiá tugu do nome do bairro, onde residiam os mardijkers, o crioulo caboverdiano vindo da Guiana e das ilhas ABC também foi parar à cidade do Cabo com os descendentes dos mardjikers conhecidos por malaios portugueses. O Professor D. C. Hesseling, linguista holandês afirma que, durante o século XVIII, quase toda a população do Cabo, incluindo os hotentotes e os escravos, era bilingue, falando holandês e crioulo, a que chamavam malaio-português. Segundo ele, foi do contacto do holandês com o crioulo, que nasceu o “dialecto holandês” Afrikaans, que mais tarde veio a ser uma das línguas nacionais da África do Sul (Marius-Fraçois Valkhoff, 1963, Algumas Reflexões sobre os Dialectos Crioulos, Texto da conferência promovida pelo Centro de Cultura de São Tomé e Príncipe a 15 de Julho de 1963 revisto pelo Autor, Separata do Bol. Mensal da Sociedade de Língua Portuguesa, Lisboa, 1968, p. 49-60). A língua nacional Afrikaans precisa de ser comparada com o crioulo caboverdeano, pelos glotólogos caboverdeanos, se é que ainda não o foi, as relações entre a República de Cabo Verde e a República da África do Sul têm sido excelentes desde a independência. Não será a primeira língua nacional o resultado da relexificação, em benefício da língua dominante holandesa, e concomitante descrioulização da segunda língua nacional? Esta primeira não pertenceria á família linguística da segunda língua nacional, o crioulo caboverdeano? Os holandeses compreendem a língua nacional Afrikaans, sem dificuldade. Porém, talvez não seja tão fácil para eles compreenderem Afrikaans falado pelos chamados Cape coloured da Província do Cabo ocidental da África do Sul. Talvez não cheguem a compreender o Afrikaans falado pelos hotentotes da Namíbia. Provavelmente caboverdeanos da Holanda e falantes de papeamento das ilhas ABC, compreendê-los-iam sem dificuldades. O Afrikaans da África do Sul, tal como a língua falada pelos descendentes de africanos nos Estados Unidos da América, é um espectro de dialectos, variantes e falares da descrioulização (post creole continuum). Na América, está em vias de desaparecer, ou já desapareceu. Na República da África do Sul, tornou-se uma língua de cultura e uma língua nacional, por obra dos seus falantes com fraca taxa de melanima dérmica.
Mais acima foram citadas as informações do linguista holandês, Professor D. C. Hesseling, segundo as quais os hotentotes do Cabo falavam afrikaans, no século XVIII. Mas os hotentotes da Namíbia ainda o falam hoje. Sabe-se que grande parte dos naufrágios de navios portugueses vindos da Índia ocorria depois do Cabo ao longo da costa da Namíbia maltratadas por tempestades e serras de água. Esses navios transportavam portugueses de regresso a Lisboa e soldados caboverdeanos de regresso ao Arquipélago. (Quirino da Fonseca, 1926, Os Portugueses no Mar, Memórias Históricas e Arqueológicas das Naus de Portugal, Vol. I, Ementa Histórica das Naus de Portugal, 798 p.) Os náufragos que conseguiam chegar vivos à praia, com falta de recursos, nem sempre podiam seguir, por terra, para Moçambique. Uma vez construíram barcos com a madeira do navio naufragado e rumaram a Norte, para Angola. Frequentemente, dividiam-se em dois grupos: um grupo com portugueses procurando, a pé, alcançar Moçambique e aguardar a carreira da Índia. Outro grupo de escravos de armas, que ficavam e procuravam subsistir na Namíbia. Assim deve ter chegado o crioulo caboverdeano à Namíbia, esses “hotentotes” da Namíbia, falando Afrikaans, são certamente descendentes de náufragos caboverdeanos, que voltavam do serviço militar na Ásia.
Outro idioma crioulo que costuma ser erradamente classificado como espanhol (Peter Austin et al., 1996, O Atlas das Línguas, Editorial Estampa, Lisboa, 224 p.) é o papeamento, que todos sabemos ser crioulo de Cabo Verde, com algum léxico neerlandês e castelhanismos. Os portugueses e caboverdeanos judeus foram para a Guiana e para as ilhas ABC, vizinhas da costa da Venezuela, cultivar cana e produzir açúcar, quando os holandeses abandonaram o Brasil. De Cabo Verde, tinham levado a língua materna e língua de trabalho comum a todos, patrões, trabalhadores cativos e trabalhadores forros, assim como os seus costumes religiosos e sociais. Apesar de terem liberdade de opinião, pensamento e religião tanto nas ilhas ABC, como na Guiana, continuaram a cobrir de areia o chão das sinagogas, como nos sobrados de Cabo Verde, onde a camada de areia se destinava a amortecer o barulho dos passos das muitas pessoas, que se reuniam aos sábados, nas sinagogas clandestinas (Edmond S.Malka, 1997, Fiéis Portugueses, Judeus na Península Ibérica, Edições Acrópole, Alfragide-Damaia, 168 p.) camufladas em mosteiros, na ilha do Fogo, e eles próprios em monges e frades. Foi assim, disfarçados de pobres frades vindos do Brasil, que, mais tarde, se apresentariam aos governadores franceses da Martinica e da Guadalupe, pedindo autorização e concessão de terras para plantar cana (Arlette Lorne Rocha, 2012, comunicação verbal).
O outro crioulo classificado “espanhol” é o palenqueiro, língua levada, em meados do século XVII, para o palenque, ou quilombo de San Basilio, nas montanhas da província de Bolívar, capital Cartagena de las Indias, Colômbia, por escravos originários de São Tomé, que ali se fortificaram e defenderam até que El-rei de Espanha reconhecesse a sua liberdade, numa carta de alforria e tratado de paz. O padre Alonso de Sandoval (1627, De Instauranda Ethyopum Salute, Sevilla, Empresa Nacional de Publicaciones, Bogotá, 1956, p. 94), que estava em Cartagena, falava crioulo santomense aprendido no Golfo da Guiné e, nesta língua, desempenhava os seus deveres religiosos junto dos escravos que iam chegando. Ele afirmou que quase todos o compreendiam.
“Sabemos, pues, a ciencia cierta, que muchos de los esclavos llegados a Cartagena de Indias hablaban este lenguaje criollo a base portuguesa y que los esclavos que formaron el palenque de San Basilio, desde 1608 y durante los años subsiguientes, se establecían allí hablando y conservando su lenguaje criollo con todo su sabor portugués. Con el pasar de los años y bajo la influencia del castellano que se hablaba en la costa colombiana, el lenguaje criollo de base portuguesa que era la lengua ‘oficial’ del pueblo del palenque de San Basilio, iba poco a poco relexificándose y restruturándose hacia los patrones del castellano.” (Wiiliam W. Megenney, University of California, Riverside, 1983, La Influencia del Portugués en el Palenquero Colombiano, Thesaurus, Centro Virtual Cervantes, Th. XXXVIII, No. 3, p. 548-563).
No palenqueiro ficaram palavras do quimbundo, sinal de que os escravos chegados à Colômbia falavam o dialecto angolar ou forro do crioulo santomense. Teriam sido prisioneiros da guerra do mato em São Tomé, ou, talvez, forros enganados pelos mercadores de escravos, que os teriam embarcado, dizendo-lhes que os levavam de volta a África.
Lembremos ainda que, graças aos revolucionários sandinistas, nasceu uma algaravia e depois um crioulo de sinais na Nicarágua. Depois de deposto o regime totalitário da família Somoza, o novo governo abriu, pela primeira vez naquele país, uma escola para crianças surdas de nascença. Os primeiros alunos dessa escola foram adolescentes e adultos, que ignoraram o castelhano de sinais que os professores tentavam ensinar-lhes e acabaram por comunicar no Lenguaje de Señas Nicaraguense (LSN), um pidgin ou língua simplificada de sinais, ou algaravia de sinais. Depois vieram crianças pequenas ou crioulos, que inventaram rapidamente o Idioma de Señas Nicaraguense (ISN), uma língua complexa com as suas próprias regras gramaticais, um crioulo de sinais ou gestos (Judy Kegle, University of South Maine, citada por Derek Bickerton, 2008, Wikipedia, Psycholinguistics / Pidgins, Creoles and Home Sign).
Voltando ao crioulo de Damão, também ali conhecido por língua da casa, ou português badrapor (http://discover-daman.com/eu-falo-portugues/), reproduzimos a seguir um texto desse dialecto damanense do crioulo caboverdeano.
Fábula de Esopo, um escravo grego de origem africana, contada no dialecto damanense da língua crioula caboverdeana de neoformação: A Velha e o Galo
Antú vi. Eu tem contan pór-óss um chistoz histór. Mim mãe tim fallan quando tinh piquinin.
Tinh naquell temp um velh morteng. Éll tinh doi creád mulher e bastante bazrúc (*). Esse doi mulher, um tinh nõm Gitrud e ôt Anall. Bem cêd aquell velh tinh fazen cordá sú criád quando tinh cantan gáll. Análl já falou pú Gitrud: Ess nóss don munt rabjent; qui cêd já tem fazen launtá; num tem dixan durmi mesmo tud nôt. Gitrud já respondeu: Bai Anall, bam nós fazê un cóiz; vóss turcê gargant de gall e falla pú velh: Gall tinh gemen gemen, já isticou canell. Qi há fazê Bai? Anall já fazeu qui lai Bai Gitrud tinh fallan. Velh já ficou munt mortificad,
Mas ósstem saben, éll qui coiz já fez? Éll num tinh durmin e tá fazen cordá mê-nôt. Qui disgrass!
Amb já ficou arrependent munt, mas qui á fazê? Tard arrependid infern tem chê.
(*) Bazaruco é o nome duma moeda que circulou em Damão. Aqui significa dinheiro, riqueza.
António Francisco Moniz, 1923, Notícias e Documentos para a História de Damão, Antiga Província do Norte, Volume Primeiro, Bastorá, Tip. Rangel, 327 p.
Quem tiver dificuldade em reconhecer o damanense como dialecto caboverdeano pode ainda referir-se às fotografias seguintes de damanenses, que falam este dialecto. Em Damão, os caboverdeanos parece que mantiveram os critérios antigos dos colonos portugueses de meados do século XV para escolherem as suas noivas. As fotografias de crioulas de Damão na Internet mostram que são lindíssimas.
O número de falantes de crioulo damanense é geralmente avaliado em 2.000 ou 4.000, segundo as fontes, mas a Associação Luso-Indiana Damanense (Portuguese-Indian Association of Daman) avalia esse número em mais de 10.000 pessoas. Os falantes de damanense seguem a religião católica. A língua caboverdeana, em Damão e Diu, com poucos falantes está ameaçada de extinção. Como na ilha das Flores, em Tugu, Java com a morte do último falante, o mardica Joseph Quiko, em 1978 (Wikipedia, Mardijker Creole) e, em Cochim, recentemente (Hugo Canelas Cardoso, 30.10.2010, The Death of an Indian born language, http://www.openthemagazine.com/article/art-culture/the-death-of-an-indian-born-language), com a morte do último falante William Rozario, a 20 de Agosto de 2010, aos 87 anos de idade, poderia acontecer, que deixe de ser falada e se mantenha, talvez, nas orações e cerimónias da religião católica. Porém, os damanenses são muito activos na defesa da sua cultura. Além disso, o crioulo não nasceu na Índia do casamento entre o português e várias línguas indianas, foi levado para a Índia pelos marinheiros e soldados caboverdeanos e evoluiu em contacto com várias línguas indianas, como, neste caso, o malaialamo, para dar muitos dialectos, entre os quais este crioulo de Cochim, que deixou de ser falado recentemente. Além de Korlai, perto de Bombaím, onde o crioulo é falado por cerca de 1.000 pessoas, na Índia, praticamente só subsistem os dialectos de Damão e Diu (Hugo C. Cardoso, 2009, The Indo-Portuguese language of Diu, Utreque, LOT Publications,351 p.), este último com uns 200 falantes.
Os descendentes dos escravos de armas da fortaleza de Diu estão integrados na sociedade indiana e são muito activos na vida social da ilha Diu, como se pode ver na fotografia junta.
Fig.3. Durante a Festa de Diu apresentaram-se estes descendentes dos caboverdeanos da guarnição da fortaleza de Diu (http://www.daman.nic.in/Festa-De-DIU.aspx#).
Que significam as palavras «crioulo» e «papear»? Qual foi a origem, em Cabo Verde, da língua, que ficou a ser designada por crioulo?
Um dos meus amigos, António Amaro de Melo, professor de português do liceu de Setúbal, Portugal, foi quem me iniciou às obras do Mestre Baltazar Lopes da Silva. Ele gosta de dizer que qualquer aluno de filologia românica pode compreender a origem e a formação do crioulo. Com isto, fiquei sem saber se estava condenado a não compreender essa origem por não me ter matriculado em filologia como desejava o meu professor de português do Liceu Salazar de Lourenço Marques, Doutor José António Duarte Marques, ou se tinha que arranjar tempo e recursos e se ainda ia a tempo de me matricular em filologia românica. Para ganhar tempo, tomei uma decisão prática: utilizar os rudimentos de filologia que me tinham inculcado naquele liceu. Resolvi começar por consultar dicionários etimológicos.
Consultei, primeiro, o Grande Dicionário da Língua Portuguesa de Cândido de Figueiredo, 2 volumes, 10ª edição, Livraria Bertrand, Lisboa, 1944. Não dá a etimologia de crioulo ou crioilo. Com a mesma raiz, há ainda criatura, criança, cria, criado, termos que se referem a pessoas humanas, e criação. Dá muitos significados de crioulo com menção da área geográfica de utilização, mas sem datas, entre aquelas o Minho, onde significa criança de colo e que é, certamente, o mais antigo, na Índia Portuguesa, obviamente mais recente, onde passou a significar filho adoptivo. Estes pareceram os significados mais relevantes para as nossas investigações. Há ainda o Ribatejo, onde a palavra designa aves, que embora de arribação, lá se conservam e o Brasil, onde a palavra se generalizou às pessoas, animais ou vegetais próprios de certa localidade. A palavra também passou a designar o “dialecto” português falado em Cabo Verde e os “dialectos coloniais”, ou melhor, línguas que apareceram e se desenvolveram nas colónias europeias da África, América e Ásia.
O Grande Dicionário da Língua Portuguesa de António de Morais Silva, 1789 -1949, 12 volumes, dá também para crioulo, o significado de criança de colo, que se manteve no Minho, assim como o significado da Índia Portuguesa. O Dicionário da Língua Portuguesa da Academia de Ciências de Lisboa, 2001, 2 volumes, dá criança de colo, como regionalismo minhoto.
Depois consultei o Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa, 2002, 6 volumes, Círculo de Leitores, Lisboa. Dá os mesmos significados de crioulo que os precedentes e tenta reconstituir a etimologia da palavra com a raiz cria-, do verbo criar documentado desde 1091 e derivado do latim creare (creo, creas, creavi, creatum) e a terminação –oulo, que pode ser assimilada ao sufixo –olo, -ola, utilizado em criançola, por exemplo. Cria designa um animal recém-nascido e designou também criança de peito ou de leite, significado este que caiu em desuso depois da adopção da palavra bebé do inglês baby.
O Dicionário Etimológico da Língua Portuguesa de José Pedro Machado, 1977, 5 volumes, Livros Horizonte, Lisboa confirma que crioulo deriva da palavra cria seguida do sufixo –olo, em latim –ollu-. Sendo a raiz latina e o sufixo igualmente latino, temos de admitir, até prova do contrário, que a palavra portuguesa crioulo veio directamente do latim para o português. Esta palavra é de origem latina, foi correntemente utilizada em português falado e em português clássico e só mais tarde caiu em desuso, restringindo-se o seu uso e permanecendo modernamente no Minho com o significado original de criança de colo, criança que já não é cria, nem criança de leite e de peito, ou bebé. O Padre Baltazar Barreira, em 1611, no século XVII, ainda utilizava esta palavra para designar as numerosas crianças pequenas que via nas quintas, filhos e filhas dos cativos, que ali trabalhavam (Padre Baltazar Barreira ao Padre Assistente de Portugal, 17.7.1611, Carta Ânua da Missão de Cabo Verde do ano de 1610 até Julho de 1611, Documento 111, p. 438 – 469, Monumenta Missionaria Africana, África Ocidental (1610 - 1622) coligida e anotada pelo Padre António Brásio C. S. Sp., Segunda Série Vol. IV, Agência Geral do Ultramar, Lisboa, 1968, 718 p.).
A filologia indica assim, que as crianças de colo, idade em que começam a aprender a falar e gatinhar estão relacionadas com a origem da língua e com o nome da língua, que nasceu em Cabo Verde, em meados do século quinze, quando ainda não havia Brasil.
Em crioulo, falar diz-se papiá. Nas ilhas ABC (Aruba, Bonaire e Curaçao) o nome dado à língua crioula é papiamento. O verbo papear era utilizado na ilha da Boavista, segundo António Amaro de Melo (7 de Novembro de 2013, informação verbal), pela professora da sua avó que costumava dizer: “Meninos, vamos papear de outra maneira.” O verbo crioulo papiá tem origem no verbo português papear derivado do latim pipiare, que também deu piar e pipiar para a voz das aves e sua imitação. Mas papear, derivado de pipiar, segundo Cândido de Figueiredo (1944), significa falar muito, chilrear, tagarelar, mover os beiços sem som compreensível e audível, cochilar. O Grande Dicionário da Língua Portuguesa de António Morais e Silva, 1789-1949, dá cinco significados diferentes da palavra: (1) cochilar, falar baixo, mover os beiços como quem reza, (2) falar muito, papaguear, palrar, parolar, (3) gorjear, chilrear, pipiar, (4) mover as mandíbulas como quem masca e engole em seco, (5) bater um papo, no Brasil, (6) repetir como papagaio, papaguear. O terceiro significado aplica-se às aves e é ilustrado por Camilo Castelo Branco, Serões, V, p. 40, com as andorinhas. Os outros aplicam-se a seres humanos. O último é ilustrado por Venceslau de Morais, Traços, p. 38: “O papear insólito dos garotos…” No tempo de Venceslau José de Sousa de Morais, oficial da marinha, fundador e professor do liceu de Macau e cônsul português no Japão (Lisboa, 1854 - Tokushima, 1929) a palavra crioulo já não era usada, salvo no Minho e ele utilizou a palavra garoto com o significado de crioulo.
A filologia indica, que as crianças de colo, a primeira geração de crianças nascidas em Santiago, se puseram, entre os dois e os cinco anos de idade a papaguear e a tagarelar e, finalmente, a falar a sua própria língua, que tomou o nome dos seus primeiros falantes crioulos, para ser designada por língua crioula. Repetiram, papaguearam as palavras que ouviam, construíram frases e, como a grande maioria dos pais não as corrigissem e não as ensinassem a falar português, inventaram a língua crioula, para satisfazer as suas necessidades imperiosas de comunicar e de organizar a sua vida social infantil. O seu papeamento não era compreendido pela geração precedente, que falava ou se fazia compreender em português, geralmente sem o ter aprendido em nenhuma escola, à maneira duma algaravia ou caçanjaria. Cada criança ouvia línguas diferentes aos seus pais e até provavelmente a maioria dos casais, sem língua comum, só comunicassem no português que tinham conseguido aprender, mal ou bem. O crioulo nasceu espontaneamente, tal como a primitiva língua da espécie dos homens modernos, cuja capacidade de criar línguas ou aprendê-las, em tenra idade, ficou gravada nos genes, que regulam o crescimento do cérebro humano. Conhecem-se casos de crianças mantidas em isolamento, que deixaram de poder aprender a falar a partir duma certa idade. Em Cabo Verde, foi a primeira geração de crianças que inventou a língua crioula, muito antes dessa idade, quando ainda eram crioulos. De contrário e se houvesse condições, nomeadamente pais conhecedores para os ensinarem, teriam aprendido português, a língua dominante e praticamente a única que se falava mais mal do que bem, quando nasceram.
Nas sociedades das crianças nunca houve preconceitos, nem lutas de classes, todas as crianças sem distinção de taxa de melanina dérmica, nem de filiação e origem social, nem de religião, passaram a falar uma língua materna comum, que cresceu com elas e passou a ser uma língua de trabalho comum, depois uma língua franca no litoral africano entre o Rio Sanaga e a Serra Leoa e mais tarde teve pretensões a língua literária, com a escolarização do século vinte, já depois de se ter espalhado pelo mundo.
Mestre António Carreira (1972, Cabo Verde - Formação e Extinção duma Sociedade Escravocrata, 1460-1878, Centro de Estudos da Guiné Portuguesa, Lisboa, 344 p.) avaliou “a menos de cinquenta anos do seu achamento”, que, segundo este autor, foi à volta de 1460 (A Ilha de Santiago foi a primeira a ser achada e visitada, todas tinham sido avistadas até 1462.), a formação da língua crioula em Cabo Verde. Segundo Mestre António Carreira, essa lenta formação do crioulo teria assim durado até aos primeiros anos do século XVI. Mas, em poucas dezenas de anos, cinquenta anos, que foi o tempo, que durou o monopólio de comércio com a costa africana (1466 a 1514 ou 1518), já os lançados, representantes e despachantes dos comerciantes de Santiago tinham ensinado o crioulo como língua franca na Grande Guiné, que nessa altura era bem mais vasta do que hoje.
Na actual Pequena Guiné e Casamansa o crioulo manteve-se muito próximo do seu dialecto de Santiago Mestre António Carreira (1984, O Crioulo de Cabo Verde, surto e expansão, segunda edição, Mem Martins, 195 p.) mostrou que não havia condições sociológicas para formação do crioulo na Guiné e confirmou que o crioulo de Guiné era “sim o crioulo caboverdeano de Sotavento levado pelos colonos idos do Arquipélago” como tinha afirmado Mestre Baltazar Lopes da Silva anteriormente.
Na Gâmbia e Serra Leoa, com o advento duma nova língua dominante, cerca de um século e meio depois, o crioulo caboverdeano foi relexificado em inglês, dando duas línguas (dialectos) muito próximas, mutuamente compreendidas pelos respectivos falantes, o aku e o krio, respectivamente, que são falados pela grande maioria da população desses países e conservam gramática, expressões caboverdeanas e algum léxico de origem portuguesa, como, por exemplo, pikin para criança e kohna kohna woman para mulher livre (Peace Corps, Sierra Leone, 1985, Krio Language Manual, U. S. Government Printing Office, 1985-526-044/30228, Internet, 214 p.). Além destas, Benjamim Pinto Bull (1989, O crioulo da Guiné-Bissau: Filosofia e Sabedoria, Lisboa, Instituto de Culturta e Língua Portuguesa, Bissau, Instituto Nacional de Estudos e Pesquisa, 351 p.) indica mais três palavras do krio, que são de origem portuguesa e resistiram à relexificação inglesa. O crioulo das Ilhas dos Ídolos (Îles de Los), restos dum vulcão extinto da plataforma continental, em frente da península de Conacri (cabo de Sagres ou cabo Ledo), também sofreu a influência do inglês até 1904, data em que estas ilhas foram cedidas à França e depois, com a presença de missionários ingleses.
As crianças puseram-se a tagarelar e papear crioulo e até hoje os lusófonos monolingues nunca mais as compreenderam, o que lhes causou grandes arrelias e despautérios, ao longo duma longa história, a terminar com a perplexidade e “repugnância” de Gilberto Freyre.
O crioulo do Arquipélago de Hauai (Hawaii) nasceu por volta de 1920, pelo que o seu nascimento e desenvolvimento recente está muito bem documentado. Foi em Hauai, que o linguista inglês Derek Bickerton (2008, “Bastard” Tongues, a trailblazing linguist finds clues to our common humanity in the worl’s lowliest languages, Nova Iorque, 270 p.) esclareceu a origem das línguas crioulas e as separou dos pidgins (= algaravias ou caçanjarias) a que costumam erradamente andar ligadas na crioulística. Mostrou que o crioulo não deriva da língua de contacto pidgin, como se pensava. A geração emigrada, que falava pidgin, ou algaravia inglesa, não compreendia o crioulo, língua materna dos seus próprios filhos.
Para ilustrar o que se tem pensado (erradamente) em Cabo Verde da origem e formação do crioulo vamos dar a palavra a Jaime, personagem principal da novela Identidade de Viriato de Barros (2005, Cabo Verde, 127 p.): “Com o tempo emergiu dessa miscigenação generalizada, como que uma nova entidade étnica, o caboverdeano, que não se definia em termos de raça, mas por um conjunto de hábitos e costumes comuns, uma língua nova criada a partir desse esforço de ajustamento de parte a parte, pela simples necessidade de comunicação entre africanos e uma minoria europeia, que acabou por adoptar essa espécie de língua intermédia forjada pela população de origem africana com base na língua portuguesa, simplificando a sua estrutura gramatical e moldando a sua estrutura fonética à sua própria matriz linguística.” É o que ele pensava sobre a origem da língua e da nação caboverdeana, mas Jaime não explicava porque se chamou crioulo a essa língua nova. É que essa língua nova, que não era intermédia, nem forjada pela população de origem africana, nem de estrutura fonética moldada a uma matriz linguística pré-existente, tomou o nome dos seus primeiros falantes, as crianças de colo, que já não eram crias ou crianças de leite ou de peito, mas que ainda não tinham atingido a chamada idade da razão, num esforço de comunicar e organizar a sua sociedade pueril fraternal, desprovida de preconceitos e mal definida em termos de taxa de melanina dérmica. Essa língua foi inventada e continuou a ser falada por todas as crianças, incluindo os filhos dos patrões e os filhos dos cativos, os que tinham pais da minoria portuguesa vindos da Europa e os que tinham pais, vindos de África, das numerosas nações da Grande Guiné. Para desenvolver essa língua de gramática inata e simples as crianças recorreram às palavras portuguesas que ouviam à sua volta, repetindo-as, papagueando-as. A nova língua ficou pronta, quando a primeira geração de crianças atingiu a idade da razão e começaram umas poucas a estudar na escola ou seminário, em português, e todas a trabalhar, em crioulo.
Em Hauai, não havia escravos nem colonialismo, tratava-se de um Estado federado americano. Concentraram-se ali bruscamente, num mercado de pequenas dimensões, um elevado número de trabalhadores de múltiplas origens: Açores, Madeira, Brava, os únicos que se poderia pensar serem black americans (= americanos pretos) ou afro-americanos, pelas aparências, mas que certamente repudiariam essas designações porque, na América, os caboverdeanos eram e continuaram a ser, até hoje, caboverdeanos fora das classificações americanas pela taxa de melanina dérmica, além dos que vinham da Coreia, Japão, China e Filipinas, estes últimos falando várias línguas diferentes, etc. A geração imigrada falava algaravias de hauaiano e depois caçanjarias de inglês. A primeira geração de crianças nascidas no Arquipélago inventou o crioulo hauaiano, há menos de um século. Interessa sublinhar, que não houve ali nem escravos, nem pretos e castanhos black americans. Crioulo e escravatura levada de África para a América foram duas coisas diferentes, que convém não misturar, mas infelizmente foram misturadas pelos linguistas europeus e americanos. A origem da língua crioula não tem nada a ver com a taxa de melanina dérmica, nem com a origem africana ou outra, nem com o grau de civilização, educação e inteligência dos falantes. Em Cabo Verde, uma maioria era de origem africana, em Hauai nenhum falante era africano e até havia falantes, que falavam o crioulo de Cabo Verde com os seus filhos e deixaram algum léxico caboverdeano na nova língua. Com excepção deste léxico de uma das línguas do substrato, na estrutura da nova língua não se encontram vestígios de português, nem de japonês, nem de chinês, nem de coreano, nem de tagalá, nem das outras línguas do substrato plurilinguístico.
Antes de prosseguir esta análise da origem das línguas crioulas nas Antilhas e Caraíbas, com a ajuda dos dicionários, temos que prestar uma devida e merecida homenagem a uma filóloga, linguista caboverdeana, Maria Dulce de Oliveira Almada (Estudos de Ciências Políticas e Sociais Nº 55, Cabo Verde, Contribuição para o estudo do dialecto falado no seu arquipélago, Junta de Investigações do Ultramar, Lisboa, 1961, 166 p.) Com a sua modéstia de investigadora, adiantada trinta anos, em relação a Derek Bickerton, a intuição da doutora Maria Dulce de Oliveira Almada Duarte, orientada pelo que lhe tinham ensinado os seus mestres portugueses, levou-a a invocar a linguagem infantil para explicar certos aspectos do crioulo, que estudava (p. 23). Pena foi, que se tivesse afastado prematuramente da investigação e das universidades, para se dedicar à “luta”, ou seja à política no exílio, deixando o terreno de investigação do crioulo livre para exploração por linguistas estrangeiros e a escola crioulística portuguesa e caboverdeana, que foi a primeira e a mais adiantada, no fim do século XIX, a ficar ultrapassada pelas escolas de outros países.
Fig. 1. Professor Francisco Adolfo Coelho, (Coimbra 1847 - Carcavelos 1919)
Com efeito, o estudo das línguas crioulas, em Portugal, colocou-se na vanguarda em 1880, quando Francisco Adolfo Coelho, Professor de Glotologia, ou Linguística, como se passou a dizer mais tarde, do curso superior de letras publicou no Boletim da Sociedade de Geografia de Lisboa, 2ª Série, Nº 3, p. 129-196 o seu primeiro artigo sobre os “dialectos românicos ou neolatinos na África, Ásia e América”. Desde o início nos finais do século XIX e meados do século XX, foram integrados nesses estudos falantes e profundos conhecedores destas línguas, como Baltasar Lopes da Silvae Maria Dulce de Oliveira Almada.
Fig. 2. Baltasar Lopes da Silva, (Caleijão, São Nicolau 1907 - Lisboa 1989)
Fig. 3. Maria Dulce de Oliveira Almada Duarte tal como era quando fez a sua tese em Lisboa (Fotografia encontrada no processo Del. Porto, PR 30843 IND, NT 3930, Joaquim Alberto Chissano, José Carlos de Oliveira Sousa Horta e outros, Arquivos da Pide/DGS, Torre do Tombo, Lisboa). Quando Maria Dulce saiu dePortugal para Marrocos a PIDE mandou vigiar a sua família no Porto. Esta fotografia ficou, por engano, num arquivo da delegação da PIDE do Porto. Um segundo engano aconteceu em Cabo Verde, quando um funcionário da PIDE foi ter com o pai de Maria Dulce, mostrando-lhe uma fotografia de outra pessoa trocada por esta.
O funcionário foi-se embora envergonhado, quando depois de olhar para a fotografia que ele exibia, o pai de Maria Dulce lhe disse, que não era a sua filha.
Lamentavelmente, a PIDE impediu Mestre Baltazar de entrar como docente na Universidade de Lisboa, em 1940 e a Doutora Maria Dulce deixou os Claridosos em Cabo Verde em 1961 e foi para a “luta”, em Conacri, mesmo em frente das Ilhas dos Ídolos, um arquipélago de origem vulcânica da margem (plataforma) continental africana, onde ainda se falava crioulo. Não devia ser a primeira vez e certamente não foi a última, que a PIDE, instituição da confiança do Professor Doutor António de Oliveira Salazar, prejudicou os interesses de Portugal e dos países lusófonos, comprometendo a carreira universitária de Mestre Baltazar Lopes da Silva (entrevista a Fernando Assis Pacheco, 1988, Retratos falados: O mago Baltazar, suplemento de O Jornal, 6 a 12 de Maio de 1988, p. 20 - 25).
O Professor Francisco Adolfo Coelho dava razão a Émile Auguste Egger (1879, Observations et réflexions sur le développement de l’intelligence et du langage chez l’enfant, Mémoire lu à l’Académie des Sciences Morales et Politiques Paris, Alphonse Picard Éditeur, 72 p.; Google Books: http://archive.org/stream/observationsetr02 eggegoog/observationsetr02eggegoog_djvu.txt), que comparava a linguagem das crianças aos “dialectos” crioulos.
Para quem estiver interessado e gostar de ler francês, copiamos da página 44 da obra citada os dois parágrafos em que Émile Auguste Egger, Membre de l’Institut, descreve a linguagem duma criança francesa de 28 meses que começa a criar uma frase, para compará-la com as frases dos crioulos de léxico francês, que, sendo línguas diferentes do francês, são evidentemente estruturadas “sem nenhuma preocupação da conjugação, nem mesmo da sintaxe francesas” como escreve o autor:
«Après l'acquisition et la prise de possession des différents mots usuels de notre langue, un second progrès de l'enfant dans la pratique du langage, c'est de former une phrase par la réunion de plusieurs mots. Le premier progrès est loin d'être accompli quand déjà commence celui-ci.
A vingt-huit mois, l'enfant connaît le sens des trois mots: ouvrir, rideau et pas (négation); déjà il les rapproche avec une certaine dextérité, en les accompagnant du geste et du monosyllabe ça. «Pas ouvrir ça» signifie «la fenêtre est fermée»; «pas rideau ça» signifie «la fenêtre n'a pas de rideau». On reconnaît là ces grossières façons de parler qu'on décore parfois du nom de patois nègre, parce que les nègres de nos colonies n'empruntent guère à la langue de leurs maîtres qu'un petit nombre de vocables, les plus nécessaires, et qu'ils les accouplent, selon le strict besoin, sans aucun souci de la conjugaison et même de la syntaxe.»
Egger observou, que a criança, assim que aprende umas poucas palavras, designando objectos ou pessoas ao seu redor, começa logo a construir frases sem muita hesitação ou com “uma certa destreza”. Utiliza uma gramática inata, que é própria da sua idade e põe-se a falar espontaneamente. Quando não há ninguém a ensinar-lhe uma outra língua, a criança fala espontaneamente um crioulo, com outras crianças, nas mesmas condições. Quando os pais ou outras pessoas a corrigem e orientam, a ensinam a falar, aprende a língua destes e, nesta idade, é capaz de facilmente aprender mais do que uma língua, ao mesmo tempo.
O que é pena é que o Professor Egger, em sintonia com os preconceitos dos europeus da sua época, não estivesse agradecido aos caboverdeanos, que, na Martinica, Haiti, Reunião e outras colónias francesas tinham começado a relexificar a sua língua tornando-a mais próxima do francês e das suas façons de parler raffinées.
Mestre Francisco Adolfo Coelho acrescentou que a formação dos “dialectos” crioulos era essencialmente um fenómeno psicológico; esses “dialectos” formavam-se rapidamente para acudir à necessidade de relação. Escreveu mais que “os dialectos crioulos, indo-português e todas as formações semelhantes devem a origem à acção de leis psicológicas ou fisiológicas”, hoje diríamos neurológicas, “por toda a parte as mesmas e não às línguas anteriores dos povos em que se acham esses dialectos.” Os factos que tinha acumulado e publicado o professor Francisco Adolfo Coelho mostravam “à evidência que os caracteres essenciais desses dialectos são por toda a parte os mesmos, apesar das diferenças de raça (entenda-se hoje, cultura), de clima, das distâncias geográficas e ainda dos tempos.” Não encontrou “nenhum som das línguas indígenas”, hoje línguas do substrato, que tivesse sido “transportado para esses dialectos”.
Quando discutiu a formação da língua crioula, no segundo número de Claridade, Revista de Arte e Letras, Mestre Baltazar Lopes da Silva (Baltazar Lopes, 1936, Notas para o estudo da linguagem das ilhas, Claridade, Nº 2, Agosto de 1936, p. 5 e 10) começou por apresentar as duas teorias, que havia nessa altura, do processo de formação das línguas crioulas: (1) a dos que, como Hugo Schuchardt, da Universidade de Graz na Áustria, que foi aprender crioulo a Lisboa à escola de Mestre Francisco Adolfo Coelho com os caboverdeanos Joaquim Vieira Botelho da Costa e Custódio José Duarte (1886, O Crioulo de Cabo Verde, Breves estudos sobre o crioulo das ilhas de Cabo Verde oferecidos ao Dr. Hugo Schuchardt, Boletim da Sociedade de Geografia, 6ª Série, Nº 6, p. 325-388), Lucien Adam e P. Meyer, “consideram os crioulos meros produtos da aplicação da gramática dos idiomas indígenas a um vocabulário europeu” e (2) a sustentada por Adolfo Coelho, segundo a qual “as particularidades gramaticais dos idiomas indígenas” tinham “influído muito pouco” na “constituição essencial” dos crioulos. O conhecimento profundo, que tinha do crioulo caboverdeano, levou Mestre Baltazar Lopes da Silva a concluir que a teoria defendida por Francisco Adolfo Coelho, de quem já não chegou a ser aluno, era a única que correspondia “à realidade do problema”.
O problema da formação da língua caboverdeana estava assim colocado na base da realidade dos factos conhecidos, mas as teorias do substrato, tentando fazer derivar os crioulos das gramáticas das línguas maternas dos falantes da língua de contacto ou algaravia inicial (pidgin), reapareceram em Cabo Verde após a independência, trazidas pelos marxistas-leninistas e baseadas em puros mitos, como veremos mais adiante. Parece que tristemente e desrazoavelmente (para não dizer irracionalmente) vieram para Portugal e mantêm-se nas universidades portuguesas (Dulce Pereira, 2006, O Essencial sobre Língua Portuguesa, Crioulos de Base Portuguesa, Lisboa, Editorial Caminho S. A., 131 p.).
José Carlos Mucangana
Nota de Rodapé para Esclarecimento dos Leitores:
Os leitores de ARTILETRA, que conhecem a Fundação Amílcar Cabral, devem lá ter visto o apelido do meu avô materno, Mucangana. Naqueles tempos de idealismo e ilusões, já tínhamos saído da clandestinidade, mas queríamos lá continuar para enganar a PIDE. Foi assim que apareceram José Gilmore, pseudónimo de Holden ROBERTO, Abel Djassi, pseudónimo de Amílcar Lopes Cabral e outros. Ao apelido do meu avô materno acrescentei o meu primeiro nome próprio traduzido em macua, Issufo, para assinar artigos de jornalismo e relatórios, aos quais o Marcelino, utilizando a lei do menor esforço, acrescentava, às vezes os seus, Mahlala e Kalungano. Uma professora universitária mal informada convenceu-se que o apelido do meu avô materno era mais outro pseudónimo do Marcelino (Dalila).
Depois daqueles poucos anos de idealismo, voltei para a minha vida profissional. Tenho escrito artigos técnicos e científicos, relatórios assinados com o apelido do meu avô paterno, Horta. Quem estiver interessado, pode procurá-los na Internet.
Para evitar confusões e não misturar os géneros, volto agora a assinar temas de literatura e de história com o apelido do meu avô materno.
Desde já agradecido pela atenção dos leitores, subscreve-se, aqui, este autor José Carlos Mucangana, ao serviço de ARTILETRA e dos seus leitores
Qual é a origem do Arquipélago? Faz parte de África?
Já o grande poeta Jorge Barbosa se tinha preocupado com as origens do Arquipélago, em 1955.
Seriam
Destroços de que continente,
De que cataclismos,
De que sismos,
De que mistérios?...
estas
Ilhas perdidas
No meio do mar,
Esquecidas
Num canto do mundo,
Que as ondas embalam,
Maltratam,
Abraçam…
Hoje, muitos parecem acreditar e outros continuam a afirmar, leigos e conceituados especialistas, que o Arquipélago se encontra em África.
Jorge Querido (2011, Um demorado olhar sobre Cabo Verde, 342 p., Chiado Editora, Lisboa ou Praia?) escreve peremptoriamente: “Todas as ilhas do arquipélago caboverdiano, sem excepção, são de origem vulcânica”, esquecendo-se de que a ilha de Maio resultou dum movimento tectónico, que trouxe à superfície sedimentos pelágicos depositados a cerca de 2.000 m de profundidade (Frederico Machado, 1967, Geologia das ilhas de Cabo Verde, Junta de Investigações do Ultramar, Lisboa, 25 p.). Depois afirma que as “dez ilhas e algumas ilhotas” (oito mais precisamente) “se situam sobre a vertente da plataforma continental africana”. Poucas linhas mais adiante, lembra que “as ilhas estão separadas da costa africana por fundos que, em muitos pontos, ultrapassam largamente os 3.500 metros” de profundidade. Como é que Jorge Querido, um conceituado especialista na matéria, quer prolongar a plataforma africana ou a sua “vertente” para ocidente destes fundos oceânicos, onde se encontram as dez ilhas e oito ilhéus do arquipélago? Esses fundos oceânicos separam obviamente o Arquipélago do continente a que ele chama “nosso” e o Arquipélago está fora do continente de Jorge Querido.
Desde o século XIX, os geólogos nunca consideraram os arquipélagos da Madeira e de Cabo Verde como uma dependência de África, atendendo à grande profundidade dos mares que os separam deste continente (Fig. 1). Esta conclusão foi tirada muito antes do aparecimento da teoria tectónica de placas, que só veio confirmá-la e procurar explicá-la.
Fig. 1. O Arquipélago de Cabo Verde no Oceano Atlântico a 450 – 600 km de distância do continente mais próximo (P. Torres, L. C. Silva, J. Munhá, R. Caldeira, J. Mata e C. Tassinari, 2010, Petrology and Geochemistry of lavas from Sal Island: Implications for the variability of the Cape Verde magmatism, Comunicações Geológicas, Nº 97, Laboratório Nacional de Energia e Geologia, Amadora, Portugal 20 p.)
Os arquipélagos da Madeira, Canárias e Cabo Verde são de formação mais antiga do que o dos Açores. Mas, vejamos primeiro o que são ilhas vulcânicas. Trata-se de vulcões submarinos, que são muito numerosos, dando relevo aos fundos oceânicos e às planícies abissais. Só alguns crescem e se levantam acima do nível das águas para formar ilhas. Há ilhas vulcânicas de dois tipos. As do primeiro tipo, como os Açores e a Islândia e a ilha de Santa Helena, pertencem a uma dorsal vulcânica médio-oceânica, ou cordilheira de montanhas submarinas, que divide os oceanos em duas bacias. Nesta dorsal a crosta ou litosfera oceânica abre-se, acompanhando o afastamento dos dois continentes dum lado e outro do oceano e deixando sair lavas basálticas, que se vão solidificando para formar nova litosfera oceânica dum lado e doutro da dorsal. Essa nova crosta oceânica ocupa assim o espaço libertado pelo afastamento dos dois novos continentes, um do outro, no nosso caso o Brasil ou América do Sul a ocidente e a África a oriente.
Fig. 2. Num corte do globo terrestre (Wikipédia), pode ver-se que, à volta duma esfera muito densa, chamada núcleo, vem o manto de 2000 km de espessura e, por cima deste, à superfície, a litosfera rochosa, que pode ser muito delgada (geralmente 7 a 8 km de espessura) no fundo dos oceanos ou mais espessa, melhor menos delgada, com cerca de 30 km de espessura nos continentes. As dorsais vulcânicas médio-oceânicas dividem a litosfera em placas grandes e pequenas. Estas dorsais expulsam magma basáltico, que faz crescer as placas e as empurra e faz deslizar sobre o manto, umas contra as outras e ainda umas por debaixo das outras, perdendo-se no manto, a chamada subducção. Estes movimentos tectónicos das placas de litosfera rochosa são acompanhados de vulcanismo, nas faixas de tracção, que as separam e fracturam, como nas (1) dorsais médio-oceânicas e nos (2) riftes continentais, exemplo o grande rifte africano e nas faixas de (3) subducção, como a África a passar por debaixo da Europa fechando o Mediterrâneo. Há ainda faixas de compressão como o sub continente indiano contra a Ásia, levantando os Himalaias e o Tibete. A litosfera oceânica delgada é formada por rochas basálticas de composição química dita básica, ao passo que a litosfera continental é formada por rochas de composição química preponderantemente ácida, sendo os granitos as rochas plutónicas mais representadas e características dos continentes acompanhados pelas rochas metamórficas.
Há ainda outro tipo de ilhas vulcânicas, que resultam da passagem das placas de litosfera oceânica, deslizando sobre o manto (Fig. 2), por cima de pontos (na realidade zonas de mais de 100 km de dimensões horizontais) de acumulação de calor neste manto. Estes pontos quentes ou penachos de calor, fundem as rochas do manto e da litosfera oceânica, dando origem a câmaras de magma, que se descarrega periodicamente, rasgando a litosfera oceânica e formando arquipélagos de ilhas alinhadas. Estão neste caso o arquipélago de Hauai, onde o movimento da placa oceânica em relação ao manto é rápido (cerca de 10 cm/ano), assim como os arquipélagos das Canárias, Madeira e Cabo Verde, que se deslocam mais devagar, a menos de 1 ou 2 cm/ano relativamente ao ponto quente correspondente do manto. Todos eles são formados por montanhas submarinas e ilhas alinhadas em cadeias, com o respectivo ponto quente do manto, cuja posição é conhecida ou extrapolada.
Em Cabo Verde, acima do nível do mar, há duas cadeias de ilhas alinhadas, a de Barlavento no Norte (Santo Antão, São Vicente, Santa Luzia, São Nicolau, esta alongada no sentido do alinhamento, Boavista e Sal, esta fora do alinhamento e a Norte deste) e a de Sotavento no Sul (Brava, Fogo, Santiago e Maio). Os eixos das duas cadeias fazem um ângulo inferior a cerca de 40º, cujo vértice está a 21º 45’ de longitude W e 15º 40’ de latitude N. Neste vértice encontra-se um monte submarino, chamado Monte Cabo Verde (Fig. 1). As ilhas de Maio, Santiago ou Boavista e Sal, com o parcel de João Valente, uma antiga ilha erodida, entre Maio e Boavista, a 20 m de profundidade, alinham-se grosseiramente num terceiro eixo de SSSW-NNNE de fraca curvatura. Trata-se de uma terceira cadeia, cortando o ângulo agudo das outras duas cadeias e dando ao conjunto do Arquipélago a forma duma ferradura aberta para ocidente.
O alinhamento das ilhas em duas cadeias diferentes e uma terceira cadeia de que faz parte o parcel de João Valente indica que o movimento da litosfera oceânica não tem sido uma simples translação, houve rotação e mudança de direcção da translação da placa oceânica, quando o continente africano e a Peninsula Arábica esbarraram com a grande placa euro asiática a Norte. A abertura do Grande Rifte ou sistema de falhas dos lagos da África Oriental também certamente perturbou este movimento. O terceiro alinhamento das ilhas em arco de círculo pode ser o resultado duma tectónica profunda e representar a intersecção do globo com uma falha sub vertical com pendente para ocidente.
As ilhas de Sal e Maio na terceira cadeia são as mais antigas. A sua formação, sem contar os complexos de base o os seus socos, inacessíveis à colheita directa de amostras para datação, iniciou-se há cerca de 17 Ma (milhões de anos). A ilha de Maio não apresenta vulcanismo recente, contrariamente a todas as outras, confirmando que a sua origem é tectónica e não vulcânica. Está num processo de erosão, que é compensado por um movimento de levantamento vertical (José Ricardo Ramalho, Rui Quartau, Alan Trenhaile, George Helffrich, José Madeira, Sónia S. D. S. Victória e Daniela N. Schmidt, Why have the old Cape Verde islands remained above sea level? Insights from field data and wave erosion modeling, http://www.webpages.uidaho. edu/~dgeist/Chapman/Ramalho _AGU_Chapman_erosion.pdf). A formação das outras ilhas datadas não vai além de 6 Ma (Santiago, São Nicolau, São Vicente) ou 3 Ma para Santo Antão. A ilha do Fogo com o seu vulcão activo é a mais jovem e está em fase de construção. A idade das ilhas de Boavista, Santa Luzia e Brava ainda não é bem conhecida, só foi extrapolada das ilhas mais próximas (Ricardo Alexandre dos Santos Ramalho, 2011, Building of the Cape Verde Islands, Springer Verlag, 207 p.).
Todas estas ilhas estão no cume e no centro de uma elevação arredondada ou abóbada dos fundos submarinos, que é a maior do mundo com mais de 1500 m de altura e um diâmetro lateral de cerca de 1500 km. A espessura da placa de litosfera oceânica de 7 km entre as ilhas é normal, trata-se duma abóbada ou inchamento do próprio manto. A estratigrafia da ilha de Maio indica que o movimento de elevação desta abóbada atingiu 2000 m no fim do Mioceno e início do Oligoceno e que esta elevação foi contemporânea do início de actividade do ponto quente. Ao sul desta elevação, encontra-se a planície abissal da Gâmbia e a pequena abóbada da Serra Leoa, ao norte, a planície abissal entre Cabo Verde e Madeira. A ocidente, as duas planícies abissais unem-se na planície abissal de Cabo Verde, que se prolonga até à dorsal médio-atlântica e a oriente a abóbada de Cabo Verde com a sua litosfera oceânica esbarra com o continente africano ou prolonga-se por debaixo deste.
O movimento lento e complicado da placa oceânica praticamente estacionária em relação ao penacho de calor, ou ponto quente do manto e as rupturas tectónicas e movimentos verticais desta placa, são os dois factores, que combinados podem explicar a origem das ilhas e a forma do arquipélago. A origem das ilhas não é puramente vulcânica, há intervenção da tectónica profunda e da sedimentação no fundo oceânico, o Arquipélago não é simplesmente de origem vulcânica, além de rochas vulcânicas, as ilhas compreendem rochas sedimentares antigas e depositadas a grandes profundidades, que são visíveis na ilha de Maio. Em Santiago, Boavista, Maio, São Vicente, Brava, encontram-se rochas plutónicas macrocristalinas alcalinas, pobres em sílica e também gabros. Citemos ainda os carbonatitos das ilhas Brava, Fogo e Santiago (A. Ferreira, 11.11.2016, Comentário, http://coral-vermelho.blogspot.pt/) para sublinhar a complexidade litológica das ilhas. Faltam porém, em todas as ilhas, as rochas ácidas graníticas e metamórficas características das litosferas continentais (Ramalho, 2011). Estas ilhas não têm nada que se assemelhe a um continente. Contrariamente a Madagascar, Cabo Verde não é um pedaço de continente, um pequeno continente, que teria ficado entre a África e o Brasil, quando o continente primitivo, Gondwana se fracturou e desintegrou, ou que se teria separado tardiamente da África. Também não é um micro-continente, como o Arquipélago do Almirante, onde se encontra a República de Seychelles do nome dum deputado francês, o qual se separou de Madagascar com a Índia, para depois se separar desta última e compreende um conjunto de ilhas graníticas. Cabo Verde será talvez um micro-continente embrionário, uma pequena placa, que falhou no seu desenvolvimento, ficou incompleta, sem crosta continental e não chegou a ser placa continental. A tectónica de placas não é tão simples como parece na sua apresentação esquemática. As placas nem sempre deslizam sobre uma estenosfera, ou manto superior, bem lubrificada, a superfície de contacto nem sempre é uniforme mecanicamente (viscosidade, resistência à ruptura) e quimicamente, compreende asperidades variáveis, é rugosa, pedaços da litosfera continental inferior podem ser arrastados à superfície da estenosfera, como talvez tenha acontecido no Arquipélago e sua abóbada oceânica.
As ilhas Canárias estão só a cerca de 100 km da plataforma ou margem do continente africano, porém não pertencem ao continente, nem estão relacionadas com a tectónica norte-africana, nem com o grande acidente tectónico activo de Agadir, sensivelmente alinhado com elas (J. C. Carracedo et al., 1998, Hot spot volcanism close to a passive continental margin: the Canary islands, Geol. Mag., 135, 5, p. 591-604). As ilhas de Cabo Verde encontram-se a distâncias de 450 a 600 km do continente mais próximo, que é o africano. Estão mais longe de África do que a Madeira, que os madeirenses nunca pretenderam considerar como fazendo parte do continente africano.
Fig. 3. A plataforma continental prolonga o continente sob as águas do oceano até uma profundidade de 200 m, com larguras variáveis de alguns a poucas dezenas de quilómetros. O continente acaba por um talude íngreme entre 200 m e mais de 3000 m de profundidade (Wikipédia).
A plataforma ou margem continental da África (Fig. 3) é estreita e só se alarga na África do Sul e no canal de Moçambique (Fig. 4). A sua largura é de 20-25 km, em média, ao longo da costa Atlântica. Como é que Jorge Querido desejaria encaixar o arquipélago completo de dez ilhas e oito ilhéus, mais um parcel e um monte submarino na estreita plataforma do “seu” continente e no talude ainda mais estreito desta plataforma? As ilhas grandes não cabem lá, quanto menos o arquipélago! Só as “ilhotas” lá caberiam, com as suas pequenas dimensões, o arquipélago só lá cabe em mitos delirantes ou disparates irreflectidos..., copiados das autoridades políticas marxistas-leninistas.
Fig. 4. Mapa simplificado do continente africano com a sua plataforma continental geralmente estreita (Wikipédia)
Felizmente, os recursos do oceano à volta de Cabo Verde pertencem à República de Cabo Verde, à volta do Arquipélago. Não há razão para disputa com os distantes países africanos e ainda mais distantes países americanos ou europeus. Os países da África Ocidental exercem as suas jurisdições nos troços de plataforma continental delimitados ou a delimitar relativamente às suas fronteiras terrestres, que frequentemente não foram validadas por ambas as partes, como é o caso da Guiné, por exemplo. No caso de Cabo Verde não há fronteiras terrestres, a sua jurisdição para oriente irá até metade da distância à África.
Cabo Verde não está, nem nunca esteve em África. Com efeito e resumidamente, o estudo da sua geologia, geoquímica e geofísica só tem comprovado que o arquipélago de Cabo Verde, como os arquipélagos da Madeira e das Canárias, faz parte do Oceano Atlântico, pertence a uma placa da litosfera basáltica oceânica, não faz parte de nenhuma placa continental. Está fora do continente africano e da sua estreita plataforma e separado desta por profundidades superiores a 3.500 m, como atinadamente lembrou Jorge Querido.
No Oceano Índico, a situação é mais diversificada. A grande ilha de Madagascar é um pedaço de continente ou um pequeno continente, que se separou da África, mais precisamente de Moçambique, a seguir à Austrália e ao Subcontinente Indiano. É de origem tectónica, com vulcanismo e rochas vulcânicas na sua periferia, que são cicatrizes da ruptura por tracção do grande continente pré-existente, o continente de Gondwana. O Arquipélago do Almirante é um pedaço de continente ainda mais pequeno. A formação dos arquipélagos das Mascarenhas e do Cômoro está ligada a pontos quentes ou penachos de calor do manto.
Está assim bem estudado e documentado, que as dez ilhas, oito ilhéus, um parcel e um monte submarino do nosso Arquipélago, pertencem ao nosso Oceano Atlântico. Contrariamente à linguística, o estudo da geologia do Arquipélago não foi descurado, nem politizado pelos investigadores caboverdeanos e portugueses, que trabalham em equipa e se apoiam mutuamente. Foi recentemente publicado o livro acima referido (Ramalho, 2011), que reúne e interpreta os conhecimentos adquiridos até à data sobre a formação deste arquipélago oceânico. Mas, a formação das ilhas e do arquipélago ainda não foi bem compreendida, as investigações continuam. Tampouco ainda não foi bem estudada a tectónica da África Ocidental, que aparenta estabilidade, mas apresenta uma sismicidade notável, com movimentos horizontais entre compartimentos separados por falhas e movimentos verticais, com as rias da Guiné a afundarem-se, enquanto se eleva o Futa Djalom. Serão estudos apaixonantes a fazer pelas novas gerações de geólogos caboverdeanos, dispostos a esquecerem os mitos e porem-se a trabalhar para acertar o relógio caboverdeano, com já diziam os Claridosos (Jorge Barbosa, 1936, citado por Arnaldo França, em Baltasar Lopes, 2010, Escritos Filológicos e Outros Ensaios, Praia, 365 p.), ou melhor, no caso da geologia, mantê-lo acertado e, quem sabe, adiantá-lo, tudo depende deles. A longa história comum da Guiné e de Cabo Verde talvez possa ser reatada pelo trabalho dos geólogos e outros profissionais dos dois países, porque a luta dum só partido e duas nações dos políticos marxistas-leninistas falhou.
Nas nossas discussões do metro de Paris, em 1960, e nas numerosas discussões, que se seguiram, em Leipzig, na Alemanha, em Rebate, Marrocos e em Argel, até 1965, uma das principais preocupações do meu grande e saudoso amigo Abílio Monteiro Duarte era arrasar os mitos. Havia, nessa época distante, mitos baseados mal ou bem na história, mas havia muitos e grandes preconceitos sociais erigidos em mitos, como o grande disparate da incapacidade intelectual correlacionada com a taxa de melanina dérmica, que nunca chamou a atenção dos caboverdeanos, nem os preocupou. Esses preconceitos, disparates e mitos do passado estão hoje muito abalados e reduzidos a escombros e resíduos, mas infelizmente surgiram outros, como aquele dum candidato a presidente de Cabo Verde, que, durante a sua campanha eleitoral, desejaria governar com os dois pés fincados em África, proeza que nunca conseguiria fazer, a não ser que um golpe de estado à moda africana o enviasse para o exílio, em Dacar (Fig. 5). Graças a Deus, isso parece impossível, porque Cabo Verde não é África. Contra tal golpe de estado, “até as pedras das calçadas se levantariam”. Foi assim que Mestre Baltazar Lopes da Silva comentou uma observação do meu amigo jurisconsulto guineense João Cruz Pinto sobre a pena de morte do código militar do seu país africano e a sua possível aplicação em Cabo Verde (comunicação verbal do último, Lisboa, Outubro de 2013).
Fig 5. Jerry John Rawlings (Wikipédia), filho dum farmacêutico escocês e de mãe comerciante jeje (= ewe, em língua jeje), inaugurou a quarta república como presidente do Ghana (1993-2001). Depois dum primeiro golpe de estado (1979), foi preso, condenado à morte por um tribunal militar e libertado pelos soldados, antes de ser executado. Combateu impiedosamente a classe dirigente predadora (Professor Ibrahima Thioub, Universidade Cheik Anta Diop, Dacar, 2010, L’Afrique et ses élites prédatrices, Le Monde, 1.6.2010, http://www. guineelibre.com/article-l-afrique-et-ses-elites-predatrices-pr-ibrahima-thioub-683193. html), que se tinha instalado no poder durante a primeira república de Kwame Nkrumah (1960-66) e desgovernado o país durante a segunda e terceira repúblicas (1966-79). Os generais e ministros mais corruptos foram passados pelas armas, incluindo um tio do Presidente, que tinha entrado no novo governo por cunha da família materna e que logo tinha aproveitado para ganhar dinheiro ilicitamente. Ao acabar o seu segundo mandato, deixou o Ghana no caminho do desenvolvimento económico e social bem à frente dos outros países da África Ocidental.
Falta-nos o Padre António Brásio, que estava “muito habituado” a essa tarefa, com muita prática de “demolir mitos históricos e (…) derribar estátuas de bronze… com pés de barro”, (Padre António Duarte Brásio, 1960, Santiago escala imperial, Cabo Verde,Boletim de Propaganda e Informação, Ano XI, Nº 131, p. 28 a 32, lido na rádio a 14.6.1960). Vamos inspirar-nos dele, porque esta tarefa se tornou urgente depois de quatro décadas da independência do Estado-Nação caboverdeano, um estado feito à pressa, durante a guerra-fria e uma nação, que se tem afirmado e enriquecido durante quase sessenta décadas, mas cuja história tem sido escondida pelos marxistas-leninistas e não foi ensinada às crianças durante as quatro últimas décadas. Vamos aqui lançar mãos à obra, certos que seremos apoiados pelos caboverdeanos, cada vez mais numerosos, que já se entusiasmaram pelos “estudos históricos caboverdeanos” com tanto “êxito” como os que se têm entusiasmado pela “literatura de ficção e a poesia” (Padre António Duarte Brásio, 14.6.1960).
Para desfraldar ou tentar fazer sobreviver o mito de que Cabo Verde faz parte de África, vimos mais acima, que Jorge Querido se embrenhou numa contradição na mesma e única página do seu livro (p. 25), que trata de geologia. Infelizmente, na geografia, houve e continua a haver talvez pior. António Leão Correia e Silva, ilustre discípulo de Mestre António Carreira, intitulou o seu livro Histórias de um Sahel Insular (Praia, 2ª. Edição, Agosto de 1996, Edições Spleen, Praia, 175 páginas). Dois anos depois (Vários Autores, 1998, Descoberta das Ilhas de Cabo Verde, Arquivo Histórico Nacional, Praia, 259 p.), José Maria Semedo intitulou a sua contribuição para o livro citado “Um arquipélago do Sahel”, que considera ser de origem vulcânica. No primeiro caso, trata-se de um estudo histórico e socio-económico de Cabo Verde, em que o autor, com muito mérito, procura averiguar, quais os recursos do Arquipélago e da sua situação geográfica, que poderão ser utilizados no desenvolvimento económico, um problema tão antigo como a colonização do Arquipélago, que já mereceu soluções bem acertadas, em algumas épocas da sua história, nomeadamente logo no início da colonização, e que continua a ser da maior actualidade. Mas, no âmbito da discussão dum problema tão importante e sério, colocar ilhas no sahel, só pode ser anedota ou grande disparate.
Porque, se são ilhas, não podem ser litoral, que é só isso, que a palavra árabe sahel quer dizer, litoral semi-desértico do deserto do Sahara a norte e a sul do mesmo, colinas do sahel, em Argel, ou colinas do litoral húmido do mar mediterrânico. Sahel não é um topónimo geográfico, não é um termo de climatologia ou meteorologia. Esta palavra árabe significa litoral ou margem (PAIGC, 1974, História da Guiné e Ilhas de Cabo Verde, Lisboa, Afrontamento, 185 p.).
Cabo Verde encontra-se na zona tropical e o seu clima oceânico sub-húmido a semi-árido é determinado pelas variações da zona de convergência intertropical, que também determinam a aridez do Nordeste brasileiro. Os efeitos da variação desta zona de convergência fazem-se sentir no Oceano Atlântico a ocidente e a oriente de Cabo Verde e ainda nos outros oceanos (Ana Bárbara Coutinho de Melo, Paulo Nobre, David Mendes e Marcus Jorge Bottino, 2002, A zona de convergência intertropical sobre o Oceano Atlântico, Climatologia XII, Congresso Brasileiro de Meteorologia, Foz do Iguaçu - PR, p. 682-6). Porque é que Cabo Verde não seria um Nordeste insular, se tivesse como referência o Brasil e o Atlântico tropical, sem disparate, nem anedota, porque é que há de ter, por referência, a África, à custa de contradições e disparates? A referência à África estava na moda, em 1960, um tempo que já lá vai, assim como a unidade da “luta” dos povos da Guiné e Cabo Verde, que tinha uma base na história e não era uma simples utopia, como alguns sugeriram (António Tomás, 2007, O fazedor de utopias, uma biografia de Amílcar Cabral, Tinta da China, Lisboa, 344 p.), mas infelizmente falhou, custando centenas de vidas guineenses (Aristides Pereira, p. 157, 173, 177, entrevistado por José Vicente Lopes, 2013, Aristides Pereira: Minha Vida Nossa História, Praia, Spleen Edições, 492 p.), entre as quais a do seu principal promotor, o engenheiro agrónomo Amílcar Lopes Cabral, um massacre no continente, que só parou graças à enérgica intervenção de Abílio Duarte e que deixou a Pequena Guiné numa situação trágica e tragicómica até hoje.
As ilhas do arquipélago na plataforma continental africana, se lá coubessem, ainda teriam as pernas dentro de água…, mas na margem ou litoral semidesértico do grande deserto africano, com os pés enxutos, deixavam de ser ilhas… Uma contradição insolúvel numa página do livro do primeiro autor e outra no título das obras dos dois outros autores, todos levados pela premissa errada de que Cabo Verde é África, um novo mito sem fundamento algum.
A vantagem desta referência ou mito africano é, hoje em dia, só dos políticos, que medem o seu desempenho pelos índices económicos africanos (José Maria das Neves, 2015, Cabo Verde, Gestão das Impossibilidades, Lisboa, Rosa de Porcelana Editora, 134 p.). Por enquanto, estes índices estão abaixo dos índices de Cabo Verde. Só por enquanto, porque os africanos estão a trabalhar nas suas Áfricas continentais e qualidades de bons e abnegados trabalhadores nunca ninguém lhas negou, com o seu trabalho cativo e forro fizeram as Américas dos outros e, em liberdade e dignidade, hão de fazer as suas próprias Áfricas, são capazes de trabalhar nas condições mais duras, sem se queixarem e sem perderem a alegria de viver. Se, entretanto, os políticos continuam a embalar os caboverdeanos com mitos e a ignorar os índices de desenvolvimento do Brasil, países asiáticos e outros, incluindo a África do Sul e a Rússia, as ilhas do nordeste do Atlântico tropical ficarão atrasadas, como Portugal já ficou, ao encostar-se à Europa dos seus sonhos e pesadelos, ou melhor da moda, que passa como o vento.
Cabo Verde foi, na história, a sede da primeira diocese africana dos trópicos criada por bula papal em 31 de Janeiro de 1533. Nessa altura, a Grande Guiné era a colónia de povoamento de Cabo Verde, como veremos mais adiante e os Rios da Guiné ou Guiné de Cabo Verde eram administrados por um governador residente em Santiago. Depois da independência, depois de Cabo Verde ter sido arrastado politicamente para o mito da África, pelas lestadas da “revolução” africana e do marxismo-leninismo e por pura e desnecessária preocupação com a moda, a diocese de Cabo Verde, hoje as duas dioceses de Cabo Verde, ficaram a fazer parte duma conferência episcopal de língua francesa, sedeada na capital dum país muçulmano do continente vizinho, onde reside também o Núncio Apostólico. Essa conferência episcopal até podia utilizar a língua crioula com antiquíssimas tradições de catequização desde a África até à Ásia. Já era utilizada na catequese dos escravos, pelo menos desde a segunda metade do século XVII (Daniel A. Pereira, 2014, Um Olhar sobre Cabo Verde, História para Jovens, Brasília, Thesaurus, 294 p.), foi utilizada na Ásia por são Francisco Xavier, antes do século XVII. É comum a todos os países que integra, mas a conferência episcopal utiliza a língua dum país europeu. Falta em Cabo Verde uma terceira diocese, uma diocese com sede, que tudo indica que será na Ribeira Brava de São Nicolau, onde já funcionou uma catedral de 1866 a 1940, com um seminário, no qual se formaram os Claridosos Baltazar Lopes da Silva, José Lopes e António Aurélio Gonçalves, entre muitos outros (Frederico Cerrone, 1983, História da Igreja de Cabo Verde, Apontamentos, 450 anos da Igreja em Cabo Verde, Praia, 78p.).
Cabo Verde precisa de aeroportos internacionais para o seu desenvolvimento económico, por imperativos da sua posição geográfica e da sua nação espalhada pelo mundo, que não pode alienar. Foi bater à porta do banco regional, Banco Africano de Desenvolvimento (BAfD), o qual financiou um aeroporto regional na Praia. À data da sua inauguração, a capacidade do Aeroporto da Praia estava praticamente esgotada e o tráfego aéreo continuava a crescer. A capacidade do aeroporto da Praia, cidade capital, não chega para dar vazão aos passageiros de dois voos de longo curso, que chegassem à mesma hora logo de manhã ou ao crepúsculo, um da América e o outro da Europa. Fechando os olhos às realidades e com falta de recursos financeiros, o BAfD tem-se demorado em decidir se vai ou não financiar um novo terminal de passageiros com capacidade pelo menos dupla da do terminal existente no aeroporto, que financiou há poucos anos. Financiamentos repetitivos e duplicados antes do fim da vida de serviço das infraestruturas é capital que fica a faltar para o desenvolvimento do país.
Assim, além de fazerem sonhar, em vez de trabalhar, os novos mitos têm custado dinheiro do contribuinte caboverdeano, que ficou a faltar para o desenvolvimento. Oxalá, os dirigentes da nomenclatura caboverdeana reconsiderem o mito africano e se ponham a planejar eficientemente e a trabalhar denodadamente para fazer do Arquipélago um rebocador do desenvolvimento das Áfricas, como tem acontecido na longa história caboverdeana de cinco séculos e meio e como fazem já, hoje em dia, certas ilhas e arquipélagos do Oceano Índico, como a República da Maurícia.
O general Pedro Verona Pires já há quinze anos se referiu a “esse mito que é a África”, quando foi entrevistado, em Fevereiro de 2000, por Gabriel Fernandes (2002, A diluição da África, uma interpretação da saga identitária cabo-verdiana no panorama político (pós)colonial, Florianópolis, Editora da Universidade Federal de Santa Catarina, 253 p.).
O Professor José Medeiros Ferreira, no seu prefácio ao livro de António Correia e Silva (2014, Dilemas do Poder na História de Cabo Verde, Lisboa, Rosa de Porcelana editora, 206 p.) escreveu acertadamente que Cabo Verde “não se pode dar ao luxo de errar nas escolhas e perder recursos”.
Fragmento da carta ao Padre António Fernandes, Confessor do Príncipe D. Teodósio escrita, em Santiago, a 25 de Dezembro de 1652
É o caso que nesta ilha de Santiago, cabeça de Cabo Verde, há mais de sessenta mil almas, e nas outras ilhas, que são oito ou dez, outras tantas, e todas elas estão em extrema necessidade espiritual; porque não há religiosos de nenhuma religião que as cultivem, e os párocos são mui poucos e mui pouco zelosos, sendo o natural da gente o mais disposto que há, entre todas as nações das novas conquistas (*), para se imprimir neles tudo o que lhes ensinarem. São todos pretos, mas somente neste acidente se distinguem dos Europeus. Têm grande juízo e habilidade, e toda a política que cabe em gente sem fé e sem muitas riquezas, que vem a ser o que ensina a natureza.
Há aqui clérigos e cónegos tão negros como azeviche, mas tão compostos, tão autorizados, tão doutos, tão grandes músicos, tão discretos e bem morigerados, que podem fazer inveja aos que lá vemos nas nossas catedrais. Enfim a disposição da gente é qual se pode desejar, e o número infinito; porque além das cento e vinte mil almas que há nestas ilhas, a costa, que lhe corresponde em Guiné e pertence a este mesmo bispado, e só dista daqui jornada de quatro ou cinco dias, é de mais de quatrocentas léguas de comprido, nas quais se conta a gente não por milhares senão por milhões de gentios. Os que ali vivem ainda ficam aquém da verdade, por mais que pareça encarecimento: porque a gente é sem número, toda da mesma índole e disposição dos das ilhas, porque vivem todos os que as habitam sem idolatria nem ritos gentílicos, que façam dificultosa a conversão, antes com grande desejo, em todos os que têm mais comércio com os Portugueses, de receberem nossa santa fé e se baptizarem, como com efeito têm feito muitos; mas, por falta de quem os catequize e ensine, não se vêem entre eles mais rastos de cristandade que algumas cruzes nas suas povoações, e os nomes dos santos, e sobrenomes de Barreira, o qual se conserva por grande honra entre os principais delas, por reverência e memória do padre Baltazar Barreira, que foi aquele grande missionário da Serra Leoa, que, sendo tanto para imitar, não teve nenhum que o seguisse, nem levasse adiante o que ele começou. E assim estão indo ao inferno todas as horas infinidade de almas de adultos, e deixando de ir ao Céu infinitas de inocentes, todas por falta de doutrina e baptismo, sendo obrigados a prover de ministros evangélicos todas estas costas e conquistas os príncipes de um Reino, em que tanta parte de vassalos são eclesiásticos, e se ocupam nos bandos e ambições, que tão esquecidos os traz de suas almas e das alheias; mas tudo nasce dos mesmos princípios.
Padre António Vieira, Obras Escolhidas, prefácio e notas de António Sérgio e Hernâni Cidade, Volume II, Cartas II, segunda edição, 1997, Livraria Sá da Costa Editora, Lisboa, p. 193-4
(*) Cabo Verde não foi uma conquista. O Padre António Vieira refere-se aos novos territórios conquistados ou ocupados e administrados pelos portugueses, incluindo os portugueses caboverdeanos, para comparação.
A 25 de Dezembro de 1652, há mais de trezentos e cinquenta anos, na sua segunda viagem de Portugal para o Brasil, o Padre António Vieira fez escala em Santiago, Cabo Verde, onde desembarcou na Ribeira Grande com outros missionários e se demorou uma semana de 20 a 26 de Dezembro de 1652 (Padre António Brásio, 1946, O Padre António Vieira e as Missões de Cabo Verde, Portugal em África, Revista de Cultura Missionária, Segunda Série, Ano III, Número 17, Set. – Out. p. 298 - 305). Além de ter feito um sermão, deixou-nos este subsídio para a caboverdeanidade extraído duma carta, que escreveu na Cidade Velha. Não achou diferença entre os portugueses deste arquipélago do Atlântico tropical e os portugueses europeus, que não fosse aparente. Para ele, já nesses tempos distantes, os caboverdeanos eram europeus, mais concretamente portugueses. Para ele, mesmo falando a sua própria língua materna, os caboverdeanos não deixavam de ser portugueses e não tinham necessidade de se lhes ensinar a língua portuguesa, porque “todos a seu modo” a falavam já.
O Padre António Vieira da Companhia de Jesus, que estava de regresso à sua missão no Brasil, falava correntemente e fazia sermões na língua dos índios do Maranhão, que não considerava serem portugueses. O Maranhão e o Brasil eram uma conquista, onde os jesuítas defenderam os direitos e a dignidade dos índios vencidos. Cabo Verde não era uma conquista, foi uma colónia como a Madeira e os Açores, mas povoada, não só por colonos portugueses da Europa e da Madeira, como também por uma maioria de colonos africanos de variadíssimas etnias e nacionalidades.
Para desenvolver a ilha de Santiago e outras ilhas de Sotavento, os habitantes de Santiago foram angariar mão-de-obra ao continente africano vizinho, onde os potentados muçulmanos escravizavam os prisioneiros de guerra e os povos pagãos e onde havia uma multi-secular tradição de venda regional e exportação de escravos fomentada pelos árabes, ou mesmo anterior a estes. Traziam-nos do interior do continente e vendiam-nos no litoral entre o rio Sanaga, que separava os mouros brancos dos jalofos pretos, e a Serra Leoa, onde rugiam as trovoadas. O Rei de Portugal tinha concedido o monopólio do comércio de todo esse litoral africano de mais de quatrocentas léguas de comprido, ou cerca de 1.200 km de costa recortada por ansas, cabos, penínsulas, estuários, canais, ilhas e numerosos rios, aos habitantes de Santiago, a primeira ilha do Arquipélago a ser povoada e aquela que foi o berço da língua crioula e da nação caboverdeana, um ramo da nação portuguesa.
Depois das guerras, separações das famílias, maus tratos, falta de alimentação e longas caminhadas do interior até ao litoral amarrados uns aos outros por correntes, cordas, cadeados e cangas, a chegada a Cabo Verde, onde tinham trabalho, alojamento, roupa e alimentação, além de assistência religiosa e onde podiam constituir família era certamente uma vida nova para esses infelizes escravos africanos. Os habitantes de Santiago e os proprietários, em Santiago e nas outras ilhas de Sotavento, casaram-se, tiveram filhos com as escravas mais prendadas. A partir da primeira geração de crianças nascidas em Santiago, os escravos e os não escravos foram todos integrados na emergente nação caboverdeana. Os escravos boçais, que iam chegando depois, foram sendo assimilados na nação caboverdeana, tornando-se ladinos.
Em Cabo Verde não houve vencidos, nem vencedores, nasceu e desenvolveu-se uma sociedade mestiça e uma nação nova, com a sua própria língua materna e língua de trabalho, ao lado do português. Este era estudado e praticado pela minoria escolarizada dos caboverdeanos, que foi aumentando ao longo dos séculos, tornando-os bilingues. Nesta sociedade homogénea e na sua diversidade de aparência, os movimentos verticais, pela educação e pelo trabalho e iniciativas individuais e familiares, modificaram a estratificação entre trabalhadores de origem africana e dirigentes de origem europeia, mesmo muito antes da abolição da escravatura. Os proprietários e dirigentes, ficaram a ser designados por “gente branca” independentemente da taxa de melanina dérmica, que se modificou de geração em geração (Baltasar Lopes da Silva, Escritos Filológicos e outros Ensaios, Instituto da Biblioteca Nacional e do Livro, Praia, 2010, p. 135).
Segundo atesta o Padre António Vieira, parece que em menos de dois séculos, estando ainda longe de ser abolida a escravatura, a homogeneização vertical já tinha produzido notáveis efeitos, sobretudo graças à acção da Igreja. Ele encontrou, nas pequenas igrejas de Cabo Verde, clérigos de fazer inveja aos das catedrais de Portugal e da Europa, que bem conhecia e acabava de percorrer, como agente diplomático do Rei Dom João IV, o restaurador da independência de Portugal.
Torna-se difícil compreender como é que, dum dia para o outro, a partir de 1975, tanto Cabo Verde, como os caboverdeanos, sem serem consultados, passaram a ser África e africanos, respectivamente. Tudo parece ter sido obra duma agitação política feita à pressa, nas ilhas, sobre a “validade de independência” (Aristides Pereira, 2011, p. 299, entrevistas a José Vicente Lopes, Aristides Pereira, Minha Vida, Nossa História, Praia, Edições Spleen, 492 p.).
Onde é que falhámos?
Falhámos na declaração precipitada da independência. Tivemos pessoas não preparadas que assumiram este país, sem pensar nos interesses reais da população, assumindo de rompante um país que não estava preparado efectivamente para ser independente. A independência devia ter sido algo mais bem pensado, mais bem estruturado, daí uma parte de erros que são apresentados como sendo grandes vitórias.
António Pedro Silva, p. 143 – 153, entrevista a José Vicente Lopes, 2014, Outubro, Vozes das Ilhas, Revista da Reforma do Estado, edição especial, Cidade da Praia, 240 p.)
Na luta pela independência, com a ideia de puxar Cabo Verde para a África, tentaram como que manipular o cabo-verdiano. Isso decorre da tal africanização dos espíritos, defendida por Amílcar Cabral. Nisso procurou-se convencer o cabo-verdiano que ele não era aquilo que ele devia ser. Foi um erro tremendo. Quebrou-se o tal orgulho que o povo cabo-verdiano tinha. Tentou-se virar a roda da História para trás, quando nós nunca podemos girar a roda da História para trás. Cultura é aquilo que eu mamei no leite da minha mãe. Que ninguém me venha dizer que a minha cultura é isto, é aquilo, ou aqueloutro. A minha cultura é aquilo com que eu cresci, é o que eu sou hoje, é o que eu trago desde a raiz.
Odette Pinheiro, p. 80 – 91, entrevista a José Vicente Lopes, 2014, Outubro, Vozes das Ilhas, Revista da Reforma do Estado, edição especial, Cidade da Praia, 240 p.)
Se este arquipélago marítimo do grande mar oceano está em África ou não está, é assunto para discutirmos mais adiante. Para já limitemo-nos aos caboverdeanos e à caboverdeanidade.
Mais recentemente, fez escala em Cabo Verde outra autoridade, Gilberto Freyre, que não se demorou, nem aprofundou as suas observações, mas ficou manifestamente desorientado com as aparências. Vinha estudar a universalidade da língua portuguesa e da cultura luso-tropical e tropeçou com a primeira língua crioula da globalização e do Atlântico, que, primeiro como língua materna, se tinha tornado língua de trabalho riquíssima, depois língua franca no litoral da África Ocidental, como já era antes do tempo do Padre António Vieira, desde o Cabo Verde até à Serra Leoa, e finalmente numa língua nacional, com ambições de se tornar literária. Sem vislumbrar como poderia integrar a língua crioula naquela universalidade, só lhe restava rejeitar este corpo estranho a essa universalidade, pelo que foi sabiamente criticado por Mestre Baltazar Lopes da Silva,
… foi grande a minha surpresa ao ver que Gilberto Freyre emprega em “Aventura e Rotina” e em “Um Brasileiro em Terras Portuguesas” o verbo “repugnar” e o substantivo “repugnância” para definir a sua atitude de sociólogo perante o crioulo. Mas, justos céus! Gilberto Freyre é um cientista. E a um cientista é reconhecido o direito de sentir repugnância pela matéria observada? A Ciência estaria bem arranjada se a um médico repugnasse examinar, para salvar uma vida humana, fezes e escarros; se um sábio como o meu velho mestre José Leite de Vasconcelos não aproveitasse todas as oportunidades para surpreender a verdade, quaisquer que fossem as andanças a que tivesse de se sujeitar e até a grosseria dos indivíduos observados. Confesso não compreender a alergia de Gilberto em relação ao crioulo. Não compreendo, porque é que Gilberto Freyre aceita e louva as expressões regionais daquilo que chama o “Mundo que o Português criou” e ao mesmo lhe “repugna” o crioulo de Cabo Verde. É claro que esta realidade, o crioulo, apresenta na sua problemática muitas facetas. Embora. Seja como for, o crioulo é a criação mais perene nestas ilhas. Tudo pode desaparecer ou modificar-se no Arquipélago: conduta, trajos, mobilidade das classes; se não ocorrer um cataclismo físico ou social, que está fora das nossas previsões, podemos ter a certeza de que, para me citar a mim mesmo, o crioulo está radicado no solo das ilhas como o próprio indivíduo.
Baltazar Lopes da Silva, 1956, Cabo Verde visto por Gilberto Freyre, apontamentos lidos ao microfone de Rádio Barlavento, Praia, Imprensa Nacional, Divisão Propaganda, Separata do Boletim Cabo Verde, Nº 84, 85 e 86, 52 p.)
Gilberto Freyre (Recife 1900 – 1987) visitou Cabo Verde em Outubro de 1951, trezentos anos depois do Padre António Vieira, e comparou Cabo Verde à Martinica e à Trinidade das Pequenas Antilhas, às quais atribuía erradamente uma “matriz africana salpicada de europeu”. Comparou a língua crioula de Cabo Verde de léxico português à língua da Martinica de léxico francês predominante e à da Trinidade também de léxico francês predominante. Veremos mais adiante, que estas comparações não eram inapropriadas e que, à luz da história, se justificam. Veremos porque é que se diz, na Martinica e Pequenas Antilhas e também nas Mascarenhas e outras ilhas do Oceano Índico, amarrer, espérer, larguer, como, respectivamente, em português, amarrar, esperar e largar, em vez de attacher, attendre, lâcher, respectivamente, em francês (Francisco Adolfo Coelho, 1880, Os dialectos românicos ou neo-latinos na África, Ásia e América, I Boletim da Sociedade de Geografia de Lisboa, 2ª Série, Nº 3, p. 129-196) e veremos também de que maneira chegaram levadas pelos caboverdeanos da grande diáspora as lagratish ou lagartixas à Trinidade (Francisco Adolfo Coelho, 1886, Os dialectos românicos ou neo-latinos na África, Ásia e América, III Boletim da Sociedade de Geografia de Lisboa, 6ª Série, Nº 12, p. 705-755).
Quanto à “matriz africana salpicada de europeu”, Gilberto Freyre caiu no mesmo erro que Frantz Fanon, médico psiquiatra da Guadalupe obcecado pela color bar (= linha divisória, barreira da cor) americana, ou racismo e contra-racismo anglo-saxão, pela cor da pele. Nem um nem outro conheciam África. Gilberto Freyre iniciou a sua primeira visita a África só depois de passar por Cabo Verde. Depois de se formar em França, Frantz Fanon foi trabalhar para a Argélia, no manicómio de Joinville, Blida, onde aderiu à Frente de Libertação Nacional argelina e só veio ao mato do Norte de Angola em 1963 munido dum binóculo, para encorajar Álvaro Holden Roberto a desencadear uma bárbara insurreição, na data duma reunião do Conselho de Segurança da ONU, em Nova Iorque, a 15 de Março de 1961 (João Paulo Nganga, 2008, O Pai do Nacionalismo Angolano, As memórias de Holden Roberto, I Volume, 1923 - 1974, Globalangola Lda, 296 p.).
O primeiro livro de Frantz Fanon, sobre a sociedade e cultura das Antilhas Francesas teria o título de “Pele Preta Máscaras Brancas”, se tivesse sido traduzido em português (Frantz Fanon, 1952, Peau Noire Masques Blancs, Collection “Esprit” aux Editions du Seuil, Paris, 223 p.)*. Como diria o Padre António Vieira a pele preta nas Antilhas é, na realidade, um “acidente” e naquelas culturas pode verificar-se, que não há máscaras nenhumas, os sentimentos espelham-se nas fisionomias, os antilheses, incluindo os de origem indiana oriental, não aprenderam a usar a máscara oriental. Nas Pequenas Antilhas, há sim pele preta e almas brancas, resultado do trabalho produtivo secular em língua crioula e do trabalho de evangelização das igrejas. Como em Cabo Verde, a África “diluiu-se” nas Pequenas Antilhas, as Pequenas Antilhas, como Cabo Verde, “fugiram” da África (Baltasar Lopes da Silva, Rádio Mindelo, São Vicente, 19.5.1956). Também nos Estados Unidos da América a pele é preta e a alma branca, como cantava Paul Robeson (“I am a little black boy but all my soul is white.”), inspirando-se de um poema de William Blake, poeta inglês, 1757 – 1827.
(Caleijão, São Nicolau 1907 – Lisboa 1989)
Temos assim duas autoridades e duas conclusões diametralmente opostas sobre a caboverdeanidade. Gilberto Freyre não aprofundou o “caso” de Cabo Verde, estava em missão de estudo da língua portuguesa nos trópicos e a língua crioula não era português, apesar do seu léxico, com mais de 95% de palavras de etimologia portuguesa. Descuidou-se ao tomar as aparências por realidades e ao pôr por escrito as suas primeiras impressões, necessariamente superficiais, porque ficou pouco tempo em Cabo Verde.
O Padre António Vieira, tão brasileiro como Gilberto Freyre, estava e esteve quase toda a sua vida em missão de evangelização. Confiou-nos que gostaria de ter ficado na diocese de Cabo Verde, onde se sentiu melhor do que no seu Maranhão e onde, com a sua grande alma, antevia obra grandiosa, que não chegou a realizar-se, porque os jesuítas portugueses se retiraram, em 1642 e não voltaram, depois de terem trabalhado trinta e oito anos, pouco numerosos, na Grande Guiné e em Cabo Verde e consagrado à Serra Leoa catorze anos de vida dos missionários Padres Baltazar Barreira (1604 a 1608) e Manuel Álvares (1607 a 1617). O primeiro está sepultado na Igreja de Nossa Senhora do Rosário da Cidade Velha desde 1612 e o segundo morreu em 1617 na Serra Leoa, uma capitania portuguesa que não vingou ao contrário da capitania de Cacheu fundada e fortificada em 1589 pelo caboverdeano Manuel Lopes Cardoso (Nuno da Silva Gonçalves, 1996, Os Jesuítas e a Missão de Cabo Verde, Brotéria, Lisboa, 449 p.).
Tampouco vingou, um projecto de futura colónia caboverdeana. Os caboverdeanos não tiveram uma terra prometida, “tão abundante de tudo, que nada lhe faltava” (André Álvares de Almada, 1594, Tratado Breve dos Rios da Guiné do Cabo Verde, publicado, anotado e comentado, em 1964, por António Brásio C. S. Sp., Lisboa, Editorial LIAM, 156 p.), uma futura colónia melhor do que Canaã. Um grande caboverdeano André Álvares de Almada, futuro cavaleiro da Ordem de Cristo, foi mandatado pelo povo da ilha de Santiago, para ir ao Reino apresentar este projecto, à volta de 1581, e requerer autorização de povoamento pelos caboverdeanos, requerimento indeferido por almas tacanhas, “com receio que a ilha ficasse desamparada” (Avelino Teixeira da Mota, 1970, Dois escritores quinhentistas de Cabo Verde, André Álvares de Almada e André Dornelas, Conferência proferida no Museu de Angola, Luanda em 23 Nov. 1970, Liga dos Amigos de Cabo Verde - Boletim Cultural, Nov.1970, p. 40-44), como efectivamente ficou desamparado todo o Arquipélago, durante perto de quatro séculos, sujeito a secas e fomes periódicas e sem receber alimentos suficientes, nem do Rei Mandinga, nem do Rei Português. Quatro séculos mais tarde, o Cónego Marcelino Marques de Barros (1844-1928), havendo fome em Cabo Verde, publicou a 31 de Outubro de 1883, em 4 páginas e 10.000 exemplares, A Fraternidade, Guiné e Cabo Verde, folha destinada a socorrer as vítimas da estiagem da província caboverdiana, com artigos e comentários de simpatia de 41 guineenses, entre eles 6 senhoras. A Guiné já se tinha tornado independente do Governador de Cabo Verde há quatro anos, mas não queria poupar-se a esforços para suavizar os sofrimentos dos seus irmãos caboverdeanos e dava um exemplo da solidariedade dos países lusófonos, talvez o primeiro.
Em Cabo Verde, os jesuítas residiam ao pé da fortaleza real de São Filipe, onde ensinavam a ler e escrever às crianças. Depois de partirem, a população não cessou de reclamar o regresso da missão e o Padre António Vieira apoiou essa reclamação, escrevendo, nesse sentido, para Lisboa ao confessor do príncipe herdeiro, Dom Teodósio e ao Padre Provincial do Brasil (Padre António Brásio, 1946, O Padre António Vieira e as Missões de Cabo Verde, Portugal em África, Revista de Cultura Missionária, Segunda Série, Ano III, Número 17, Set. – Out. p. 298 - 305). As causas da curta duração da missão dos jesuítas estão ligadas à crise económica de Cabo Verde, anunciada na primeira década do século XVI, com o cancelamento, por Dom Manuel I, da concessão da carta de Dom Afonso V de 12 de Junho de 1466 e com a emigração para o Brasil duma parte dos operadores económicos caboverdeanos acompanhados de suas famílias, bens e haveres, incluindo trapiches e trabalhadores cativos e forros, crise que começou na década de 1560 e se acelerou por outras causas ecológicas e políticas, ficando Cabo Verde órfão, quando terminou o império português da Ásia, dois séculos depois da colonização.
A visita do Padre António Vieira, coincidiu com o declínio dos tratos e resgates nos rios da Grande Guiné dos moradores de Santiago (António Carreira, 1983, Panaria Caboverdeana-Guineense, Alguns Aspectos Históricos e Socio-Económicos, segunda edição, Instituto Caboverdeano do Livro, 226 p.) e da própria Grande Guiné, que já estava reduzida à Pequena Guiné de hoje mais a Casamansa. A esmola concedida pelo Rei de Portugal Dom Filipe II para mantimento dos missionários jesuítas praticamente não era paga em Cabo Verde, pela fazenda real minguada de recursos financeiros, pois os navios negreiros espanhóis, primeiro, franceses, ingleses, holandeses e outros, depois, passavam a abastecer-se na costa africana, sem fazer escala em Cabo Verde, onde a alfândega ficou sem recursos financeiros.
Os jesuítas portugueses só deixaram obra grandiosa no Brasil. Outro grande missionário jesuíta, Dom Gonçalo da Silveira, chegou a pôr mãos à obra sòzinho, em Moçambique, mas por pouco tempo. Estava, ao Norte de Manica, a catequizar e ensinar a ler e a escrever às crianças com autorização do Monomotapa ou Senhor da Mutapa, quando foi estrangulado e o seu cadáver atirado aos crocodilos duma lagoa do rio Mossenguese. A decadência portuguesa já estava em marcha, com os comerciantes, artífices, industriais e trabalhadores independentes das cidades, que tinham feito, em Lisboa, a primeira revolução burguesa da Europa em 1383-85 (Álvaro Cunhal, 1975, As Lutas de Classes em Portugal nos Fins da Idade Média, Lisboa, Editorial Estampa, 132 p.), a serem discriminados, presos e queimados pelo Tribunal do Santo Ofício da Inquisição, depois de espoliados de bens de raiz e cabedais. Além da paz e reatamento das relações comerciais com os Países Baixos, um dos objectivos da missão diplomática confiada pelo Rei de Portugal Dom João IV ao Padre António Vieira, que este acabava de desempenhar na Europa, era, aliás, tentar reorientar os cabedais ou capital dos portugueses judeus e cristãos novos refugiados na França, Holanda, Inglaterra, Alemanha e Itália, em proveito da sua pátria e do império português, missão que fracassou e acabou de vez, com a prisão pela Inquisição Portuguesa, do grande Padre Missionário e Imperador da Língua Portuguesa, assim apelidado por Fernando Pessoa (António Brandão, 1972, O Padre António Vieira, 1663-67, A prisão dum Jesuíta pelo Santo Ofício, um cárcere insuportável, pedido de comutação desatendido, Volume I, Cap. XIV, Episódios Dramáticos da Inquisição Portuguesa., Seara Nova, 3 vol., 280 + 353 + 205 p.).
Mas, nestes subsídios, vamos limitar-nos, tanto quanto possível, a Cabo Verde e à sua grande diáspora. A cultura caboverdeana é europeia, como sempre se provou, ou africana, como se pretende desde que sopraram as lestadas marxistas-leninistas da revolução africana sobre o Arquipélago? Depois de sublinhar a impressionante “fuga” à África do Arquipélago e de reconhecer a “diluição” da África na cultura e língua caboverdeanas, Mestre Baltasar Lopes da Silva, resolveu este dilema, em 1985, da seguinte maneira:
Sim, porque nos dizem, a nós das ilhas:
- Se vocês “não são de África”, o que é que são? Europa?
Ou, inversamente, mas creio que muito mais raramente:
- Se “não são Europa”, o que são? África?
Claro que a mesa assim posta não deixa liberdade nenhuma ao conviva, que possivelmente se retrairá de anunciar a única verdade etnológica:
- Nem uma coisa, nem outra, somos caboverdeanos.
Baltazar Lopes da Silva, 1985, Prefácio ao livro de Manuel Ferreira, A Aventura Crioula, Lisboa, Plátano, republicado em Baltazar Lopes, 2010, Escritos Filológicos e outros Ensaios, Praia, Instituto da Biblioteca Nacional e do Livro, 365 p.)
Queríamos só acrescentar, caboverdeanos há cinco séculos e meio, fincados naquelas ilhas verdes só quando chove, pequenas e pobres em recursos naturais, geralmente desamparadas pelos governos de Lisboa, levados e retornados pelos ventos dos oceanos para participar, nas sete partidas do mundo, ao trabalho da globalização do mercado, à revolução industrial e ao sustento das famílias e educação dos filhos. Porque, sem a sua diáspora, iniciada com a ida para o Brasil dos seus operadores económicos mais dinâmicos, a que aludimos mais acima, a nação caboverdeana fica mutilada e perdida no oceano, a sua língua reduzida a um “alfabeto”.
A defesa da caboverdeanidade por mestre Baltazar Lopes da Silva surtiu efeitos ao mais alto nível do luso-tropicalismo. Outra autoridade unanimemente respeitada, o Professor Adriano Moreira afirmou sem hesitações, nem dúvidas, que Cabo Verde “é a expressão mais perfeita do luso-tropicalismo no mundo” e repetiu, por outras palavras, que o caboverdeano constitui “o exemplo mais perfeito da cultura luso-tropical” (1962, Partido Português, discurso proferido em 5 de Setembro de 1962 na Praia, durante a sessão do Conselho de Governo de Cabo Verde, Livraria Bertrand, Lisboa, p. 123 - 150).
Desejaríamos analisar e esclarecer, nos próximos subsídios, se o Arquipélago é de origem vulcânica e se faz parte do continente africano e investigar a história da nação caboverdeana no mundo e da sua língua crioula, como nasceram e se propagaram e espalharam pelo mundo os caboverdeanos e a sua língua crioula. Depois do grande sucesso do projecto de desenvolvimento económico resultante do privilégio do monopólio de comércio com a África Ocidental (Subsídio 14), o trabalho da nação caboverdeana organizado e articulado pela sua língua crioula fez do Brasil uma grande potência económica, deu novos mundos ao mundo e novas línguas à África, à América, a ilhas perdidas nos oceanos e à Ásia também, tudo isto ao lado e de mãos dadas tanto com a nação portuguesa como com a sua grande e muito mal conhecida diáspora religiosa.
José Carlos Mucangana
* Foi já traduzido e publicado com título errado: Pele Negra Máscaras Brancas, 2008, Salvador da Bahia, EDUFBA,194 p. Para esta côr, em francês há uma única palavra noir, ao passo que em português há duas preto e negro. Em inglês black é a côr e negro, como, em francês nègre não é uma côr e só se aplica a uma “raça” humana com elevada taxa de melanina dérmica ou black skinned (= com pele de côr preta). Já ficou provado, que não existem raças na espécie humana. Fanon referia-se à cor da pele e sabia francês. Referia-se à côr da pele noire ou preta, não escreveu nègre (= negro), porque não se referia a nenhuma raça “raça”. O tradutor deve ter-se esquecido, ou não sabia, que negro tem sentido pejorativo, quando se trata de “raça”, mas, no título deste livro, não se trata de “raça”, é só a côr da pele. Traduttore, traditore, diz-se em italiano, ou tradutor, traidor, em tradução portuguesa, mas, às vezes, é só incompetência, aqui talvez também ideologia mal digerida ou preocupação comercial.
São Francisco Xavier ainda não foi substituído por uma vaca, como fingia recear o Doutor Adriano de Sousa, grande advogado do pretório de Lourenço Marques, para levantar o orgulho dos seus patrícios, mas Goa está amoxamada... É o que observa quem lá vai. Há um debate para saber se a insidiosa perda dos valores ocidentais é culpa dos que já estão fora e dos que vão para fora ou dos que ficam lá em Goa.
Na realidade dos factos históricos, a culpa está muito bem definida e identificada. Não é dos Indo-portugueses, nem dos Goeses.
Tudo foi combinado fora de Goa, pelo PCP, que começou em Moscovo e acabou por conseguir fazer programar tudo em Nova Delhi e em Goa. Depois foi tudo executado, dentro de Goa e de Portugal, pelos marxistas-leninistas infiltrados, pelo PCP, no exército português, o marechal Francisco da Costa Gomes, cognominado Rolha durante o PREC, a instalar como governador o humanista general Vassalo e Silva, que não era vassalo de Portugal e só queria salvar a pele bem curtida nas praias de Goa, em desmentido do juramento que tinha feito na sua carta militar.
O Professor Doutor Oliveira Salazar nem teve tempo para mudar de ideias e fazer um referendo, que os goeses não teriam hesitado em votar em massa para ficarem portugueses.
Se houve tiros contra o exército e marinha do invasor, foram disparados por uns poucos goeses, entre eles o comandante duma instituição militar, que devia ser libertada por um grupo de blindados, pelo subchefe Aniceto do Rosário, que morreu, no seu posto defendendo Dadrá, pelos descendentes dos escravos de armas caboverdeanos de Diu, que só içaram uma bandeira branca depois de esgotadas as munições contra a marinha de guerra da União Indiana, e pela marinha portuguesa, nomeadamente a lancha Vega comandada pelo segundo-tenente Oliveira e Carmo fardado de branco e morto em combate, em Diu, pelo aviso Afonso de Albuquerque, com o seu comandante gravemente ferido, em Mormugão. Também em Damão houve tiros. Em Damão, nas festividades do dia feriado pela libertação ou invasão, antigos oficiais do exército português também vão pôr coroas pelos caídos, em Dadrá e Nagar Aveli. Para quem não acreditar, há um filme, na Internet.
Segundo os invasores, a conquista de Goa (ou de Goa com Damão e Diu) durou 36 horas e, em Goa, as tropas portuguesas foram recuando até Vasco da Gama, na península de Mormugão, onde o governador humanista trazido para Goa pelo marechal Rolha, que dali levou tropas e armamentos, por serem necessários em Angola, solicitou o cessar fogo, sem condições, aos Excelentíssimos Senhores seus Inimigos e Amigos, depois da rendição incondicional do Comandante Chefe das Forças Armadas do Estado Português da Índia, ele próprio e a mesma pessoa (Valentino Viegas, 2012, Goa, o preço da identidade, Lisboa, Livros Horizonte, Lda, 165 p.). Antes disso o general Vassalo e Silva, para afastar qualquer dúvida sobre o cabal cumprimento da sua missão, tinha já combinado com o seu Inimigo e Amigo, general Chaudhury, comandante do exército invasor, como devia fazer, para entregar Goa à União Indiana. Quem ficou irritado com essa formalização, foi Krishna Menon, ministro dos negócios estrangeiros, que desejava confinar a aparatosa invasão a um problema interno da União Indiana e daí lavar as suas mãos, mas, agora o seu exército tinha recebido e deferido um requerimento a pedir rendição de um exército, que para ele era estrangeiro (Mariana Manuel Stocker, 2011, Xeque-Mate a Goa, O Princípio do Fim do Império Português, Alfragide, TextoEditora Lda., 440 p.).
Quanto aos jornalistas e outras personalidades, que tinham estado presentes, o jornalista brasileiro Leopoldo de Melo declarou em Caráchi, que a rendição das forças portuguesas lhe parecera “vergonhosa” e que estas forças “actuavam como se estivessem privadas de comando, deslocando-se continuamente sem aparente finalidade, acabando por retirar-se em direcção a Vasco da Gama”. O Patriarca José Alvernaz desmentiu ter dado qualquer conselho de rendição e afirmou, que desde o primeiro dia da invasão, quando se encontrou com ele, o governador já tinha decidido que os portugueses se deviam render. Os jornalistas americanos regressaram de Goa frustrados. Só poucas pontes tinham sido cortadas à última da hora. Não tinha havido praticamente combates e os tiros tinham escasseado. Do lado português vinte mortos, entre eles o telegrafista Piedade do aviso Afonso de Albuquerque e o segundo-tenente Oliveira e Carmo da lancha Vega, do lado indiano vinte e uma baixas (Mariana Manuel Stocker, 2011), entre elas o oficial indiano ingénuo que comandava os tanques que foram atacar uma instituição militar de Goa guarnecida por goeses. Saiu a peito descoberto para negociar a libertação com o oficial goês, que comandava esse quartel ou forte, o qual, sem hesitar, o abateu (Valentino Viegas, 2010, A morte do Herói Português, da guerra em Angola à invasão de Goa, um testemunho, Lisboa, Livros Horizonte, Lda.). Este infeliz oficial sabia que a guarnição era goesa e julgava que os goeses se queriam libertar de Portugal, como a Índia se tinha libertado do imperialismo britânico. Como oficial superior, estava no segredo dos deuses e sabia que o general Vassalo e Silva obedecia ao PCP e ao KGB, não obedecia às ordens de Salazar. Não tinha reparado, que o general tinha deixado de comandar, abandonando as suas tropas à sua sorte, por motivos de grande humanismo marxista-leninista. Também não sabia, que, quando Ghandi dirigia o partido do Congresso, uns goeses líricos lhe tinham escrito de Bombaím, pedindo para trabalharem pela libertação com o Congresso Indiano, porque tinham em Goa a mesma luta e a mesma situação de colonizados. Ghandi tinha iniciado a sua carreira de advogado, em Durban, onde lutou para ser considerado sujeito do Reino Unido e seu Commonwealth e deixar de ser discriminado pela lei do apartheid da África do Sul, votada pelo parlamento britânico, no início do século XX. Ghandi respondeu aos líricos goeses de Bombaím, que estavam muito enganados e que, em Goa, só o governador era português e que tudo o resto, incluindo o poder judiciário estava nas mãos dos goeses, situação muito diferente daquela, que vigorava na Índia Inglesa, onde os indianos até estavam impedidos de frequentar lugares públicos reservados aos Ingleses.
O aviso Afonso de Albuquerque afrontou sozinho três fragatas indianas acompanhadas por um cruzador e um porta-aviões, na baía de Mormugão: “… muitos foram aqueles que observaram com os seus próprios olhos, assistindo à distância à batalha naval travada… Com extraordinária coragem, grande determinação e invulgar valentia, os marinheiros portugueses enfrentaram as modernas fragatas inimigas (…), sabendo de antemão que a qualquer momento elas podiam ser apoiadas pelo cruzador (…) e pelo porta-avões (…). Apesar de o comandante do navio, o capitão-de-mar-e-guerra António da Cunha Aragão, ter sido dos primeiros a ser alvo do fogo inimigo e estar gravemente ferido, pois logo na fase inicial do ataque fora atingido por um estilhaço junto ao coração, o aviso Afonso de Albuquerque deu grande luta e conseguiu acertar e danificar fragatas indianas. Combateu enquanto pôde, enfrentando o inimigo numa peleja desigual. Com as máquinas destruídas, impossibilitado de continuar a travar a batalha que vinha travando, cerca das treze horas do dia 18 (de Dezembro de 1961) o aviso Afonso de Albuquerque foi encalhado pela tripulação não muito longe do cais de D. Paula” (Valentino Viegas, 2012), onde, já depois de encalhado, continuou a defender o acesso ao canal do porto de Mormugão, disparando com a única peça de artilharia que lhe restava (Mariana Manuel Stocker, 2011).
O general Vassalo e Silva era engenheiro militar, tal como o seu ilustre colega Vasco dos Santos Gonçalves. Foi trazido para Goa pelo ilustre marechal Francisco da Costa Gomes por duas razões: era um tubarão do PCP e tinha sido aceite pelo Ministro da Guerra Salazar, só por ser engenheiro militar. Estava incumbido de preparar Goa para a invasão, criando o maior número possível de obstáculos à progressão do exército invasor. Teve tempo para cumprir a sua missão, mas não fez nada ou praticamente nada, só ficou documentada a falta de comando, ordens e instruções às tropas portuguesas e a sua fidelidade ao PCP e traição a Portugal. Com o pouco ou nada que fez na sua especialidade de engenharia militar, sobrou-lhe tempo para praia e festas (J., 2007, O último Imperador de Portugal, Volume I, Uma história verídica, Lisboa, Enke Editions, 400 p.), no dia anterior ao da invasão estava numa festa de casamento.
A estratégia de Salazar, no Estado da Índia, consistia em atrasar o inimigo, ganhando tempo, para poder mobilizar os aliados de Portugal e fazer queixas nos areópagos internacionais. Porque, no subcontinente indiano, por exemplo, Portugal tinha um poderoso aliado e muitos pequenos, mas activos aliados. Ainda hoje, no Paquistão, os goeses, que não quiseram submeter-se aos libertadores, ocupam postos de relevo, como funcionários do estado. Ainda hoje, emigrantes de nações da União Indiana emigram para a Europa, via Portugal, em vez de irem para o Reino Unido. A fronteira do Caxemira não é a única fronteira do Paquistão disputada com a Índia. A fronteira do Gujarate, ao norte de Diu, também é disputada. Com a guerra relâmpago do exército indiano retardada, o Paquistão tinha uma oportunidade única para avançar, no Gujerate e Diu podia passar para o outro lado da fronteira.
Segundo Franco Nogueira, o pandita J. Nehru teria ficado arrependido por ter usado a força em Goa, Damão e Diu. A verdade é que ele só respondeu afirmativamente à pressão de militares do seu exército, porque tinha garantias diplomáticas secretas, duma das duas grandes potências, de que o PCP controlava a situação em Goa e que tudo se passaria rapidamente. Em Setembro de 1961 Nehru tinha visitado a URSS e em Dezembro, antes da invasão, foi a vez de Nikita S. Khruchtcov visitar a União Indiana. Na primeira edição incompleta do seu livro, Maria Manuel Stocker (2011) prometeu esclarecer definitivamente este ponto pela “análise dos arquivos soviéticos”. Parece que já deviam estar disponíveis e até temos, em Portugal, um grande e bom especialista, que já esclareceu vários mistérios das histórias recentes de Moçambique e Angola, graças às fontes soviéticas.
Numa carta de Goa a um dos seus amigos, em Lisboa, Luís de Camões (Carta II, 1948, Obras Completas com prefácio e notas do Prof. Hernâni Cidade, Volume III, Autos e Cartas, Livraria Sá da Costa Editora, Lisboa, 379 p.), já, há muito tempo, tinha pedido meninas feias lisboetas, mas corajosas para fazerem uma viagem a enjoar durante seis meses. Segundo Camões as venerandas meninas reinóis de Goa tinham ultrapassado a idade da reforma. A sua experiência pessoal também lhe tinha mostrado que as meninas que a terra dava, as meninas goesas estavam amoxamadas. Para ele, ninguém havia como as meninas do reino para chiarem, na fervura, como “pucarinho novo”. Parece que, só agora, o nosso príncipe dos poetas e dos amores infelizes e tristes foi ouvido pelas meninas russas bonitas, segundo os padrões do Renascimento e do “povo vão” (Endechas à Bárbara Escrava, 1948, Volume I): pele branca como a neve sem melanina, olhos azuis de azurite ou verdes de malaquite, cabelos de ouro.
Goa tornou-se um estado da União Indiana separado de Damão e Diu, território da União Indiana. Assim, em Damão e Diu, os descendentes de caboverdeanos, que não se deixam amoxamar, como provaram sobejamente, em Timor Leste, ficaram mais isolados.
Para ser completo, este sítio sobre Goa, a bem da Nação, só precisava ainda de um relato ou entrevista a um tripulante do navio escola Sagres sobre a festa de despedida, que lhe foi feita, uma surpresa dos goeses, a 14 de Novembro de 2010. Essa festa parece ter ultrapassado de longe a cerimoniosa recepção dos canecos do século XIX a um príncipe de Portugal, o único da história, que foi visitar os seus fidelíssimos vassalos do vice reino. Para essas grandes festas, não faltaram recursos, em Goa, tolerância de ponto, canecos (= chapéus altos) e fraques para todos os funcionários sem distinção, no século XIX, barcos e motas, bandeiras das quinas verdes e encarnadas, música e vinho espumante para todos, juventude e trabalhadores, assim como liberdade de palavra para os auto-proclamados combatentes da liberdade, no início do século XXI.
Fig. 1. À sombra dum coqueiro, um Mardica com sua esposa e filho vestidos à portuguesa, pintura de 1704 (http://www.wikiwand.com/en/Indos_in_pre-colonial_history).
Fig. 2. Os Topasses ou Topazes das ilhas de Timor, Solor e Flores, onde também eram designados por Larantuqueiros, do nome da capital e porto do distrito oriental da ilha, em Larantuca, eram católicos, falavam crioulo caboverdeano, que subsistiu na ilha das Flores até ao século XX e controlavam o comércio do sândalo dessas ilhas (Hans Hägerdal, 2012, Lords of the Land, Lords of the Sea, Conflict and adaptation in early colonial Timor, 1600-1800, Leiden, KITVL Press, 479 p.).
Fig. 3, Ilha das Flores: Vendedor de panos e tecidos com motivos caboverdeanos.
Fig. 4. Em Larantuca, este descendente de caboverdeanos leva um magnífico quadro, que mostra Jesus, no caminho do calvário, carregando a sua cruz (Beawiharta/Reuters). Vários outros quadros estão dispostos ao fundo e parece que se trata do próprio pintor, que veio vender as suas obras, durante a Páscoa.
Fig. 5. Filas às portas das igrejas católicas aguardando as cerimónias religiosas da Páscoa, em Larantuca, ilha das Flores.
Fig. 7. Caboverdeanos da Ásia, vestidos à portuguesa, muito sérios e pouco sorridentes, como os portugueses reinóis, orgulhosos de serem portugueses (Asian Portuguese Community Conference, Malaca, Malásia, 27-30 June, 2016). A maioria dos caboverdeanos vieram para a Ásia como escravos de armas. Outros eram marinheiros e foram designados por lascarins (palavra da Pérsia) juntamente com os marinheiros de outras nacionalidades asiáticas dos navios portugueses. Nos séculos XVII e XVIII, durante a decadência do império português, lascarins caboverdeanos passaram a trabalhar nos navios da British East India Company.
O fado ou morna (?) indonésio, também se canta na África do Sul, em Afrikaans. Foi levado da Indonésia pelos mardicas do Exército holandês, também conhecidos, na altura, por malaio-portugueses. Da língua, que falavam, relexificada em holandês e descrioulizada em contacto com o novo superestracto holandês, no Cabo, resultou o afrikaans, hoje língua de cultura e língua nacional daquele país, com falantes de todas as cores e de todas as classes sociais e escrita nos alfabetos latino e árabe, na África do Sul e também na Namíbia. Em Cabo Verde, o crioulo ainda está no processo de se tornar efectivamente uma das duas línguas nacionais do país, mas uma língua da sua família, o afrikaans, já é, com o inglês, uma das duasprincipais línguas nacionais da África do Sul.
Mardica vem do holandês mardijker = forro, Topaz, ou Topasse parece que deriva do tamila = bilingue ou intérprete.
Os mardicas vieram da Guiana e talvez também das ilhas ABC. Os holandeses ofereceram cartas de alforria a todos os escravos que quisessem alistar-se no Exército e ir para a Indonésia.
Os segundos vieram da Índia e sobretudo do golfo de Bengala, com os portugueses, cerca de um século antes e chegaram até Flores, Timor, Ternate e Filipinas, com a sua língua, como soldados, nas guarnições de fortes e fortalezas.
Tanto os mardicas como os topazes se apresentavam como portugueses, vestiam à portuguesa, tinham orgulho em serem portugueses e zangavam-se muito, quando ingleses e outros lhes diziam que não podiam ser portugueses, porque eram pretos. Eram de origem cabo-verdiana e falavam crioulo de Santiago.
Os topazes começaram por ser escravos presos e vendidos pelos régulos e reis da África Ocidental, depois de guerras, que tinham perdido. Depois de comprados pelos moradores de Santiago, eram baptizados, ensinados e treinados na base de apoio de Cabo Verde, em Santiago, para se tornarem ladinos, falando crioulo, e para serem enviados, como escravos de armas, a guarnecer as fortalezas e fortes portugueses da Ásia. Só na Índia houve perto de cem fortes e fortalezas. Foram os escravos de armas, que se bateram como leões por Portugal e pelo seu império da Ásia. Penso que o seu número, durante cerca de dois séculos, deve ter chegado a dez mil, ou mais. Com o fim do império da Ásia, lá ficaram ao serviço de holandeses e ingleses.
Os antepassados dos mardicas saíram de Cabo Verde para o Brasil, no início do século XVI, quando Fernão de Noronha assinou o contracto do pau de brasil e chamou alguns cristãos novos moradores de Cabo Verde. Em Pernambuco, plantaram cana e fizeram açúcar, nos seus engenhos e trapiches vindos de Cabo Verde, com os seus trabalhadores escravos e forros, nos porões dos navios. Estes cabo-verdianos foram os primeiros colonizadores do Brasil. Durante o Brasil Holandês abriram a sinagoga de Recife, a primeira da América. Depois, voltaram a carregar os porões dos navios com os seus utensílios de trabalho e trabalhadores e seguiram com os holandeses para a Guiana, onde se falam hoje, quatro dialectos da língua cabo-verdiana, ou línguas da família deste primeiro crioulo da globalização. A língua da tecnologia mais avançada daquela época era o crioulo. Era a língua materna e língua de trabalho dos cabo-verdianos sem distinções de cor, nem de estatuto social, era a língua materna dos patrões e dos trabalhadores forros e escravos, dos que aprendiam português nas escolas das igrejas e sinagogas e dos da maioria, que não ia à escola e ficava analfabeta.
Quando os portugueses cabo-verdianos da Guiana, como assistentes técnicos, e os portugueses de Amesterdão, como financiadores, foram chamados pelos governadores das Antilhas inglesas e, depois, francesas para fazer açúcar, os escravos, que já lá estavam e os que, em grandes números, chegaram depois, tiveram que aprender crioulo ao mesmo tempo que aprendiam a trabalhar e produzir. Todas as línguas crioulas das Caraíbas são dialectos cabo-verdianos ou línguas da família cabo-verdiana. Só encontrei um que é dialecto do crioulo de São Tomé, o palenqueiro da Colômbia.
O “português adulterado” da Ásia de hoje não é português, é crioulo de Cabo Verde, ou seus dialectos e línguas da sua família. O “português adulterado” da Ásia de ontem era o próprio crioulo, antes de evoluir em contacto com novos adstractos linguísticos.
Topasses da Larantuca, Flores oriental foram para Timor, em grande número, depois do seu achamento por um navio português. Quando os holandeses invadiram Timor ocidental com os seus mardicas, ocupando Kupang, os portugueses com os seus topazes perderam a batalha. Depois os topazes portugueses passaram a governar Timor, ou melhor as ilhas da Sunda Oriental e tomaram conta do comércio do sândalo. Dois governadores acabaram por voltar para Goa e Timor ou melhor a sua capital no porto de Lifau (hoje enclave de Ocussi-Ambeno), foi governada por duas famílias topazes, que fizeram as pazes com os holandeses. As famílias Hornay (mardica?) e Costa (topaz) aliadas, por casamento com régulos timorenses tomaram conta do comércio do sândalo e governaram Timor, durante os séculos XVII e XVIII. Foi pena, que não tivessem governado mais tempo, porque, no início da década de cinquenta do século XIX, um governador reinol vendeu aos holandeses as outras ilhas e foi-se governar a si próprio com o magote de dinheiro, para outras latitudes.
Timor já enviou professor de português para Tugu? As Flores precisam de mais do que um, Damão e Diu também…, sem falar de Ceilão e de Malaca, onde o crioulo de léxico português está em vias de extinção, as famílias já ali falam inglês com os filhos. Além de Timor, o Brasil é que tem dinheiro para isso, Angola parece que já não tem.
Também a nova Associação de Professores e Formadores Lusófonos, com a CPLP (Conferência dos Países de Língua Portuguesa) e a futura CPLPC (Conferência dos Países de Línguas Portuguesa e Crioulas) podiam procurar arranjar recursos para resolver estas carências do ensino da língua portuguesa.